Apesar de avanços na última década 42,4% da população brasileira não têm acesso a saneamento, e 62% do esgoto não é tratado. Privatização eternizaria este déficit, porque vincula serviço à capacidade aquisitiva dos moradores
Trabalhadores e pesquisadores alertam: governo age, sem alarde, para entregar setor. Processo elevará tarifas e inviabilizará extensão dos serviços para população de baixa renda
Alerta coletivo de dez entidades
Com vistas a consolidar, rapidamente, o novo projeto político-social anunciado à sociedade brasileira em outubro de 2015, por meio do documento “Ponte para o Futuro” do PMDB, o Governo Temer tem adotado um conjunto de estratégias que passa pela construção e ou aprovação de novos marcos legais, inclusive por meio de emendas constitucionais, e a formação de um ambiente que privilegia a atuação da iniciativa privada na prestação dos serviços públicos.
A “Ponte para o Futuro” prevê, após o golpe de Estado pela via institucional, a reorientação da atuação do Estado no campo das políticas públicas e sociais, o que inclui o saneamento básico. O documento preconiza o que pode ser chamado de um neoliberalismo subalterno e subordinado ao rentismo e ao mercado. Dentre as ideias de tal documento, pode-se destacar:
“executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se à Petrobras o direito de preferência”(FUNDAÇÃO ULYSSES GRUIMARÃES; PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO, 2015, p. 18, grifo nosso).
Desde sua posse como presidente interino, Temer tem comandado apressadamente diversas inciativas para fazer avançar a “Ponte para o Futuro”. Na área de saneamento básico o cenário é de profundas mudanças no marco legal, no papel das instituições e no financiamento. No campo legal merecem destaque:
A Medida Provisória (MP-727) editada no mesmo dia (12/05) da posse de Temer como interino e convertida na Lei n. 13.303/2016 (ou seja: tudo estava preparado, mesmo antes do golpe). A lei estabelece o estatuto jurídico das empresas públicas,
sociedades de economia mista e de suas subsidiárias (estatais). Foi fortemente questionada por atropelar as competências dos entes federativos; por pretender disciplinar todos os tipos de empresas estatais (concorrência ou monopólio, sob o regime de direito privado ou de direito público), dentre outros;
A Lei 13.334/2016, que cria o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), prevendo um conjunto de medidas e dispositivos para fortalecer a interação do Estado com a iniciativa privada, retomando, inclusive, o
Programa Nacional de Desestatização (Lei n.
9.491/1997) do governo Fernando Henrique Cardoso, amplamente questionado pelos prejuízos que trouxe à nação com a venda do patrimônio público à iniciativa privada, a exemplo da Vale do Rio Doce, sendo considerado por Aluísio Biondi o maior assalto ao patrimônio nacional;
A PEC n. 65/2012, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e a ser apreciada pela Câmara Federal, a qual define que, a partir da simples apresentação de um Estudo Impacto Ambiental (EIA) pelo empreendedor, nenhuma obra poderá mais ser suspensa ou cancelada. Se aprovada, na prática, os procedimentos previstos na Lei da Política Nacional de Meio Ambiente e em toda a legislação ambiental aplicada atualmente em processos de licenciamento de obras públicas serão duramente fragilizados.
Mas outras estratégias de desconstrução das políticas públicas de saneamento básico estão em curso. Contrariam as intensas discussões entre os diversos segmentos da sociedade ao longo de três décadas, na esteira da redemocratização do país, do processo Constituinte, dos debates sobre a Reforma Sanitária e a Reforma Urbana. Tal estratégia está registrada no documento intitulado “Diagnóstico Saneamento”, de 14 de setembro de 2016, da Casa Civil da Presidência da República (BRASIL, 2016).
Para dar legitimidade às propostas apresentadas, o documento informa que foram ouvidos representantes da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon), Instituto Trata Brasil, ministério das Cidades, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e a Associação Brasileira dos Engenheiros de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes). A análise do conjunto de entidades convocadas permite constatar que foram representados na reunião da Casa Civil os setores empresariais e os que defendem os seus interesses. Cabe pontuar que o Instituto Trata Brasil, uma Oscip, vem há quase dez anos construindo as bases para ser o grande disseminador do ideário neoliberal para as políticas de saneamento básico no Brasil. Representa grupos como Acqualimp, Aegea, Amanco, Braskem, Cab Ambiental, Coca-Cola do Brasil, GS Inima Brasil, Pam Saint Gobain, Solvay Indupa, Tigre, dentre outros.
O documento apresenta 13 propostas que em seu conjunto visam:
> Alterar o marco legal do saneamento básico (Lei n. 11.445/2007, Lei n. 11.107/2005 dos Consórcio Públicos. Seriam dispensada licitação para que empresas privadas celebremna contratos com entes da federação ou com entidade da sua administração indireta. Isso visa permitir a “gestão associada”, inclusive por meio de desrespeito à legislação ambiental, a exemplo da Lei de Crimes Ambientais e resoluções do Conama);
> Ampliar a participação privada na prestação dos serviços “no mercado de saneamento” (BRASIL, 2016, p. 7) por meio de concessões, abertura de capitais e PPP, em abastecimento de água, esgotamento sanitário e resíduos sólidos;
> Concentrar as funções relacionadas ao saneamento básico na Agência Nacional das Águas, . Tal estratégia dá centralidade à regulação e fragiliza o planejamento e o poder local;
> Rever as competências das instituições do governo federal, com destaque para a Fundação Nacional de Saúde, que deixará de atuar nos municípios de população menor que 50 mil habitantes. A maior parte de suas competências seria transferida para o Ministério das Cidades” (BRASIL, 2016, p. 5).
> Rever oPlano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), considerado um “Plano Panfleto”, visando introduzir a participação privada nas diretrizes e propostas;
> Criar linhas de crédito especiais no BNDES e Caixa para viabilizar Parcerias Público-Privadas e acordos com acionistas para garantir interesses dos sócios minoritários;
> Dar segurança jurídica aos investimentos em áreas irregulares consolidadas e avaliar as soluções provisórias para as não consolidas. Isso revela um tratamento econômico e normativo/legal para uma questão relacionada à problemática da segregação sócio-espacial das cidades brasileiras.
O conteúdo “Diagnóstico Saneamento” espelha não só as propostas expressas na “Ponte para o Futuro”, mas também o modus operandi do grupo no poder. Trata-se de construir propostas que dialogam e atendem aos interesses dos setores privados, consolidando o mercado do saneamento básico no Brasil; e promover, rapidamente, a desconstrução das políticas públicas de saneamento básico por meio da revisão do marco legal a toque de caixa, contando com a participação dos segmentos sociais ligados ao setor privado e excluindo a participação social.
Está em curso no Brasil uma grande operação de apropriação do patrimônio do povo brasileiro, representado não só pelas empresas estaduais e autarquias municipais de água e esgoto, mas também pela parcela dos recursos do Orçamento Geral da União e do BNDES e da Caixa. Estes últimos são constituídos por fundos dos trabalhadores, que na última década possibilitaram ampliar de forma significativa os investimentos em saneamento básico no Brasil.
Nenhuma nação do mundo universalizou o saneamento básico sem que o Estado, como ente que deve assegurar o bem-estar coletivo, tivesse forte participação. Ainda hoje, avaliando os modelos de prestação dos serviços, constata-se que a matriz é pública. A “Ponte para o Futuro” do Governo Temer ao propor a privatização dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil coloca-se na contramão da história. Em todo o mundo, há hoje um movimento de remunicipalização dos serviços. Reconhece-se, cada vez mais, os limites da atuação privada em um segmento que é monopólio natural, serviço essencial, direito social e humano. Além disso, o saneamento impõe investimentos significativos e não permite o diálogo com à lógica do capital, já que a sua lucratividade está condenada à cobrança de tarifas altas, qualidade dos serviços declinantes, exclusão das populações com baixa capacidade de pagamento, manutenção das desigualdades de acesso, problemas contratuais para fazer frente as situações de risco, quer seja econômico como ambientais e de obsolescência dos sistemas, dentre outros.
Diante do cenário de desconstrução da política de saneamento básico no Brasil, a sociedade brasileira e os grupos organizados devem buscar pautar em suas lutas na defesa intransigente do saneamento público e o controle estatal e popular dos serviços.
Salvador, 17 de outubro de 2016
Observatório de Saneamento Básico da Bahia (OSB-BA)
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental/Seçao Bahia (ABES/BA)
Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (ASSEMAE)?
Coletivo de Luta pela Água-SP?
Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU)
Federação Nacional dos Urbanitários (FNU)
Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental (FNSA)?
Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ)?
Red Vida (Vigilância Interamericana para la Defensa y Derecho al Água
)?
Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente no Estado da Bahia (SINDAE)
http://outraspalavras.net/blog/2016/10/27/como-temer-pretende-privatizar-saneamento/