quinta-feira, 31 de maio de 2018

ESPECIAL MATOPIBA: O CAPITAL ACIMA DA VIDA

VALE ACESSAR, NO LINK ABAIXO, A EXCELENTE REPORTAGEM DO BRASIL DE FATO SOBRE A AMEÇA TERRÍVEL SOBRE O QUE RESTA DO CERRADO.

ESPECIAL | MATOPIBA: O CAPITAL ACIMA DA VIDA

O impacto do programa do agronegócio nos modos de viver das comunidades tradicionais do Sul do Piauí

https://www.brasildefato.com.br/2018/05/23/especial-or-matopiba-o-capital-acima-da-vida/ 

A LUTA DOS CAMINHONEIROS E AS QUESTÕES INCÔMODAS


A luta dos caminhoneiros e as questões incômodas
Há quem fale em “golpe” e em “locaute”. Mas movimento expõe, principalmente, fragilidade do governo; e paralisia de uma esquerda que esqueceu as ruas e a rebeldia – para enxergar apenas eleições
Por Antonio Martins
I.
E eles resistem. No início da tarde sexta-feira (25/6), quando se escreve este texto, o governo acaba de anunciar ação repressora contra os caminhoneiros – mas milhares deles continuam mobilizados, em todos os Estados. Recusam-se ao trabalho, nas condições que lhes são impostas. Parados, trancam rodovias. Sua atitude trava um país que optou por se tornar refém do transporte rodoviário. Não há gasolina nos postos (ou há filas quilométricas) e os ônibus urbanos começam a escassear. Ninguém abastece os Ceasas. Os aviões, em breve, ficarão em solo.
Para prosseguir, o movimento precisou superar três enormes obstáculos políticos e comunicacionais. Primeiro, ser acusado de anti-social. A mídia – os jornais da Globo, especialmente – diz que os caminhoneiros suscitam desde a interrupção das hemodiálises até a ganância dos atravessadores, que decuplicaram o preço da batata. Segundo, ampliar o sofrimento dos mais fracos. A redução do preço do diesel, proposta pelo governo, doerá nas costas dos contribuintes – martela a TV –, como se não houvesse horizonte político além da “austeridade fiscal”. Terceiro, sabotar a sacrossanta ditadura dos mercados. Os investidores, continua a mídia, puniram a Petrobrás, devastando os preços de suas ações, quando perceberam que uma empresa estatal pode levar em conta os interesses do país.
TEXTO-MEIO
Contra tudo, o movimento persiste e ganha apoio. O MST orgulhava-se, ontem, de ter oferecido almoço aos caminhoneiros, num bloqueio da Via Dutra, em SP. A Globo noticiou há pouco que os motoqueiros de São José dos Campos fizeram cortejo em homenagem aos grevistas, e confraternizaram com eles. Por que?
II.
Para parte da esquerda, a resposta é fácil. Os caminhoneiros seriam a ponta de lança de um “golpe dentro do golpe, jurídico-militar”, escreveu em editorial uma revistaTrata-se, no fundo, de um “locaute” (greve patronal), apostou outro site.
Talvez haja bases históricas para a suspeita. É possível que a natureza solitária de seu trabalho e a sensação de que “transportam as riquezas do país” torne os caminhoneiros mais propensos ao individualismo, à vanglória e às políticas relacionadas a estes sentimentos. Foi assim no Chile da Unidade Popular, em 1973, quando lideraram um paro que transtornou a vida da população e abriram caminho para o golpe de Estado do general Pinochet. Há quem tente isso de novo. A BBC Brasil reportava, ontem, a ação de grupos que tentam se aproveitar do movimento atual para difundir, via Whatsapp, a ideia da “intervenção militar” para “acabar com os políticos corruptos”.
Mas na aridez do Brasil-2018, submetido há dois anos a uma agenda de retrocessos, a paralisação significa, muito concretamente, um desnudamento das políticas neoliberais – e um sinal de que, bem ao contrário do que alguns pensavam, há inúmeras brechas para lutar contra elas.
III.
Examine as reivindicações dos caminhoneiros. A primeira, e mais crucial, é o fim dos aumentos quase diários no preço do óleo diesel. Eles desordenam totalmente as contas de transportadores cuja margem de lucro é reduzida (por competição intensa) e cujo custo essencial é o combustível. Como tratar um frete hoje e sofrer, no decorrer do próprio transporte, cinco aumentos de preço?
Mas por que tornou-se impossível, à Petrobrás, oferecer preços minimamente seguros, numa economia que estaria “estabilizada” desde o Plano Real? Porque a empresa deixou de modo explícito, após 2016, de atender às necessidades do país. Aceitou subordinar-se aos interesses de seus investidores – a grande maioria, enormes fundos globais. Eleva as cotações dos combustíveis seguindo cada oscilação no preço do barril de petróleo ou do dólar, para assegurar a lucratividade de suas ações. Além disso, iniciou um processo de desativação ou venda das próprias refinarias – o que a torna cada vez mais dependente de importações.
O governo Temer não é vulnerável apenas por ter entregue, na prática, a Petrobrás a seus acionistas externos. Ele tornou-se incapaz de fazer política fiscal. Outra forma de aliviar o drama dos caminhoneiros seria reduzir temporariamente os impostos sobre os combustíveis. Mas como, se os grandes agentes financeiros fiscalizam cada mudança no sistema de tributos? Eles aplaudiram, em novembro, a concessão, às petroleiras estrangeiras, de isenções fiscais calculadas em 1 trilhão de dólares, em vinte anos. Mas rejeitam, agora, um desconto no PIS-Cofins sobre o diesel que equivaleria a 1,2% deste valor. Ou exigem, como contrapartida, elevações de outros impostos que atingiriam a indústria e o emprego.
A pressão dos caminhoneiros rachou e desorganizou a base conservadora no Congresso como nunca antes, ao longo desta semana. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), defendeu a isenção temporária de PIS-Confins e conseguiu aprová-la. De imediato, o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, afirmou que a medida desestabilizaria as contas públicas. O Palácio do Planalto pediu que o presidente do Senado, Eunício Guimarães, retardasse a aprovação da medida em sua casa parlamentar.
O impasse impediu que o governo firmasse, com as lideranças de caminhoneiros, um acordo crível. O compromisso fechado na quinta-feira à noite era frágil e foi, desde o início, desconsiderado mesmo por algumas associações da categoria. Um dia depois, os bloqueios despedaçaram o firmado. Como aceitá-lo, se ele trazia implícita a volta, em um mês, à política atual?
Um movimento que, motivado por drama real, sacode o país, desafiando as visões segundo as quais a sociedade permanece em prolongado estado de “apatia”. Reivindicações que, além de justas,desafiam duas das políticas centrais do golpe de2016 – o desmonte da Petrobrás e o “ajuste fiscal”. Um governo que, pressionado, entra em estado paralítico. Que falta para que a esquerda história decida-se a agir?
IV.
Em palavras, todos os partidos que compõem a esquerda brasileira apostam na mobilização social. O PT surgiu dela, no final da ditadura. PCdoB e PSOL veem-se influenciados pela tradição marxista, para a qual a presença no Estado, sob hegemonia capitalista, deveria ser apenas um instrumento para estimular a luta de massas.
Quanta diferença entre retórica e prática. Quem examinar a ação de qualquer destes partidos verá que, desde a redemocratização, ele tornou-se cada vez mais institucional. A tendência acentuou-se após 2003, com a chegada ao governo; e depois de 2013, quando ficou claro que as ruas não eram controladas por ninguém. Há hoje, para os partidos de esquerda, algo mais importante que a mera disputa eleitoral? Que projetos alternativos de país estão sendo gestados? Que esforços há em dialogar com aqueles que – como os caminhoneiros, com todas as suas contradições – chocam-se com a ordem?
A partir do final de 2017, a situação agravou-se – por motivos compreensíveis, mas contestáveis. O acirramento da perseguição a Lula levou a uma agenda reflexa. Ela está centrada, quase exclusivamente, na luta pela liberdade do ex-presidente e por voltar ao Palácio do Planalto. Não busque encontrar, por exemplo, participação dos partidos de esquerda na luta contra os efeitos da “reforma” trabalhista, o desmantelamento dos serviços públicos ou a ocupação federal-militar nas favelas do Rio de Janeiro.
As pesquisas de intenção de voto, no momento favoráveis, alimentam esta tendência. Valeria a pena correr riscos, quando há uma hipótese mais rápida de voltar ao governo, já em outubro?
Aos poucos, vão se espalhando movimentos que parecem apostar em outra lógica. Na mesma semana em que explodiu a luta dos caminhoneiros, os professores das escolas particulares de São Paulo ocupavam a Avenida Paulista (contra a precarização de suas condições de trabalho) e as feministas transformavam em fatos políticos mesmo a estreia de filmes pouco ambiciosos – como Chega de Fiu-Fiu.
Estará em curso outra virada política? Como diria José Saramago, não podemos saber – mas talvez tenhamos o dever de participar…
https://outraspalavras.net/brasil/a-batalha-dos-caminhoneiros-e-suas-questoes-incomodas/

13 COISAS A APRENDER COM A GREVE DOS CAMINHONEIROS

APRENDER COM AS PRÁTICAS É SINAL DE SABEDORIA. O ARTIGO QUE SEGUE VAI NESSA LINHA. E NOS PROVOCA A INDICAR OUTROS APRENDIZADOS EM RELAÇÃO A TUDO QUE ACONTECEU NA PARALISAÇÃO DOS CAMINHONEIROS.

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/13-coisas-que-deveriamos-aprender-com-a-greve-dos-caminhoneiros/4/40432

13 coisas que deveríamos aprender com a greve dos caminhoneiros

Governos não podem fazer o que bem entendem, empresas também não, se não atenderem ao interesse da sociedade

 
30/05/2018 15:30
 
Por Antonio Lassance (*)
 
1) Governos não podem fazer o que bem entendem, empresas também não, se não atenderem ao interesse da sociedade.
Algumas pessoas pedem menos impostos, menos Estado e mais livre mercado, mas quando percebem aonde isso leva, vão ao extremo oposto e pedem intervenção em tudo. Querem até soldado dirigindo caminhão de combustível e conferindo o preço na bomba.  Não são todas as pessoas nem a maioria e mudam de ideia muito facilmente.
A democracia é cheia de defeitos, mas governos e burocratas sem qualquer compromisso democrático e sem qualquer sensibilidade com os mais pobres são a ruína da sociedade e a sepultura de nossas chances de desenvolvimento.
Pedro Parente é um exemplo típico do que se entende como czar de uma política. Manda e desmanda, sem qualquer atenção às consequências sociais e mesmo macroeconômicas que suas decisões podem gerar. Em regimes ditatoriais, os governos são uma coleção de Pedros Parentes.
O que no fundo as pessoas pediram, em meio a essa crise colossal, foi um Brasil  de mercados melhor regulados (abusos devem ser coibidos), mais democracia (as pessoas querem ser ouvidas) e governos que atendam ao interesse social de quem mais precisa da ação do Estado.
As empresas não podem fazer o que bem entendem, pois têm uma responsabilidade social. Postos não podem vender gasolina a R$9,99 e gás a R$150,00. Isso foi considerado imoral. A popularidade do presidente, que já era mínima, foi à lona.
 
2) O preço dos combustíveis é uma pequena amostra do que acontece com países que preferem tributar mais o consumo (de combustíveis e alimentos; de bens e serviços) do que a renda e a propriedade.
Também foi um reflexo do que acontece em lugares que apostam mais no transporte individual do que no transporte público. Nas eleições que estão por vir, será que não deveríamos prestar atenção não apenas em quem são os candidatos, mas sobretudo ao que eles propõem a esse respeito?
 
3) O Brasil é um paraíso para os ricos e um inferno para os pobres.
Por aqui, quem ganha mais é quem paga menos imposto, proporcionalmente. Repararam também que, na greve dos caminhoneiros, a situação que primeiro foi se regularizando foi a dos aeroportos? Em seguida, os postos tiveram um abastecimento precário, mas receberam alguma coisa, a conta gotas. O que menos se viu, com a urgência que seria necessária, foi gás de cozinha. Você não acha que deveria ser o contrário?
 
4) O Brasil vinha investindo muito em ferrovias, mas parou. Parou por quê? Por que parou?
O Brasil não investe em ferrovias, certo? Errado. Quando ainda havia a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), o Brasil investiu bastante em ferrovias, apesar das muitas oscilações em períodos de crise. A Rede foi extinta pelo Programa Nacional de Desestatização, em 1992. Daí até 2002, o setor caiu em letargia e muitas de suas ferrovias foram abandonadas e se depreciaram. Principalmente a partir do segundo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) e até o golpe, a indústria brasileira de materiais e equipamentos ferroviários produziu muito. Foram quatro mil vagões por ano. Para se ter uma ideia, na década de 1990, a indústria forneceu, em média, apenas 330 vagões/ano, ou seja, 12 vezes menos (informações do livro verde do BNDES, de 2017, pág. 177 https://goo.gl/9YoE1E). O que parou o investimento em ferrovias não foi o desinteresse do brasileiro por este modal. Primeiro, foi a privatização da RFFSA. Depois, foi o golpe que fez o país retroceder ao século passado.
Vale a pergunta: não seria a hora de se recriar a RFFSA?
 
5) Os acionistas majoritários das empresas públicas são os brasileiros.
A Petrobras é uma empresa pública por uma razão importante. Na verdade, por várias razões. Embora venda produtos no mercado, ela não foi feita para funcionar exatamente como uma empresa privada. 
Claro que ela não deve ter prejuízo, mas seu objetivo principal não é obter lucros exorbitantes e imediatos e nem, acima de tudo, remunerar seus acionistas e dirigentes. Seu principal objetivo deveria ser o desenvolvimento do país. No caso da Petrobras, é também seu papel organizar e regular o mercado de petróleo e gás e introduzir um mínimo de interesse social no que é produzido.
Muitas pessoas não percebem que petróleo e gás existem graças ao patrimônio natural deste país, que pertence a todos os brasileiros.
Para alguns, o gás a R$30,00 ou a R$150,00 não tem a mínima importância. Para milhões de brasileiros, é a diferença entre ter ou não ter o que comer. Para alguns, tanto faz se o transporte coletivo custa R$3,00 ou mais. Para a maioria, isso inviabiliza o direito de ir e vir.
 
6) O maior meio de comunicação do Brasil não é mais a Rede Globo.
Também não é mais o Facebook, que está a caminho de se tornar um Orkut. O maior meio de comunicação, aqui e em muitos outros países, é o WhatsApp.
Além das inovações tecnológicas, o que promoveu essa nova mídia foi a decadência da mídia tradicional e o desejo de muitos em questionar o que recebem de informação e entretenimento.
Os grupos tradicionais de mídia do país cavaram sua própria sepultura quando, desde muito tempo atrás, trataram presidentes nacionalistas como criminosos, enquanto alguns dos presidentes mais desastrosos foram elevados ao patamar de heróis. Temer chegou a ser saudado como a mais rápida "saída para a crise". 
Em menor escala, é incrível como Pedro Parente seja ainda considerado por essa mesma mídia como modelo de eficiência, mesmo depois de ter levado o país ao colapso.
 
7) Você informa, você edita, você cuida.
As pessoas precisam estar mais atentas ao que dizem e compartilham e interagir mais na checagem de informações do que em seu repasse. Devem ser menos crédulas em relação ao que recebem e questionar: "a quem interessa esse tipo de informação?" Quando receber uma mensagem pedindo "repasse", não repasse. Pense. Quando a mensagem diz "repasse sem dó", tenha dó, não repasse.
Os que usam novas mídias (WhatsApp, Facebook, Twitter, Instagram etc) são agora editores de opinião e curadores de notícias - organizam e filtram o que seus familiares e amigos lerão, verão e ouvirão. Isso quando não são elas a própria notícia. Por isso, deveríamos pensar melhor, refletir mais, estudar os assuntos com mais profundidade e evitar acreditar em quem muito grita e muito xinga; em quem faz de preconceitos uma profissão de fé; em quem é adepto da violência como a melhor alternativa para os problemas sociais, econômicos e políticos do país. As pessoas precisam aprender a distinguir melhor boato x informação; sentimento x ressentimento; opinião x preconceito; piada x "bullying". Precisam saber que ódio não é argumento, muito menos solução.
 
8) Resista ao efeito manada.
Boa parte das pessoas, embora de boa fé, agiu pelo efeito manada. Em outras palavras, se comportou como gado. Saiu correndo, desembestada, ao ouvir o primeiro estampido. Quando alguém aparece em um áudio dizendo que faltará alimentos, o que fazemos? Corremos para fazer a compra do mês? Quando o carro está com 3/4 de tanque cheios, o que fazemos? Aceleramos para chegar rápido ao posto mais próximo e esperamos um dia inteiro para completar o tanque?
Quem fez isso contribuiu muito para o rápido desabastecimento do país durante a greve dos caminhoneiros. Quando pessoas tomam atitudes egoístas, elas acabam causando prejuízos coletivos que afetarão elas mesmas em maior escala. Quando você receber uma mensagem que faça referência a Ayn Rand, a filósofa do egoísmo que ensina que as pessoas devem pensar apenas nelas próprias e em mais ninguém, pense nisso.
 
9) Defenda a solidariedade a todo momento, mas sem unhas e dentes.
Quando a solidariedade é recriminada como coisa de "esquerdistas", "comunistas", "venezuelanos", "cubanos" etc, é sinal de que a estupidez está no comando; de que o bom senso é o produto mais em falta no mercado; de que a vida em comunidade está em liquidação. Que tal evitarmos o efeito manada de transformar conceitos e vocábulos em adjetivos pejorativos? Lembremos, pelo menos, que "venezuelano" é um substantivo, um gentílico, e apenas indica o país onde essa pessoa nasceu, e não necessariamente o que ela pensa. Raciocínios com base em conceitos estigmatizados são um sinal de envenenamento do debate. É bom você se desintoxicar das fontes que fornecem esse lixo diariamente. Se tiver algum dinheiro sobrando, vá a Cuba. É um país sensacional que sabe receber estrangeiros muito bem. Depois, compartilhe o que você achou do passeio.
 
10) Sindicatos são importantes. Precisam ser valorizados.
Muitas pessoas vinham nutrindo ódio a sindicatos, a sindicalistas e a greves. Perceberam até que não é preciso sindicatos fortes para chamar grandes mobilizações e confrontar governos que pisam sobre a cabeça de seus cidadãos. Mas também viram que, se não houver representação legítima e sem organizações sindicais fortes, capazes de conduzir negociações e fechar acordos, as mobilizações podem ser sequestradas por interesses escusos de quem pretende deixar a sociedade de joelhos.
 
11) A revolta social assume as formas mais imprevisíveis e se dissemina pelos meios mais improváveis.
Há 50 anos, a revolta do maio francês começou como uma singela mobilização de estudantes contra regras rígidas de separação dos alojamentos estudantis em alas femininas e masculinas. A estudantada queria a chance de ter apartamentos mistos. Ninguém imaginou que ali nascia um dos movimentos mais marcantes do século XX, cujas mensagens mais emblemáticas foram escritas em muros. A greve dos caminhoneiros se disseminou via mensagens de WhattsApp. A grande questão não está em como tudo começa, mas para onde somos levados e em como tudo termina.
 
12) A repressão é a pior resposta que podemos dar a problemas mal compreendidos.
A violência do Estado ataca apenas as consequências e é incapaz de enxergar as causas que geram tantas chagas abertas e dolorosas. De fato, a desigualdade é nosso principal problema, mas até hoje a maioria dos brasileiros não percebeu tal fato. Quantos já leram isso em um parachoque de caminhão? Sinal de que a estrada a percorrer é mesmo longa.
 
13) Estamos enfrentando problemas ou só brigando com as consequências.
Estamos refletindo e aprendendo com o que fizemos ou continuamos achando que o mais importante é criminalizar alguém? Estamos contribuindo para tornar o país mais solidário ou para disseminar o egoísmo e o caos? Nós lutamos por avanços ou para fazer o Brasil retroceder 20 anos em dois?


(*) Antonio Lassance é cientista político.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

PARA SALVAR A HUMANIDADE DO DESASTRE: "O BEM VIVER"

http://www.ihu.unisinos.br/579449-para-salvar-a-humanidade-do-desastre-o-bem-viver
"Por que falamos de “bem viver”? Em primeiro lugar, porque o tipo de desenvolvimento que temos hoje vai nos levar ao desastre.", escreve Ivo Lesbaupin, sociólogo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro da ONG Iser Assessoria do Rio de Janeiro, em artigo publicado por Portal das CEBs, 28-05-2018.

Eis o artigo.

O “bem viver”

Bem viver” é uma concepção de vida proveniente dos povos indígenas andinos, presente tanto nos Aimara (Bolívia) quanto nos Quechua (Bolívia e Equador), e também dos povos Guarani (BrasilParaguai): Suma Qamaña em aimara, Sumak Kawsay em quechua, Teko Porã em guarani. Não tem uma definição única, mas podemos indicar alguns elementos comuns. Segundo esta concepção, não existe de um lado o ser humano e de outro a natureza, mas todos – seres humanos e demais seres – fazem parte da natureza. Com ela devemos viver de forma harmoniosa: “para a perspectiva do Viver Bem, a natureza não é um objeto; não é uma fonte de recursos e matérias primas; é um ser vivo. Esta dimensão ecológica da realidade reconhece que a natureza é indivisível e intrinsecamente imbricada à vida dos seres humanos; somos parte da natureza” (Isabel Rauber).
Num artigo intitulado “Nem melhor, nem bem: viver em plenitude”, Esperanza Martinezdiz: “Só o fato de nos atrevermos a pensar que a meta é a plenitude e que a plenitude supõe relações de harmonia, não de hostilidade; condições de saúde, não de doença; relações de solidariedade, não de competição, nos leva a repensar a nós mesmos com a natureza e a superar a ideia cultivada na modernidade e santificada pela ciência ocidental (a religião) de que a natureza é algo hostil, que devemos dominar para sobreviver, e que aqueles que sobreviverão sempre serão os mais fortes” .
Duas coisas são centrais no bem viver: o sentido de pertença à natureza e o sentido da comunidade.
Para o economista equatoriano Pablo Dávalos, “essa noção foi recriada a partir de uma confirmação das vivências ancestrais dos povos indígenas e de sua forma de construir sua socialidade e sua relação com a natureza. Na recuperação de suas formas ancestrais de convivência, os povos indígenas encontraram, de um lado, as formas políticas de resistência ao capitalismo e à modernidade e, de outro, as alternativas para esse mesmo sistema capitalista. (…)
Sumak Kawsay propõe, além disso, uma forma de relacionamento diferente entre os seres humanos, na qual a individualidade egoísta deve se submeter a um princípio de responsabilidade social e compromisso ético, e um relacionamento com a natureza no qual esta é reconhecida como uma parte fundamental da socialidade humana. (…)
A noção do Sumak Kawsay quer tornar a sociedade responsável pela maneira através qual produz e reproduz suas condições de existência, a partir de uma lógica marcada pela ética, na qual as situações particulares formam o interesse geral, e o bem-estar de uma pessoa não se constrói sobre os demais, mas sim baseado no respeito aos outros, isto é, meu bem-estar pessoal depende do bem-estar dos demais” .

Priorizar a vida (não apenas a vida humana)

Em seu livro sobre o “bem viver”, Alberto Acosta afirma: “Com sua proposta de harmonia com a Natureza, reciprocidade, relacionalidade, complementariedade entre indivíduos e comunidades, com sua oposição ao conceito de acumulação perpétua, com seu regresso a valores de uso, o Bem Viver, uma ideia em construção, livre de preconceitos, abre as portas para a formulação de visões alternativas de vida. (…)
Bem Viver, sem esquecer e menos ainda manipular suas origens ancestrais, pode servir de plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos devastadores efeitos das mudanças climáticas e às crescentes marginalizações e violências sociais. Pode, inclusive contribuir com uma mudança de paradigmas em meio à crise que golpeia os países outrora centrais. Neste sentido, a construção do Bem Viver, como parte de processos profundamente democráticos, pode ser útil para encontrar saídas aos impasses da Humanidade. (…)
Sem minimizar a contribuição indígena, temos de aceitar que as visões andinas e amazônicas não são a única fonte inspiradora do Bem Viver. Em diversos espaços do mundo – e inclusive em círculos da cultura ocidental – há muito tempo se têm levantado diversas vozes que poderiam estar em sintonia com essa visão, como os ecologistas, as feministas, os cooperativistas, os marxistas e os humanistas” .
Por que falamos de “bem viver”? Em primeiro lugar, porque o tipo de desenvolvimento que temos hoje vai nos levar ao desastre. A humanidade está caminhando rapidamente para tornar a Terra inabitável: estamos desmatando numa velocidade incrível por toda parte, seja para vender a madeira, seja para exportá-la, seja para dar lugar a grandes pastagens e plantações. As florestas são fundamentais para garantir a biodiversidade, mas também, entre outras coisas, para termos chuvas regulares e lençóis freáticos abundantes.
Nossa água doce está sendo utilizada em uma quantidade muito acima de sua capacidade de reposição. Além disso, ela está sendo poluída pela falta de saneamento (despejo de esgotos diretamente nos rios), pelos agrotóxicos, pelas indústrias, pela mineração (na qual muitas vezes são usadas substâncias químicas). Nossos alimentos são cada vez mais envenenados pelos pesticidas e herbicidas – o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, à frente dos EUA.
A situação mais séria que estamos vivendo no que diz respeito ao meio ambiente é o aquecimento global – do ar, da água do mar, da terra. É evidente a influência humana no sistema climático – graças ao modo de produção atual – e as emissões recentes de gases de efeito estufa são as mais altas da história. O ar atmosférico e o oceano se aqueceram, os volumes de neve e de gelo nos glaciares diminuíram e o nível do mar se elevou. Desde meados do século XIX, o ritmo de elevação do nível do mar foi superior à média dos dois mil anos anteriores. O aquecimento global é fruto da utilização intensiva dos combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão) – que têm sido a principal fonte de energia na era industrial. O aquecimento provoca as mudanças climáticas a que temos assistido.
Nosso sistema econômico, para gerar lucro, precisa incessantemente produzir e vender. Desenvolvimento, para o capitalismo, é crescimento econômico: o indicador para medir o desenvolvimento é o PIB (Produto Interno Bruto): quanto mais produzir e quanto mais gastar, mais desenvolvido é o país. Mas o PIB não se preocupa com o ser humano: por exemplo, se houver muitos acidentes, o PIB aumenta, porque há mais gastos em saúde. Isto não quer dizer que a população melhorou de vida.
A natureza é considerada como um objeto a ser explorado. O capitalismo não leva em consideração que a Terra é finita, seus recursos são limitados. Alguns desses recursos não são renováveis e, por causa do consumo excessivo, em algum momento vão deixar de existir. Outros são renováveis, mas a velocidade com que estão sendo utilizados e a insustentabilidade de seu uso fazem com que não haja tempo de regeneração.

Caminhos de bem viver

Precisamos redefinir o desenvolvimento não como crescimento econômico (produtivismo-consumismo), mas “como um processo de desdobrar conscientemente os potenciais inerentes a cada um e a todos os seres humanos, indivíduo, família, comunidade, nação, assim como a espécie humana como um todo” (Marcos Arruda) .
Se continuarmos organizando a economia como sempre organizamos, produzindo e consumindo sem cessar, utilizando os combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão), o sistema ecológico da Terra entrará em colapso. Além de um certo patamar, o aumento da temperatura (+ de 2º C, por exemplo), provocará mudanças climáticas mais fortes que as atuais: secas intensas ou chuvas excessivas e inundações, temperaturas altas ou baixas demais, perda da capacidade de reposição da água, tornados e ciclones, e assim por diante.
O bem viver nos inspira para pensar novas formas de viver que superem a concepção produtivista-consumista, depredadora da natureza, que leve em conta as exigências e os limites da Terra, que permita extrair dela meios de vida sem destruir as condições de vida. Não se trata de voltar atrás e todos retornarem à vida no campo. Trata-se de se apoiar nos seus princípios de vida para pensar e organizar a nossa vida social em convivência com a natureza e não em confronto com ela, em harmonia entre nós e não em guerra.
Só há um caminho para evitar este desastre anunciado pelos cientistas e reforçado pelo Papa Francisco em sua encíclica “Cuidar da Casa Comum” (Laudato Sí): mudar a forma como fazemos a economia, mudar a maneira como organizamos a sociedade. É possível! Em várias áreas e setores, já sabemos a solução. Por exemplo, no caso da alimentação, podemos abandonar a agricultura à base de agrotóxicos e transgênicos e produzir alimentos saudáveis: é a agroecologia. Em vários lugares do Brasil e do mundo, há regiões onde se pratica a agroecologia e se produzem alimentos orgânicos. O que falta é tornar esta prática uma política pública para toda a agricultura, para todo o país e não apenas em alguns poucos lugares.
Nós podemos – e devemos – substituir a energia produzida com combustíveis fósseispelas energias renováveis – solar, eólica (ventos), oceânica, geotérmica etc. Veja bem, não basta trocar de energia, é preciso trocar também o modo como ela é feita. A energia tem de estar a serviço da sociedade, da comunidade, das pessoas: portanto, uma empresa não pode entrar numa área determinada e instalar suas torres de catavento às custas do bem estar dos trabalhadores rurais ou dos moradores que vivem aí. Energia é uma serviço público, não é um negócio qualquer: seu objetivo é servir às necessidades das pessoas. Portanto, a localização das torres é algo a ser pensado e discutido com as comunidades.
Nós somos um dos países que mais recebe irradiação solar por ano, praticamente em toda parte. Poderíamos ser o primeiro país em tecnologia deste tipo de energia, não precisamos de mais usinas hidrelétricas, o sol é mais que suficiente para nós. A energia solar permite a instalação em regiões afastadas, isoladas. Precisamos valorizar a descentralização da produção de energia, não construir grandes usinas solares, repetindo o erro dos megaprojetos de usinas hidrelétricas. A energia é um serviço para a sociedade, deve portanto ser regulada pelo poder público junto com os cidadãos/ãs.
Quem resolveu o problema da água no semiárido nordestino? Foi a sociedade civil, foi o esforço dos trabalhadores rurais, com a colaboração de técnicos solidários, com o apoio de inúmeras organizações da sociedade civil, a partir da experiência e da criatividade dos que vivem do trabalho na região. Hoje, o sucesso das cisternas para consumo humano e para a produção e todas as demais tecnologias sociais que são usadas na região, permite enfrentar os períodos de pouca chuva.
Temos de parar de extrair minérios da terra. Um pequeno país da América CentralEl Salvador, conseguiu em 2017 uma vitória extraordinária: proibiu a exploração de minerais metálicos. Foi o resultado de uma luta que durou anos dos movimentos sociais com o apoio das Igrejas e chegou a este resultado. Um economista estudioso da questão ambiental considera que nós não temos de extrair mais nada. O que já foi extraído é suficiente: de agora em diante, devemos só utilizar materiais reciclados.
Para mostrar que isto é possível, ele exemplifica que, em 2003, nos Estados Unidos, cerca de 71% de todo o aço produzido provinha da recuperação. “A taxa de reciclagem de aparelhos domésticos nos EUA chega a 90%” (Lester Brown) . Na Europa, esse índice se aproxima de 95%.

Repensar

Precisamos repensar a cidade: a cidade para o bem-estar dos habitantes (e não para os carros). Pensar a construção das habitações de modo que os materiais utilizados sejam poupadores e geradores de energia. É preciso repensar os transportes urbanos, investindo num sistema de transporte misto, diversificado, transporte público – apoiado principalmente nos trilhos (trem, metrô, bonde/VLT) -, e também em linhas de ônibus com vias preferenciais, ciclovias e ruas para pedestres. Incentivar o uso da bicicleta – criando facilidades e oferecendo condições de segurança –, como já existe em alguns países.
Nesta nova concepção, é preciso repensar a própria fabricação de bens e o seu desmonte. A construção dos prédios deve ser de tal modo e com tais materiais que permita, no futuro, quando vierem a ser desfeitos, que os materiais possam ser reutilizados, reaproveitados. Os aparelhos devem ser produzidos de tal forma que possam ser desmontados, e todas as suas partes reaproveitadas. Devem ser feitos de modo a poderem ser consertados em vez de descartados, a poderem substituir apenas uma peça quando esta peça apresentar defeito. Eles devem ser feitos para durar, não para serem trocados em pouco tempo. Há produtos que poderiam ter garantia de dez, vinte anos ou mais, em vez de um ou dois anos.

Conclusão

A continuidade do modo atual de organizar a sociedade e a economia nos levará a catástrofes climáticas e à aniquilação da humanidade. Precisamos redirecionar a economia, para atender às necessidades das pessoas sem destruir as condições naturais que nos permitem viver. Portanto, não é o lucro o objetivo que deve nos orientar, mas a vida. Viver em harmonia entre nós e com a natureza.
Citações bibliográficas:
Alberto Acosta. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo, Autonomia Literária, Elefante, 2016, p. 33-34. A concepção do “bem viver” foi incorporada nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009). É uma iniciativa inédita e muito significativa. Não quer dizer, porém, que está sendo praticada: em ambos os países, já houve conflitos entre governos e alguns povos indígenas por conta da exploração dos recursos naturais.
Tornar real e possível, Petrópolis, Vozes, 2006, p. 216.
Lester Brown, “Mais economia, menos recursos”, 2011. Ver também sua obra fundamental: Plano B 4.0 – Mobilização para salvar a civilização. 2009 (veja original em inglês aqui; pode ser baixado em português aqui.)
Ver as cartilhas: Carlos Mesters e Francisco Orofino. Cultura do bem-viver, partilha e poder. Círculo bíblico sobre Fé e Política. CEBI e Iser Assessoria. 2013; Ivo Lespaupin. Para evitar o desastre: construir a sociedade do bem viver. São Paulo, Abong e Iser Assessoria, 2017, 44 págs. Pode ser baixada aqui

REDES DE AGROECOLOGIA COMO ALTERNATIVA À AGRICULTURA INDUSTRIAL

SE ESSA FOR A ALTERNATIVA POLÍTICA APOIADA PELA SOCIEDADE BRASILEIRA, NÃO TEREMOS MAIS A AMEAÇA DE DESABASTECIMENTO ALIMENTAR COM UMA PARALISAÇÃO DE CAMINHONEIROS. JÁ TEMOS CAPACIDADE TÉCNICA. SÓ FALTA DECISÃO POLÍTICA.

VEJAM ENTREVISTA COM PAULO PETERSEN, ESPECIALISTA NA ÁREA DA AGROECOLOGIA.

http://www.ihu.unisinos.br/579458-redes-de-agroecologia-como-uma-alternativa-a-agricultura-industrial-entrevista-especial-com-paulo-petersen
“Um dos principais objetivos da agroecologia é construir sistemas agroalimentares localizados, aproximando a produção do consumo. Isso só é possível quando os atores dos territórios se articulam em redes para retomar a autonomia sobre os processos de produção, transformação, comercialização e consumo”, diz Paulo Petersen, coordenador executivo da AS-PTA e membro do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, à IHU On-Line. Na avaliação dele, a transição de um modelo agrícola industrial para um modelo baseado na agroecologia depende do estímulo do Estado a partir de políticas públicas adequadas.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Petersen chama atenção para a importância dos arranjos em redes territoriais para que a agroecologia seja adotada como referência teórico-metodológica para reorganização dos sistemas agroalimentares. “Nesta semana estamos assistindo a uma grave crise de desabastecimento, que tem muito a ver com o modelo dominante de desenvolvimento agrícola e de abastecimento alimentar. Essa crise revela o grau de vulnerabilidade desse modelo. Uma greve de caminhoneiros de alguns dias foi suficiente para que o sistema entrasse em colapso. Essa é uma demonstração da inviabilidade de uma lógica de abastecimento alimentar que depende do transporte a grandes distâncias e que faz com que os territórios importem cada vez mais o que consomem e exportam cada vez mais o que produzem. Seja por razões ambientais, energéticas ou econômicas, esse padrão é insustentável, pois é estruturalmente dependente do consumo de combustíveis fósseis. Por essa razão, um dos princípios da agroecologia é a relocalização dos sistemas agroalimentares. E isso só é possível através de redes de âmbito territorial. Não serão os grandes conglomerados empresariais que assumirão a função de coordenar essas redes descentralizadas de produção e distribuição de alimentos”, afirma.
Na avaliação dele, o modelo agrícola industrial e o agroecológico são incompatíveis. Não podem conviver no espaço e no tempo. “Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos. Mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local não pode ser compatibilizado com outro que depende de se expandir territorialmente para manter as taxas de lucratividade de suas monoculturas e que, além disso, se vale de tecnologias que não respeitam divisas, como os agrotóxicos e os transgênicos. O apoio ao modelo do agronegócio acaba inviabilizando as possibilidades de expansão da agroecologia; essa é uma razão de crescentes conflitos territoriais no Brasil e no mundo.” E adverte: “Se quisermos de fato avançar com a agroecologia, é necessário retirar o apoio ao agronegócio. É possível seguir nesse caminho nos valendo de alternativas técnicas e econômicas que já existem e estão amplamente comprovadas”.
Paulo Petersen também comenta os principais objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que ocorre entre os dias 31 de maio e 3 de junho em Belo Horizonte. “Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, as redes territoriais de agroecologia vêm sendo construídas desde a década de 1980. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção a partir dos territórios e que ela depende muito das iniciativas em rede dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores.”
Paulo Petersen também comenta os principais objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que ocorre entre os dias 31 de maio e 3 de junho em Belo Horizonte. “Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, essas redes de agroecologia vêm sendo construídas historicamente desde a década de 1980 até os dias de hoje. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção feita nos territórios e que ela depende muito das iniciativas dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores.”
Paulo Petersen| Foto: Roberto Ornellas
Paulo Petersen é graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa, mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural pela Universidad Internacional de Andaluzia e doutor em Estudos Ambientais pela Universidad Pablo de Olavide. Atualmente é coordenador-executivo da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia - AS-PTA, vice-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia - ABA-Agroecologia e editor-chefe da revista Agriculturas: experiências em agroecologia. É membro dos Conselhos Editoriais das revistas Agroecology and Sustainable Food Systems - ASFS, da Revista Brasileira de Agroecologia e da Coleção Transição Agroecológica (Embrapa). Também integra a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – CNAPO.
Confira a entrevista. 
IHU On-Line — O que são as redes territoriais de agroecologia? Como e desde quando elas estão sendo organizadas no país?
Paulo Petersen — Redes territoriais é um conceito que vimos empregando para analisar as experiências de construção da agroecologia. O entendimento é que a agroecologia é uma construção social realizada de baixo para cima e que se materializa nas experiências de vários sujeitos articulados nos territórios em que vivem, produzem e consomem.  À medida que se articulam, estabelecem as redes, que são arranjos sociotécnicos  identificados com os princípios e as práticas da agroecologia.

Agroecologia como uma construção em rede

agroecologia, nesse sentido, é uma construção social em rede. Quando falamos em redes de agroecologia, queremos dar visibilidade ao fato de que a agroecologia não se estabelece como uma alternativa efetiva ao modelo dominante a partir de experiências isoladas de famílias ou de organizações. As iniciativas de agroecologia só ganham densidade social quando articulam vários atores que assumem papéis complementares na estruturação dos sistemas agroalimentares. Embora sempre tenham existido, essas redes locais são muito pouco visíveis aos olhos dos poderes públicos.
As redes envolvem não só os produtores de alimentos, mas também agentes que atuam nas etapas do processamento, da distribuição e do consumo. Envolvem ainda atores dedicados à produção de conhecimentos em universidades, institutos técnicos e escolas (estudantes, professores, pesquisadores), muitos deles reunidos em núcleos de agroecologia existentes nessas instituições. Essas redes mobilizam recursos de diferentes políticas públicas. Essa é uma constatação muito importante porque o território é o espaço no qual a agroecologia é construída a partir da ação coletiva. Normalmente, as políticas públicas para a agricultura são orientadas diretamente para as unidades de produção, para os estabelecimentos rurais, como se os territórios fossem conformados pela soma de pequenas empresas vinculadas aos grandes e distantes mercados. Ocorre que, sem a ação coletiva na esfera dos territórios, a agroecologia não ganha escala, construindo canais diversificados de escoamento entre a produção e o consumo. Essa é uma ideia-chave que vamos debater no IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA, que será realizado nesta semana em Belo Horizonte.
Um dos momentos chaves do ENA será analisar como, em diferentes biomas, essas redes vêm sendo construídas desde a década de 1980. Queremos mostrar que a agroecologia é uma construção feita nos territórios e que ela depende muito das iniciativas dos atores da sociedade civil e de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam as ações desses atores. O lema do encontro é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”. Esse lema foi definido em função de nossa constatação de que o enfoque agroecológico para o desenvolvimento dos sistemas agroalimentares contribui parademocratizar as relações sociais entre os agentes econômicos envolvidos na produção, na distribuição e no consumo, para democratizar o acesso a alimentos de qualidade, que deixa de ser privilégio para os que podem pagar caro. Em última instância, contribui para democratizar o próprio Estado, que passa a reconhecer nas organizações da sociedade civil um papel essencial na coprodução das políticas públicas. Além disso, ao orientar processos de relocalização dos sistemas agroalimentares, a agroecologia contribui para construir vínculos mais estreitos entre a produção e o consumo. Portanto, essa ideia de unir o campo com a cidade expressa exatamente o fato de que a agroecologia não é uma agenda só rural, mas de toda a sociedade.

Crise de abastecimento

Esta semana estamos assistindo a uma crise de desabastecimento que revela a vulnerabilidade do modelo de desenvolvimento agrícola e de abastecimento alimentar. Uma greve de caminhoneiros de alguns dias foi suficiente para a interrupção do abastecimento nas cidades. Assistimos também à morte de milhões de aves, que morreram de fome por conta da interrupção da entrega das rações. Toneladas de alimentos perecíveis foram descartados. Essa é uma demonstração eloquente da insustentabilidade do modelo agrícola baseado na produção em escala, na especialização produtiva e na distribuição a grandes distâncias. Nesse modelo,  os territórios importam cada vez mais o que consomem e exportam cada vez mais o que produzem. É nesse sentido que os agroecológicos insistem na necessidade de relocalizar os sistemas agroalimentares. E isso só é possível através da conformação de redes de âmbito territorial. Não serão os grandes conglomerados empresariais que assumirão a função de coordenar essas redes descentralizadas de produção e distribuição de alimentos. Nesse sentido, relocalizar os sistemas  agroalimentares significa descentralizar o poder de comando sobre os fluxos de produção e consumo. Atualmente esse poder está fortemente concentrado em poucas corporações transnacionais que agem globalmente como verdadeiros impérios alimentares já que exercem crescente poder de comando à distância dos sistemas de produção e de abastecimento alimentar em diferentes países e territórios.
IHU On-Line — Em que regiões e biomas do país as redes de agroecologia estão mais estabelecidas?
Paulo Petersen — As reflexões no IV ENA serão realizadas a partir de experiências provenientes de todos os biomas. É bem verdade que são iniciativas bastante diferenciadas entre si. É muito diferente falarmos da agroecologia nos Pampas, na Caatinga e na Amazônia. Há distinções na formação histórica das agriculturas nessas diferentes porções do território brasileiro. Nas regiões em que o projeto de modernização agrícola mais avançou, levando consigo as monoculturas e os pacotes tecnológicos da Revolução Verde, os sistemas agroalimentares locais tendem a ser mais desestruturados. Já nas regiões em que ainda existem padrões tradicionais de agricultura a agroecologia assume feições totalmente diferentes. Seja como for, é possível demonstrar que em todas as regiões existem experiências significativas de agroecologia. Apesar das expressões práticas muito diferenciadas entre elas, é possível identificar princípios comuns, como o uso sustentável da biodiversidade, o emprego de saberes locais, a valorização das culturas alimentares regionais, a construção e gestão de mercados locais, o reconhecimento e a valorização do trabalho das mulheres, o respeito aos meios e modos de vida de povos e comunidades tradicionais.
No IV ENA serão realizados debates sobre as redes territoriais a partir de exemplos sistematizados em todos os biomas. Além disso, haverá um debate sobre estratégias da agroecologia para enfrentar o desafio do abastecimento alimentar nas grandes cidades, particularmente nas regiões consideradas desertos alimentares, onde populações socialmente vulneráveis têm dificuldade de acessar alimentos de qualidade. Outro espaço discutirá as especificidades das redes de agroecologia estruturadas no litoral, envolvendo comunidades de pescadores artesanais, populações tradicionais e agricultura familiar.
Vamos retomar a partir desse encontro, com o apoio da Fiocruz, uma iniciativa iniciada há muitos anos e que vem sendo mantida em latência nos últimos tempos. Trata-se do sistema de informação Agroecologia em Rede, uma base de dados acessível na internet sobre as iniciativas desenvolvidas pelas redes de agroecologia disseminadas pelo país. Embora esse sistema não se proponha a registrar a totalidade das redes de agroecologia e suas experiências, o que seria virtualmente impossível, ele permite oferecer um quadro bastante representativo das diversificadas formas em que a agroecologia se expressa no país. 
IHU On-Line — Qual é o desafio da agroecologia nas metrópoles? Que tipos de experiências existem?
Paulo Petersen — Nas duas últimas décadas o perfil da alimentação tem mudado muito no país por conta do crescente controle corporativo sobre a alimentação. Osproblemas de saúde associados à má alimentação crescem vertiginosamente. O Brasil saiu do mapa da fome da FAO. Por outro lado, é como se tivesse entrado no mapa da obesidade e das doenças crônicas associadas à má qualidade da alimentação, sobretudo com o consumo de produtos ultraprocessados. Essa questão nos desafia a pensar como será possível fazer com que a população volte a se alimentar, como diz o Guia Alimentar Brasileiro, com comida de verdade e não com ultraprocessados. Esse desafio vem sendo enfrentado a partir de experiências em grandes cidades do país. As compras institucionais, por exemplo, são uma poderosa estratégia para abordar essa questão — existem exemplos de municípios que deram passos importantes nesse sentido em relação à alimentação escolar e ao programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar.
Iniciativas desse tipo possibilitam a criação de circuitos de escoamento da produção e fazem com que alimentos de qualidade cheguem para populações que não dispõem de recursos financeiros para adquiri-los nos mercados. E esse é outro problema a ser enfrentado. Alimentos de qualidade, como os certificados como orgânicos, são consumidos somente pelos que podem pagar os elevados preços praticados em mercados de nicho. Isso é uma coisa inconcebível, porque alimentação de qualidade é um direito humano. É preciso haver uma intervenção pública sobre os mercados de alimentos a fim de garantir que toda a população tenha assegurado o direito de consumir alimentos de boa qualidade. Essa é uma questão de direitos e de saúde. A gestão passada da prefeitura de São Paulo organizou uma experiência bastante consistente no sentido de disponibilizar a produção de origem camponesa para a alimentação escolar em bairros populares. Infelizmente, a prefeitura atual não deu continuidade a essa iniciativa. Pior, apresentou como alternativa para a alimentação escolar a aberrante proposta da farinata, um granulado composto por alimentos que possuem datas de vencimento próximas.
Outra vertente relevante para as estratégias de abastecimento alimentar nas grandes cidades é a agricultura urbana, ou seja, a produção de alimentos nas cidades. Essa é uma prática que cresce em todo o mundo, inclusive no Brasil. São muitas as experiências populares de agricultura urbana e periurbana. Elas são muito significativas exatamente porque são orientadas à parcela da população mais vulnerável à insegurança alimentar e nutricional. É evidente que a produção local não é capaz de abastecer as demandas de grandes metrópoles. Mas é preciso desenvolver estratégias combinadas que passam necessariamente por democratizar os mercados de alimentos, que são cada vez mais controlados por grandes redes de varejo. A revalorização das feiras livres e a criação de redes de feiras agroecológicas são caminhos importantes a serem trilhados para democratizar o acesso ao alimento de qualidade.
IHU On-Line — Aqueles que defendem o uso da agricultura em larga escala e o agronegócio argumentam que eles são importantes para dar conta da produção de alimentos. De outro lado, aqueles que defendem a agricultura familiar afirmam que ela é responsável pela produção de aproximadamente 70% dos produtos consumidos no país. Diante dessas posições, você diria que é possível substituir o atual modelo agrícola do agronegócio por um modelo agroecológico? Quais são os desafios nesse sentido?
Paulo Petersen — A substituição de um modelo por outro deve ser encarada como uma necessidade imperiosa porque a agricultura industrial e os sistemas industriais de processamento e distribuição são responsáveis diretos pela geração de um conjunto combinado de impasses enfrentados pela humanidade. Esse padrão de produção, transformação e distribuição responde por cerca da metade da emissão dos gases de efeito estufa. Portanto, o problema das mudanças climáticas está diretamente associado a esse padrão agrícola. Por outro lado, a agricultura é o setor econômico mais afetado pelas mudanças climáticas. Trata-se de um modelo que destrói as bases ecológicas necessárias para a sua própria reprodução a médio e longo prazos. A agroecologia aponta para a necessidade de mudanças estruturais nos padrões de organização dos sistemas agroalimentares. Isso foi recentemente confirmado pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), que acaba de organizar um simpósio internacional, em Roma, com o objetivo de debater os desafios para o aumento da escala da agroecologia como estratégia para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS. Esse simpósio é uma constatação da FAO sobre a necessidade da mudança do padrão de desenvolvimento agrícola dominante. Evidentemente, essas constatações que estão cada vez mais presentes no mundo institucional, no meio acadêmico e nos movimentos sociais sofrem muita resistência por parte dos grandes beneficiários desse modelo, sobretudo o sistema financeiro e a agroindústria.
Nesse sentido, a questão a ser colocada não é se a agroecologia tem a capacidade para abastecer uma população mundial crescente. São fartas as evidências documentadas na literatura acadêmica no mundo inteiro que afirmam que a resposta a essa pergunta é sim, ou seja, a agroecologia tem capacidade de produzir de forma equivalente ou superior à agricultura industrial. Mas além dos resultados em termos de produtividade física é essencial que seja levado em consideração que a produção em base agroecológica produz externalidades positivas, ou seja, contribui para a geração de outros benefícios sociais e ambientais, enquanto a agricultura industrial só gera externalidades negativas. A questão em que deveríamos nos concentrar nessa quadra histórica da humanidade é quando e em que condições daremos início a uma transição socioecológica dos sistemas agroalimentares com base nos fundamentos da agroecologia. É certo que essa transformação não ocorrerá de golpe, de uma hora para a outra, mas como resultado de processos paulatinos apoiados por políticas públicas deliberadamente concebidas para tal fim. 
IHU On-Line — Que percentual de investimentos federais é destinado para a agroecologia em comparação com o agronegócio? Quais são as principais políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da agroecologia e quais são os desafios dessas políticas?

Paulo Petersen — Essa é uma questão de difícil resposta, pois uma política públicapode ser valorizada no território para apoiar a agroecologia e para apoiar o padrão produtivo do agronegócio. O recurso público é o mesmo. O que faz a diferença lá na ponta é a existência de atores que canalizam os recursos segundo uma racionalidade técnico-econômica ou outra. Essa é uma razão importante para considerarmos a existência das redes territoriais de agroecologia. Recursos do Pronaf, por exemplo, podem ser utilizados em um território para fortalecer iniciativas coerentes com as práticas agroecológicas. Mas se não tivermos uma rede bem estabelecida, esse recurso poderá ser utilizado para a produção de milho ou soja transgênicos. A política é a mesma, mas a mediação das relações até chegar no território e nos estabelecimentos faz com que o recurso seja orientado para um lado ou para o outro. Por isso é muito difícil termos um dado preciso sobre os recursos públicos destinados ao apoio à agroecologia.
O que é possível dizer é que a maior parte dos recursos públicos são orientados para apoiar o agronegócio. Por exemplo: enquanto a agricultura patronal recebe 120 bilhões de reais no Plano Safraa agricultura familiar recebe em torno de 22 bilhões. Isso não significa que esses 22 bilhões sejam destinados para a agroecologia. Muito pelo contrário. Boa parte dos recursos orientados para a agricultura familiar — que são recursos para crédito agrícola — são empregados para a compra de fertilizantes químicos, agrotóxicos, sementes comerciais, muitas vezes transgênicas. Nesse sentido, trata-se de uma política para a agricultura familiar que acaba por induzi-la a incorporar a lógica técnico-econômica empresarial.
Agora, alguns programas mostraram grande aderência com as práticas da agroecologia. Dou como exemplo o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar — o PAA. Esse programa — que existiu enquanto mecanismo de compra antecipada e doação de alimentos — fortaleceu muito as iniciativas de redes de agroecologia no Brasil inteiro. Os recursos nunca foram muito elevados, mas foram essenciais para fortalecer pequenas organizações econômicas da agricultura familiar, para estimular a diversificação produtiva dos estabelecimentos familiares, inclusive com a revalorização econômica de produtos da sociobiodiversidade. Mostrou-se ao mesmo tempo como uma política de promoção da segurança alimentar e nutricional, de desenvolvimento rural e de conservação da biodiversidade. A coerência com a perspectiva agroecológica está justamente no fato de que é uma política de efeito multidimensional, pois há ganhos sociais, econômicos, ambientais e culturais, já que são revalorizadas práticas, valores e hábitos alimentares que estão sendo perdidos com a disseminação da agricultura industrial.

IHU On-Line — Como o programa Ecoforte tem contribuído para o desenvolvimento de redes de agroecologia?

Paulo Petersen — programa Ecoforte parte exatamente dessas ideias que estou abordando. Ele foi uma proposição nascida da sociedade civil, particularmente de organizações vinculadas à Articulação Nacional de Agroecologia. Trata-se de um programa de apoio às redes territoriais de agroecologia. É uma das iniciativas integradas à Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica - Pnapo.
Pnapo é uma política que envolve vários ministérios e órgãos públicos e, por meio de um plano de ação e investimentos, o Planapo, procura dar coerência às políticas desses ministérios e órgãos no sentido de apoiar a agroecologia. Qual é o sentido inovador do Ecoforte? Em primeiro lugar, o fato de que o Estado reconhece a sociedade civil como protagonista na promoção da agroecologia a partir da conformação da ação em redes territoriais. Esse primeiro aspecto não é de pouca relevância em um Estado que historicamente teve resistência a reconhecer as organizações da sociedade civil como agentes de promoção e defesa do interesse público. Em segundo lugar, o fato de que o programa é implementado a partir de editais públicos por meio dos quais as redes elaboram e apresentam as suas propostas. Portanto, não estamos falando de projetos elaborados de cima para baixo a serem executados por organizações não-governamentais. São as próprias redes que são convidadas a elaborar suas propostas. Essa é uma expressão do que antes chamamos de democratização do Estado, isto é, o Estado e a sociedade coproduzindo políticas públicas. Então, as propostas que seguem para os diferentes territórios são, necessariamente, diferentes porque as realidades são distintas e essa é uma característica da agroecologia. Ou seja, não existe solução única válida para todo lugar; as soluções dependem do tempo e do espaço nos quais essas redes estão se desenvolvendo.
Existe uma série de critérios técnicos e de composição das próprias redes, que devem necessariamente envolver organizações diversificadas cumprindo diferentes funções, podendo ser elas estatais e não-estatais. Outro aspecto a ser considerado nos projetos submetidos aos editais do Ecoforte é a participação de mulheres, jovens, comunidades de assentados, povos indígenas e comunidades tradicionais. Todos esses são critérios classificatórios para a seleção dos projetos que indicam a determinação da política em reconhecer as especificidades de diferentes sujeitos de direitos das políticas públicas. Os recursos alocados são provenientes do BNDES e da Fundação do Banco do Brasil. O Ecoforte é uma experiência extremamente inovadora, muito coerente com os fundamentos técnicos e sociais da agroecologia. Estamos exatamente nesse momento realizando na ANA um esforço de sistematização dos resultados do primeiro edital do Programa Ecoforte de apoio às redes de agroecologia. No IV ENA haverá um seminário específico onde os resultados preliminares dessa sistematização serão apresentados e debatidos. Dados o caráter inovador do programa e o forte interesse internacional pelas iniciativas brasileiras de institucionalização da agroecologia, temos tido a oportunidade de divulgar o Ecoforte em diferentes espaços de debate, como no simpósio da FAO, por exemplo. Procuramos ali demonstrar que o Programa Ecofortenão substitui nem toma o lugar de outras políticas. A sua maior virtude é justamente é a de favorecer que elas sejam adotadas em sinergia segundo uma coerência estratégica definida pelas redes de agroecologia.
Arrisco a dizer que o Programa Ecoforte talvez tenha sido a maior das maiores inovações institucionais no âmbito da Pnapo. 
IHU On-Line — Quais são as dificuldades das redes territoriais diante do alto consumo de agrotóxicos e de transgênicos na agricultura?

Paulo Petersen — Essa é uma questão que tem sido muito discutida e que será objeto de debate no IV ENA. Foi também debatido no Simpósio da FAO a que me referi. O fato é que as redes territoriais de agroecologia não se desenvolvem sem conflitos nos próprios territórios em que estão estruturadas. Da mesma forma que existem redes de agroecologia, existem redes do agronegócio que disputam recursos e meios de produção. Como já disse, o Estado emprega a maior parte dos orçamentos de suas políticas no apoio aos arranjos produtivos do agronegócio, que se caracterizam por serem cadeias estruturadas verticalmente que vinculam as unidades de produção a agentes econômicos externos aos territórios.
Existe um discurso de que o Brasil é muito grande, que tem espaço para todo mundo e para todos os modelos. Mas o que temos avaliado, com a sistematização dessas redes de agroecologia, é que essa convivência é impraticável. Isso porque um modelo que se baseia na valorização e na conservação dos recursos naturais, na biodiversidade, na construção de mercados locais e na valorização da cultura alimentar local não pode ser compatibilizado com outro que depende de se expandir territorialmente para manter as taxas de lucratividade de suas monoculturas e que, além disso, se vale de tecnologias que não respeitam os limites dos estabelecimentos, como os agrotóxicos e os transgênicos. O apoio ao modelo do agronegócio acaba inviabilizando as possibilidades de expansão da agroecologia; essa é uma razão de crescentes conflitos territoriais no Brasil e no mundo. O que temos afirmado é o seguinte: se quisermos de fato crescer com a agroecologia, precisamos reduzir o apoio ao agronegócio.
Portanto, a proposição da convivência de modelos não é realista. Temos que, de fato, começar a colocar restrições a um sistema que é extremamente predatório. Nesse sentido, temos alguns exemplos, entre eles, a própria PNAPO. Na Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, da qual faço parte, foi elaborado um Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos - Pronara. Esse programa não tinha nada de radical. Não propunha uma ruptura com os agrotóxicos. Ao contrário, a proposta foi elaborada exatamente para reduzir a carga de agrotóxicos empregados nas lavouras, uma parte importante dela absolutamente desnecessária para os produtores. Muitos produtores que têm a perspectiva de produzir orgânicos são impossibilitados de levar a frente seus projetos porque a vizinhança produz com agrotóxicos; isso é uma verdadeira violação de direitos. Então, a proposta era começar a trabalhar com as alternativas que existem, porém não são estimuladas pelas políticas públicas, a começar pelo crédito agrícola.
Uma das ações do Pronara era direcionada à capacitação para o uso de alternativas técnicas aos agrotóxicos. Além de serem menos danosas para a saúde e para o meio ambiente, essas alternativas podem ser mais baratas. Evidencia-se mais uma vez o fato de que a perspectiva agroecológica induz a soluções tecnológicas do tipo ganha-ganha, nesse caso, ganham os agricultores, ganham os consumidores. Mas se é assim, por que essas alternativas não são mais incentivadas? Essa é a questão a ser respondida. Se temos alternativas técnicas, elas precisam ser colocadas em prática e estimuladas pelo Estado. Este foi o princípio do Pronara que, infelizmente, não saiu do papel.

IHU On-Line — Quais são os objetivos do IV Encontro Nacional de Agroecologia – ENA? Quais são os principais desafios em relação às redes territoriais de agroecologia?

Paulo Petersen — Como já disse, o lema do IV Encontro Nacional de Agroecologia é “Agroecologia e Democracia, unindo o campo e a cidade”. Esse lema tem muito a ver com a conjuntura nacional: sofremos um golpe institucional, que derrubou um governo legitimamente eleito. Estamos falando de um governo que tinha a escuta para a sociedade civil. Portanto, esse debate da democracia é fundamental, porque temos a consciência de que, sem um Estado que crie instâncias de diálogo em diferentes espaços, dificilmente a agroecologia prosperará.
aprofundamento da democracia é uma condição para o avanço da agroecologia. As políticas públicas de apoio à agroecologia ou para refrear o agronegócio são fundamentais. Essa é a nossa agenda principal. Assim, no encontro vamos repercutir como as redes de agroecologia estão enfrentando este momento atual em seus territórios. Sabemos que este é um momento de grande recrudescimento da violência no campo, com assassinato de lideranças e violência contra as mulheres e povos tradicionais, que têm seus direitos territoriais ameaçados. Isso tudo se dá por conta de uma lógica econômica expansiva, violenta e autoritária. Estamos fazendo esse debate não só para denunciar o golpe, mas para pensar estratégias para seguir adiante.
Temos, inclusive, que discutir com forças de esquerda que também têm dificuldades de entender a vitalidade dessas experiências e de entender que a sociedade civil precisa ser chamada para cogerir as políticas públicas. As experiências de agroecologia demonstram que o Estado sozinho não tem condições para construir e fortalecer sistemas agroalimentares democráticos e sustentáveis. Vamos fazer essa reflexão a partir da realidade dos territórios, porque 70% do encontro é composto por agricultores e agricultoras, quilombolas e indígenas, que vão trazer a voz dos territórios, que é a voz menos escutada. São nesses territórios onde as experiências de agroecologia são construídas. Precisamos aprender com essas experiências. Esse é o grande sentido do IV Encontro Nacional de Agroecologia.