segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

ATÉ ONDE IRÁ O CINISMO?

Ninguém desconhece que o salário mínimo recuperou relativamente seu poder de compra nos últimos anos. Nada muito significativo, porém. Afinal ele continua muito distante do que deveria ser se o que determina a Contituição Federal sobre salário mínimo fosse aplicado. Aqui o primeiro cinismo: quando a decisão se refere aos mais pobres, que recebem salário mínimo por seu trabalho ou igual valor em sua aposentadoria, as elites, os governos e a grande mídia fazem de conta que não conhecem a Constituição, mas a conhecem de cor e salteado sempre que algum privilégio das elitas, ainda presente na Constituição como se fosse "direito", é colocado em questão! Basta lembrar como os deputados e senadores conhecem e aplicam a norma constitucional na hora de aumentar seus próprios salários e demais privilégios, e como, além deles, também praticamente todos os juízes sempre estão prontos para defender grandes proprietários, muitos deles relés grileiros, para aplicar a Constituição que, para nossa desonra, não estabelece sequer o tamanho máximo e o número de propriedades que cada ricaço pode possuir!

Até perto do final do ano passado, a capacidade aquisitiva das mal denominadas "classe C e D" e seu desejo de comprar teria sido um dos fatores que ajudaram a enfrentar a crise internacional, reduzindo-a a uma simples "marola", nas palavras do ex-presidente Lula. Passados alguns meses e já em ação um novo governo, agora a continuidade de melhoria da capacidade de compra das mesmas "classes", remuneradas na base do salário mínimo, não pode mais acontecer, já que causaria desequilíbrio das contas públicas e seria fonte de crescimento da inflação. Como entender esse jogo de argumentos sem perceber que se trata de cinismo desbragado?

Na realidade da história, os pobres não causaram crise financeira internacional e nacional alguma; ela foi causada pelos desvarios dos donos e executivos dos grandes bancos e pela falta total de controle dos governos sobre essas loucuras. Assim mesmo, aos causadores da sua própria crise foram repassados em torno de 20 trilhões de dólares para evitar que quebrassem, pois seriam "grandes demais" e sua quebra provocaria uma quebradeira geral. Pergunto: será possível encontrar argumentos e práticas mais cínicas?

Voltemos ao nosso dramático problema na hora de definir o aumento do salário mínimo. O ministro da Fazenda Guido Mantega foi à Câmara dos Deputados, e contou com apoio incondicional do PMDB e das lideranças e ampla maioria dos petistas e demais partidos da "base" governamental, para argumentar que o salário mínimo com aumento restrito era absolutamente necessário para "garantir o equilíbrio fiscal" do Orçamento público. Uma vez mais, um cinismo quase perfeito! Por que não cobrar a devolução dos que foram beneficiados para enfrentarem a crise criada por eles próprios, e que retomaram a geração de bilhões e bilhões de reais de lucros, como no caso dos bancos e das fabricantes e revendedoras de aumtomóveis e outros produtos que foram liberados de recolher impostos para venderem mais? Na hora da crise desses poucos, generosidade, flexibilidade, repasse de recursos públicos - na forma de "renúncia fiscal". Pouco depois, na hora da urgente necessidade de reequilíbrio fiscal, só os que são remunerados a partir do salário mínimo são lembrados como contribuintes!

Se até articulistas conservadores reconhecem que não se chegará ao fim da crise financeira internacional sem que se cobre a devolução do que foi a eles erroneamente tranferido, e sem que os governos controlem o funciomento do capital financeiro, cabe-nos apenas perguntar: até quando nossos governantes continuarão decidindo políticas que têm a ver com a sobrevivência de milhões de brasileiros e brasileiras com argumentos cínicos, dando impressão de que tomam decisões com seriedade e responsabilidade, quando, na realidade, escondem as responsabilidades e ampliam os privilégios das elites econômicas, fazendo que o Brasil continue o sétimo país com maior desigualdade social, que é o reverso da concentração da riqueza e da renda em poucas e, por enquanto, poderosas mãos?

Há outro argumento eminentemente cínico: o de que se deve evitar o controle sobre os preços das commodities agrícolas, que dispararam porque estão sendo usados para especulação mundial, e já levaram à miséria mais 40 milhões de pessoas, para que o Brasil possa continuar tendo vantagens em sua balança comercial. Mas isso é assumto para outra reflexão crítica.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO X AMAZÔNIA


Já estava preocupado antes, mas o que pude ouvir das quase duzentas pessoas que participaram do Seminário Mudanças Climáticas promovido pela Prelazia de Óbidos me deixou preocupadíssimo. Mais do que isso: deu-me segurança para afirmar que os grandes projetos econômicos incentivados a toque de caixa pelo Programa de Aceleração do Crescimento na Amazônia já estão, com certeza, acelerando o aprofundamento dos desequilíbrios socioambientais na região e a levarão a um desastre socioambiental incalculável.

Ao examinar, na realidade e em mapas, a quantidade de território amazônico que vai sendo e será coberto pelas águas das barragens para produção de eletricidade; ao somar a ele a quantidade de áreas já ocupadas e desbravadas por mineradoras e as que estão em processo de concessão de alvará para pesquisa minerária; ao somar, ainda, as áreas destinadas à pecuária e à soja do agronegócio; ao juntar essas informações, não restam dúvidas sobre essa parte e, talvez, sobre toda a Amazônia: se não houver oposição eficaz, ela será totalmente modificada e depredada dentro de pouco tempo.

Quem assumirá as responsabilidades pelos efeitos desse processo sobre o aquecimento da região e de sua contribuição com o aquecimento global? Quem responderá as perguntas das próximas gerações, quando quiserem saber por que foram implementados esses grandes projetos quando havia possibilidade de gerar energia com fontes alternativas; quando já se devia diminuir a utilização de minérios; quando já existiam conhecimentos e possibilidades de produzir alimentos agroecológicos; quando já se sabia que o planeta exigia a diminuição do plantel de gado, por ser produtor de metano e ser grande consumidor de água e alimentos ricos em proteínas?

Uma das grandes contradições do tempo em que vivemos é essa: a Terra, já em desequilíbrio, precisa que as atividades econômicas capitalistas diminuam seu ritmo, mas as empresas capitalistas, e muitos governos, teimam em aumentar o ritmo de “destruição produtiva”, visando um tipo de economia que exige lucros crescentes, que exigem produção e consumo crescentes.

Esse conflito contraditório está absolutamente visível na Amazônia. Se os grandes projetos de exploração dos recursos da Amazônia – e praticamente só em benefício de grupos econômicos de fora do bioma -, serão vazios e ineficazes os compromissos anunciados pelo governo brasileiro, e estarão fadadas ao fracasso as políticas que anunciam objetivos de diminuição do desmatamento e de preservação da Amazônia. Se o governo quiser fazer algo sério deverá partir de um fato já comprovado: não há possibilidade de acordo entre as necessidades e direitos da Amazônia e dos amazônidas e os interesses das grandes empresas capitalistas.

Por isso, os amazônidas que desejarem viver, junto com seus filhos e netos, nesse maravilhoso bioma, bem como as pessoas, igrejas, entidades e governos que desejarem salvar a Amazônia como parte do que é absolutamente necessário para criar condições para que a Terra recupere seu equilíbrio em favor da vida, todos e todas, num grande mutirão cidadão, deverão lutar em favor de mudanças na visão e nas prioridades do governo federal e dos governos dos estados amazônicos.

Na verdade, todos e todas deveremos aceitar que precisamos enfrentar criticamente e mudar a civilização capitalista em que fomos criados, abrindo-nos para outras formas de produção, consumo, outras formas de convivência entre nós, com os demais seres vivos e com a Terra, mãe de toda a vida. Os povos indígenas da nossa América nos propõem o bem viver como caminho alternativo. Seremos capazes de acolher esta proposta que vem dos que foram sempre considerados os últimos dos últimos e que foram condenados, há cinco séculos, ao extermínio? Diversas religiões e o cristianismo nos avisam: é dos empobrecidos, como Jesus, que vêm boas notícias.

A LUA NASCE NO CÉU DE FRIBURGO

Publico o artigo de Sebastião Guerra porque nele está a reflexão que deve ser feita sobre o desastre socioambiental que atingiu a Região Serrana do Rio de Janeiro. Como ele insiste, não se pode permitir que a situação volte ao normal. O normal de antes tem tudo a ver com o que aconteceu. É preciso que se aprenda até mesmo com os desastres; é fundamental que de tantas mortes, que podiam e deviam ser evitadas, gerem realidades novas, em que a vida dos seres humanos, dos demais seres vivos e da Terra esteja no centro dos planos de ocupação e uso de tudo que constitui cada ecossistema. Total apoio a todas e todos que lutam pelo nascimento de novas formas de vida e convivência em Friburgo e em toda a Região Serrana. E que suas lutas e vitórias provoquem a todos a pensarem sobre o que deve ser feito, e de maneira nova, em cada território, para evitar que desastres socioambientais provoquem sofrimentos e morte.

A Lua cresce no céu de Friburgo
Sebastião Guerra
09 de fevereiro de 2011, lentamente a lua volta a crescer no céu de cada um de nós. Assim, mais ou menos de forma direcionada, mantemos nossos movimentos cotidianos externos. Cada um de nós, repletos de memórias densas, importantes e fecundas, lida como pode, no fundo da alma, na noite profunda de nosso interior com a riqueza doída e luminosa de estarmos vivendo 'estes dias' de nossas vidas, nestas serras queridas.

Nos últimos dias, algumas pessoas e a mídia em geral têm usado, em nome do desejo de criar uma onda positiva, otimista, uma frase que me dói: "Estamos finalmente voltando ao normal". Como assim, voltando ao normal? Se o normal é como era antes, não posso aceitar que voltemos a ele. O normal de antes, era feito de muitos interesses separados; seja por grupos sociais e econômicos; seja por grupos de famílias; seja por  religiões ou entre pessoas 'do bem e do mal'. O normal de antes era civilmente muito solitário, era feito de conselhos municipais esvaziados, envelhecidos antes de florescerem; era feito de instituições sociais importantes e maduras, atuando ingenuamente em nossa sociedade. O normal de antes tinha muito pouco tempo para solidariedade, para servir ao outro acima de tudo. E que fique claro, quando falo servir ao outro, não estou dizendo servir ao outro que precisa, que é pobre. Estou falando em construir uma sociedade de tal forma, que não se produza o acúmulo de bens por uns poucos. O normal de antes não tinha tempo para longas, gostosas, profundas e preguiçosas conversas ao redor da mesa de refeições ou na calçada de casa.

Sem dúvida, o normal de antes também tinha práticas de grande valor humano e potencial transformador. MAS...pouco, muito pouco, diante do tamanho da tarefa.

Nestes dias vivemos fora do normal. Ah, com certeza vivemos.

Nestes dias que passamos sem eletricidade, pude reaprender sobre o silêncio de nenhum motor funcionando, de nenhuma rede virtual ativa, de nenhum aparelho áudio visual emitindo estímulos; pude sentar com minha família, amigos e desconhecidos, na penumbra da luz de raras velas, e suspirar sob o sentimento humilde do tamanho dos meus braços, de minha força real de transformação e de ser ajuda. A eletricidade amplia nossa força de atuação e também nos ilude sobre nosso tamanho.

Nestes muitos dias que passamos sem água encanada e potável, pude reaprender sobre tudo que se lava com dois litros d´água(medida das  muitas garrafas pet que me chegaram). Pude conviver com os meus dejetos(urina e fezes)  e os de minha grande família, guardados dentro de nossos belos vasos sanitários sem água  e sentir a fragilidade e insanidade de nossa civilização que sequer sabe lidar com as fezes a não ser, dando descarga e se esquecendo del as. Pela falta d´água pude aprender os nomes de meus vizinhos, que comigo partilharam a água que tinham.

Nestes dias, no meio da lama fedida, buscando corpos, lavando corpos, enterrando corpos de pessoas amadas, pude aprender sobre o amor. Amor como cuidado; amor como honra ao que vive no outro, seja isto fato presente ou memória. A crueza inesperada das situações que vivemos não poderá ser expressa por palavras jamais, está muito além delas. O sentimento do que vivemos está buscando seus caminhos de expressão. Fiquemos atentos! Agora é tempo de contar histórias sobre o amor que descobrimos; amor cru, desnudo, amor enlameado. Contar muitas histórias entre nós e para outros que aqui não estiveram. Apesar da eletricidade ter voltado; apesar da água potável e encanada ter voltado; apesar de todas as redes virtuais terem voltado. Apesar de todos estes instrumentos mágicos da civilização estarem reestabelecidos, é simplesmente hora de sentar e contarmo-nos histórias, as histórias do amor que descobrimos; debaixo da lama, esta lama fecunda do que poderemos nos tornar.

Nunca mais voltarmos ao normal que era antes é o mínimo de honradez devida aos nossos queridos que se foram. Nunca mais voltarmos ao que era antes é o mínimo de responsabilidade frente a nós mesmos e a todas as crianças que sobreviveram, sobreviveram para o novo.

Nestes dias em que a lua volta a estar no mesmo lugar de um mês atrás, onde estamos nós? O que temos aprendido? Será possível caminharmos sem ingenuidades frente ao modelo de civilização que temos adotado: ele é brilhante, ilusório,  desumano, inodoro, definitivamente inodoro. Nosso modelo de civilização não suporta o cheiro libertador de lama de enchente.

(Sebastião Luiz de Souza Guerra - Consultor de processos de desenvolvimento, desde 1979 trabalha em instituições sociais, em especial as que atuam no âmbito da infância e juventude. É fundador da Associação Criançasdo Vale de Luz, onde desenvolveu habilidades de gestão organizacional e de apoio ao desenvolvimento de pessoas e de organizações sociais. Já atuou como professor e diretor de escolas, tendo sido diretor do Instituto de Educação de Nova Friburgo (1985/1986) e Coordenador Regional (Região Serrana do Rio de Janeiro) da FIA/RJ - Fundação para Infância e Adolescência, em 2002. Realizou estágios na área educacional na França e Suíça. É graduado em pedagogia, com especializações em Pedagogia Waldorf e Pedagogia Social. Também é músico e pratica e acredita na arte como instrumento de trabalho e de desenvolvimento pessoal e social.)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

AMAZÔNIDAS E AMAZÔNIA

Tive a alegria de participar do 1o Seminário sobre Mudanças Climáticas da Prelazia de Óbidos, localizada no oeste do Pará. Foi muito bom encontrar quase 200 pessoas apaixonadas pela Amazônia em que vivem, muito preocupadas com o que vai acontecendo neste bioma com a instalação apressada de empresas de mineração, de hidroeletricidade, de agronegócio, todas voltadas para a geração de lucros por meio da exportação. Esse tipo de progresso capitalista é uma ameaça ao que caracteriza a Amazônia e contribui para o desequilíbrio ecológico da região e do planeta.

Mas quero destacar a boa notícia do Seminário: muitos dos participantes estão diretamente envolvidos em projetos econômicos alternativos ao padrão predador capitalista, e o conjunto dos participantes decidiram favorecer a multiplicação e aprofundamento destas formas de reflorestar com plantas do bioma e que podem ser fonte de renda, de possibilitar a recuperação de espécies de peixes, tartarugas e outros animais da Amazônia, de cuidar da qualidade de vida nas cidades. E esta boa notícia conta com o reforço que vem da decisão firme da Prelazia do Óbidos de caminhar com as pessoas e povos que desejam e trabalham criativamente em favor de uma Amazônia em que seus povos vivam com qualidade humana convivendo com as riquezas e energias das águas, das florestas, da imensa biodiversidade.

Parabéns aos que organizaram e aos que participaram deste Seminário, e que seus compromissos, expressos numa Carta que será disponibilizada aqui logo que for enviada, sejam levados à prática para receberem a bênção da Terra e de Deus.