domingo, 30 de dezembro de 2018

NATAL DOS COVARDES

NATAL TEM QUE SER TODO DIA. É PRA NOS LEMBRAR DISSO QUE É CELEBRADO O DIA 25 DE DEZEMBRO. E É PRA LEMBRAR QUEM É, O QUE FEZ E O QUE SUGERIU DE CAMINHOS PARA A HUMANIDADE.

Natal dos Covardes*

Escrito por Marcelo Freixo.

O que diriam os pregadores da intolerância, os obreiros do justiçamento, os apóstolos do olho por olho dente por dente sobre um homem que manifestou seu amor por um ladrão condenado e lhe prometeu o paraíso? Brandiriam o velho sermonário: bandido bom é bandido morto?

Hoje, quase todos os brasileiros, inclusive os cônscios moralistas da violência que amarram adolescentes em postes para linchá-los, se reunirão com suas famílias para celebrar mais uma vez o nascimento desse homem.

Sujeito, aliás, que respondeu à provocação: está com pena? Então, leva para casa! Pois, é. Jesus Cristo prometeu levar o ladrão para casa. "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso", diz o evangelho de Lucas.

Jesus optou pelos oprimidos e renegados, pelos miseráveis, leprosos, prostitutas, bandidos. Solidarizou-se com o refugo da sociedade em que viveu, contestou a ordem que os excluiu.

O Cristo bíblico foi um dos primeiros e mais inspiradores defensores dos direitos humanos e morreu por isso. Foi perseguido, supliciado e executado pelo Império Romano para servir de exemplo.

Assim como servem de exemplo os jovens que são espancados e crucificados em postes, na ilusão de que a violência se resolve com violência. Conhecemos a mensagem cristã, mas preferimos a prática romana. Somos os algozes.

Questiono-me sobre o que seria dele em nossa Jerusalém de justiceiros. Não sei se sobreviveria. É perigoso defender a tolerância, o amor ao próximo e o perdão quando o ódio é tão banal. Como escreveu Guimarães Rosa: "quando vier, que venha armado".

Não é difícil imaginar por onde ele andaria. Sem dúvida, não estaria com os fariseus que conclamam a violência e fazem negócios, inclusive políticos, em seu nome.

Caminharia pelos presídios, centros de amnésia da nossa desumanidade, onde entulhamos aqueles que descartamos e queremos esquecer, os leprosos do século 21. Impediria que homossexuais fossem apedrejados, mulheres violentadas e jovens negros linchados em praça pública. Estaria com os favelados, sertanejos, sem tetos e sem terras.

Por ironia, no próximo Natal, aqueles que defendem a redução da maioridade penal, pregam o endurecimento do sistema prisional, sonham com a pena de morte e fingem não ver os crimes praticados pelo Estado contra os pobres receberão um condenado em suas casas.

Diante da mesa farta, espero que as ideias e a história desse homem sirvam, pelo menos, como uma provocação à reflexão. Paulo Freire dizia que amar é um ato de coragem. Deixemos então o ódio para os covardes.

Feliz Natal.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

EEUU: EM APOIO À DEMOCRACIA, AOS DIREITOS HUMANOS E AO MEIO AMBIENTE NO BRASIL

O DOCUMENTO QUE SEGUE É IMPORTANTE POR MOSTRAR QUE HÁ GENTE TAMBÉM NOS ESTADOS UNIDOS QUE SE PREOCUPAM COM O QUE ACONTECERÁ NO BRASIL. E REVELA TAMBÉM QUE HÁ MUITA SOLIDARIEDADE, PORQUE O QUE ACONTECE NO BRASIL - E TAMBÉM NOS ESTADOS UNIDOS - REPERCUTE EM TODA A TERRA.

Instituições globais e americanas fazem manifesto “em apoio à democracia, aos direitos humanos e meio ambiente no Brasil”

 
Publicado em 27 dezembro, 2018 7:42 pm
 

EM APOIO À DEMOCRACIA, AOS DIREITOS HUMANOS E AO MEIO AMBIENTE NO BRASIL
Enquanto o Brasil se prepara para a posse de Jair Bolsonaro como presidente, nós, as organizações abaixo-assinadas, desejamos expressar nossa profunda preocupação com as posições sustentadas pelo presidente eleito, que representam uma séria ameaça à democracia, aos direitos humanos e ao meio ambiente. Desejamos também reafirmar nosso apoio aos corajosos indivíduos e grupos no Brasil que lutam para defender os direitos e liberdades constitucionalmente protegidos em um ambiente cada vez mais desafiador.

O presidente eleito Jair Bolsonaro tem freqüentemente assumido posições que estão fundamentalmente em desacordo com os valores democráticos. Durante a campanha presidencial, ele afirmou que, se perdesse, não aceitaria os resultados das eleições. Ele defendeu avidamente a brutal ditadura militar do Brasil (1964-1985) e argumentou que o erro do regime foi não ter matado mais pessoas. Pouco antes do segundo turno das eleições presidenciais em outubro, ele prometeu expurgar o Brasil de ativistas de esquerda, através de exílio forçado ou prisão.

No final de outubro, ele se referiu a membros de movimentos de base como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), entre outros, como “terroristas”, gerando preocupações de que a polêmica lei de antiterrorismo doBrasil será usada para criminalizar ativistas sociais. Perturbadoramente, dois líderes do MST foram assassinados por homens armados e encapuzados em 8 de dezembro. Muitos temem que a retórica de ódio e ameaças de Bolsonaro esteja tornando o Brasil – que já é líder mundial em assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente – em um lugar muito mais perigoso para ativistas.

O discurso de ódio de Bolsonaro teve como alvo numerosos grupos com lutas de longa data contra a opressão e a discriminação. Ele afirmou que os quilombolas não estão aptos para procriação. Ele afirmou também que se um de seus filhos fosse gay, ele preferiria que eles morressem em um acidente e que nenhum de seus filhos iria querer uma namorada negra, uma vez que são muito bem educados. 
Ele fez comentários profundamente ofensivos sobre as mulheres, dizendo que ele fracassou como homem quando teve uma filha e dizendo a uma legisladora que ela não merecia ser estuprada por ele. Ele se referiu aos migrantes como “a escória da humanidade” e se opôs a uma lei que concede direitos básicos aos imigrantes.

Para além desses abomináveis ataques verbais, estamos particularmente preocupados com uma série de propostas políticas de Bolsonaro que, se implementadas, podem infligir danos de longo alcance e duradouros às comunidades brasileiras e ao meio ambiente.

Bolsonaro ameaçou cortar salvaguardas ambientais nas áreas de proteção da Amazônia, ao mesmo tempo em que aboliria os direitos constitucionais sobre territórios indígenas, a fim de permitir a expansão de atividades destrutivas de agronegócio, extração de madeira e mineração. Esses planos inevitavelmente provocariam danos ambientais profundos e irreversíveis, destruindo comunidades e culturas indígenas e desencadeando violentos conflitos por terra. Também é esperado que eles possam prejudicar significativamente os esforços globais para combater a mudança climática.

Em resposta aos crescentes níveis de crimes violentos, Bolsonaro manifestou apoio às execuções extrajudiciais cometidas pela polícia em bairros pobres, os quais já experenciam desproporcionalmente as mais altas taxas de homicídios historicamente registradas no país. Eleafirmou que, se um policial “mata 10, 15 ou 20 [suspeitos] com 10 ou 30 balas cada, ele precisaganhar uma medalha e não ser processado”. Afirmou ainda que criminosos não têm “direitos humanos” e indicou que expandirá a militarização em todo o Brasil para combater o crime.

Na frente institucional, Bolsonaro anunciou que sua administração eliminará o Ministério do Trabalho e o Ministério dos Direitos Humanos. Esses planos geram temores de que o futuro governo tentará minar os esforços para proteger os direitos dos trabalhadores e outros direitos humanos.

Estamos alarmados com essas e outras posições preocupantes adotadas por Bolsonaro e seus aliados mais próximos, e iremos acompanhar de perto as ações do futuro governo nos próximos meses.
Nós nos pronunciaremos contra a retórica de ódio e atos de violência, intimidação ou perseguição contra as comunidades e os defensores da sociedade civil, os quais Bolsonaro classificou como “inimigos” ou “terroristas”. Nós vamos expor os facilitadores internacionais da agenda destrutiva de Bolsonaro. E vamos apoiar àqueles no Brasil que se opõem ao autoritarismo e continuam a defender a democracia e os direitos básicos de todos os habitantes do país.

Amazon Watch
AFL-CIO
Friends of the Earth USA
Center for International Policy
Grassroots International
The Brazil Studies Association (BRASA)
Women’s International League for Peace and FreedomWashington Office on Latin America
Center for Economic and Policy Research
Latin America Working Group Education Fund
The National Network for Democracy in Brazil
Global Witness
Due Process of Law Foundation
Center for International Environmental Law (CIEL)
Brazilians for Democracy and Social Justice in Washington, DC Just Associates (JASS)
International Labor Rights Forum (ILRF)
Coalition of Black Trade Unionists
Foundation Earth
Defend Democracy in Brazil Committee – New York
Village Rights International
Friends of the MST (US)
Code Pink
Stand
The Oakland Institute
Retail, Wholesale and Department Store Union
Cultural Survival
Global Justice Ecology Project
United Steelworkers (USW)
National Family Farm Coalition
Environmental Justice League of Rhode Island (EJLRI) GreenRoots
Grassroots Global Justice Alliance
Sunflower Alliance
Farmworker Association of Florida
Rainforest Action Network
Renewable Freedom Foundation
Iowa Citizens for Community Improvement Conference of Major Superiors of Men
Forest Peoples Programme
Food Chain Workers Alliance
Community Alliance for Global Justice
Institute for Policy Studies, Drug Policy Project
Sisters of Notre Dame de Namur USA JPIC
Rainforest Foundation US
Beautiful Trouble
Alliance of Baptists

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

DESSALINIZAR OS CÉREBROS

Roberto Malvezzi (Gogó)
A técnica de dessalinização em pequenas unidades está espalhada pelo Semiárido Brasileiro. Marina Silva, quando ministra do Meio Ambiente do governo Lula, criou o programa “Água Doce”, exatamente utilizando essa técnica.
A dessalinização é complicada porque gera de 40% a 60% de rejeitos altamente salinizados que é de difícil descarte. Uma das possiblidades utilizadas pelos técnicos brasileiros foi o reaproveitamento como alimento de plantas e animais. Em muitos lugares a técnica funciona.
O que mudou o Semiárido Brasileiro nos últimos anos foi a captação da água de chuva em cisternas para beber e produzir. O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2) replicaram mais de 1 milhão de vezes tecnologias apropriadas para essa finalidade, principalmente as cisternas de placas. Basta fazer um gráfico da implantação dessas políticas públicas, comparando-as com a elevação do IDH da região que a tendência de alta coincide com exatidão. Claro, junto vieram as políticas de energia, telefonia, internet, outras adutoras, elevação do salário mínimo, Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família. Aqui reside a política que nenhum governo anterior jamais fez.
O presidente eleito desse país diz que vai trazer a técnica de dessalinização em um programa conjunto com Israel. Os técnicos e cientistas da Embrapa Semiárido e universidades nordestinas há décadas fazem intercâmbio com Israel. Portanto, não é novidade.
Além do mais, o Semiárido Brasileiro tem 1 milhão de Km2, enquanto Israel tem pouco mais de 20 mil km2, portanto, cabem 50 Israel dentro de nosso Semiárido. Para completar, nosso Semiárido é o mais chuvoso do planeta com uma precipitação anual em torno de 700 mm, enquanto Israel mal chega a 100 mm anualmente. Por isso, nas últimas décadas foi desenvolvido o paradigma da “Convivência com o Semiárido”, inspirado em Celso Furtado no seu discurso inaugural da Sudene em 1959, mas tirado do papel e ganhado carne com iniciativas da sociedade civil.
Junto com a captação da água de chuva a sociedade civil nordestina defendeu a distribuição da água acumulada por adutoras simples. Prevaleceu a grande obra da Transposição, que tem problema sérios de operacionalização, impacto no rio São Francisco, mas que aumentou a oferta de água na Paraíba.
Há décadas sabemos que a seca é um fenômeno natural, assim como o gelo nas regiões frias. Não se combate a seca, mas se convive com o ambiente que é semiárido. Só os ultrapassados em conhecimento e em história ainda falam em combater a seca.
O Brasil já tem o conhecimento e as técnicas para resolver todos os problemas do Semiárido. Bastaria continuar implantando os programas de Convivência com o Semiárido e, se necessário, criar outros. Portanto, é uma questão política. Mas, parece ser mais fácil dessalinizar toda água do mar que certos cérebros que estão no comando desse país. 
 

domingo, 23 de dezembro de 2018

PEDRO CASLDÁLIGA DO ARAGUAIA

Pedro Casaldáliga do Araguaia


"Pedro é luta. Pedro é inspiração. Pedro é exemplo. E a doença e a velhice de Pedro não devem ser entendidas apenas como um sofrimento" / Foto: Reprodução
90 anos de vida dedicados à resistência contra o capital e a defesa dos pobres
“Para descansar

eu quero só

esta cruz de pau

como chuva e sol

estes sete palmos

e a Ressurreição!”

(Poema “Cemitério do Sertão”, de Dom Pedro Casaldáliga)

Há cerca de 20 anos Dom Pedro Casaldáliga celebrou uma missa no dia de finados num dos cemitérios de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Ao final, ele disse na presença do povo e agentes pastorais: “Quero que vocês todos escutem muito bem, porque vou falar algo muito sério: é aqui que eu quero ser enterrado”. O “aqui” era o que o povo da região chama de “Cemitério Karajá”, onde foram enterrados muitos indígenas, e outros tantos trabalhadores que vinham de muitas partes e eram explorados nas fazendas de gado. O lugar onde foi enterrada a gente mais humilde daquela terra. O cemitério dos mais pobres.

Das coisas que mais chocaram Dom Pedro quando ele chegou nessa região do Mato Grosso em 1968, era a situação dos “peões”, trabalhadores assalariados que migravam de vários estados na ilusão da vida que iria melhorar no trabalho nas grandes fazendas. Muito era prometido por quem os recrutava, e já durante a viagem e depois no próprio trabalho muitas dívidas eram sendo atribuídas… A maldição da escravidão por dívida. E fugas eram duramente reprimidas, com a tradição de cortar as orelhas dos trabalhadores que buscavam escapar daquele martírio.

A situação dos pequenos posseiros e dos vários povos indígenas da região não era muito diferente, nessa terra das maiores concentrações fundiárias durante a ditadura militar. Na Carta Pastoral de 1971, “Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social”, Pedro faz uma forte denúncia de todas essas situações, de uma região tão desigual, posicionando a Igreja – a recém-criada Prelazia de São Félix do Araguaia – do lado dos mais pobres:

“Nós – bispo, padres, irmãs, leigos engajados – estamos aqui, entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto, marginalizado e acusador, que acabo de apresentar sumariamente. Ou possibilitamos a encarnação salvadora de Cristo neste meio, ao qual fomos enviados, ou negamos nossa Fé, nos envergonhamos do Evangelho e traímos os direitos e a esperança agônica de um povo de gente que é também povo de Deus: os sertanejos, os posseiros, os peões; este pedaço brasileiro da Amazônia. Porque estamos aqui, aqui devemos comprometer-nos. Claramente. Até o fim. (Somente há uma prova sincera, definitiva, do amor, segundo a palavra e o exemplo do Cristo). Não queremos bancar os heróis, os originais. Nem pretendemos dar lição a ninguém. Pedimos só a compreensão comprometida dos que compartilham conosco uma mesma Esperança.”

Voltei a São Félix no final de 2018, depois de quase 16 anos de ter ido para lá pela primeira vez. Para, mais do que tudo, visitar o Pedro. Durante esses dias e pesquisando no monumental Arquivo da Prelazia, descobri mensagens trocadas com João Pedro Stédile, por quem o bispo Pedro sempre guardou grande admiração. Um desses e-mails datava de 24 de dezembro de 2002, e Pedro respondia ao João Pedro dizendo que não poderia estar no Fórum Social Mundial de 2003, nem poderia estar no lançamento do Jornal Brasil de Fato que aconteceria naquele encontro. Ele tinha uma viagem já marcada para Roma naquele mês. E Pedro disse ao amigo do MST: “Há muita expectativa com respeito ao governo Lula. Ninguém duvida da honestidade do companheiro, mas muitos estamos nos interrogando ansiosos pelas alianças e concessões. Vai ser um tempo novo de autocrítica serena, mas livre. A Terra e toda a sua problemática vão definir em boa parte os desafios da alimentação, do emprego, do alívio das cidades, da gradativa correção das desigualdades sociais. O latifúndio continua a ser o inimigo número um!”.

 O latifúndio continuava presente no coração das preocupações do Pedro, 34 anos depois de sua chegada ao Brasil. Pedro teve sempre essa reflexão profunda de entender que as mudanças estruturais não aconteceriam só por uma vitória mais à esquerda nas eleições. As maiores mudanças precisariam vir da consciência e organização do povo. E vida pastoral para o Pedro passava fortemente por contribuir na organização do povo na sua luta por direitos, nessa região do Mato Grosso que escolheu viver. Mas toda essa história de muita profundidade de reflexões e ação política foi tratada por apoiadores do presidente eleito em São Félix do Araguaia e região, como um “bispo petista” nessas eleições presidenciais despolitizadas e manipuladas de 2018. Um bispo petista que ainda precisa ser combatido.

Durante a viagem alguns agentes de pastoral da Prelazia me contaram também do episódio da carreata pró Bolsonaro. Um dia antes do primeiro turno das eleições foi organizado uma enorme carreata a favor deste candidato, e os carros buzinavam com mais força ao passar em frente à casa do velho bispo. Muitos gritavam dos carros. Era como uma vingança contra o Pedro e contra tudo o que ele representa, sentiram as pessoas da casa. Mas, pensando bem, e lembrando de todas as histórias dessa Igreja comprometida, essa radicalização entre dois polos não é uma novidade nesta região. Em realidades assim, só os covardes não se posicionam. E Pedro ainda incomoda, e muito.

O que poderia estar o Pedro falando – e nos ajudando a refletir – sobre esse turbilhão que se abateu sobre o Brasil? Certamente muita coisa. Uma vez eu chamei o Pedro de “a esperança indignada” num artigo em que escrevi. E ao ler nessa viagem cartas e mais cartas que Pedro trocava com amigos pessoais e com pessoas de Igrejas e movimentos do mundo todo, me dei conta o quanto essa palavra “esperança” era comum nas trocas de mensagens. Talvez não seja, então, um acaso, que uma das músicas preferidas do Pedro é sonho impossível: “Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender”. Uma música que ele sempre pedia para a advogada e agente de pastoral Zezé cantar a capela, com a sua bonita voz, nas atividades da Prelazia.

E o bispo Pedro, como é chamado na cidade, continua aqui. O forte avanço do “Irmão Parkison” com quem ele convive há cerca de 20 anos deixa fortes marcas. Os 90 anos (quase 91!) também. Não mais se expressa com profusão de palavras e escritos, que sempre foram muito marcantes. E isso certamente é um grande sofrimento. Mas Pedro se comunica de outras formas, com gestos, olhares, apertos fortes nas nossas mãos, e nos dá a benção com os gestos das mãos dele. A gente sabe que ele está ali, que é o Pedro, e que ele nos reconhece. E trata bem cada um que chega na casa, seja gente do povo da cidade que vai vê-lo, seja algum indígena Karajá (Iny), seja alguma visita que vem de longe.

E a casa dele continua também sendo um refúgio para os Karajá de passada por São Félix, vindos de alguma das várias aldeias que existem na Ilha do Bananal, do outro lado do Rio Araguaia. Sabem que ali vão ter um copo de água fresca, vão ter um lugar para descansar das andanças pela cidade. E sabem que sempre será dado um prato de comida na hora do almoço. Estive cinco dias em São Félix e, em todos os dias, passaram por ali algum Iny, a maioria da aldeia Santa Izabel, a que fica mais pertinho da cidade. No penúltimo um jovem Iny estava passando mal e se dirigiu para lá. Parecia sentir muita dor, e disse que havia vomitado sangue. Conseguimos falar com a responsável pelo distrito de saúde indígena regional, que mandou um carro para buscá-lo. Aquele jovem indígena sabia que teria um refúgio naquela casa, com o “povo do bispo Pedro”.

Na epígrafe está apenas a primeira parte do poema “Cemitério do Sertão”. Mas Pedro continua: “Mas para viver, eu já quero ter, a parte que me cabe, no latifúndio seu, que a terra não é sua, seu doutor Ninguém. Mas para viver, terra e liberdade, eu preciso ter”. A luta do Pedro e sua Igreja comprometida sempre foi pela justiça e pela vida.

Pedro é luta. Pedro é inspiração. Pedro é exemplo. E a doença e a velhice de Pedro não devem ser entendidas apenas como um sofrimento. Deve nos provocar uma “profunda reflexão do significado de 90 anos de vida dedicados à resistência contra o capital e a defesa dos pobres”, palavras da professora e lutadora mineira Maria José Silva. E que possamos, todos e todas nós, nos inspirar em Dom Pedro Casaldáliga para os tempos difíceis que nosso país atravessa e atravessará. Que a esperança ativa e indignada nos guie!

Este texto é dedicado ao padre Félix Valenzuela e à Telma Araújo, pessoas muito amigas, há muito tempo, do Pedro.

Maria Júlia Gomes Andrade é antropóloga e coordenadora do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Edição: Joana Tavares

https://www.brasildefato.com.br/2018/12/19/pedro-casaldaliga-do-araguaia/ 

COMO EXPLICAR A IGUALDADE AOS 99% EMPOBRECIDOS

LEIAM COM ATENÇÃO, ESPECIALMENTE PARA PERCEBER A IMPORTÂNCIA DE PREFERIR A HERMENÊUTICA DO SUL, EM QUE A DESIGUALDADE SENTIDA, VIVIDA, SOFRIDA E ENFRENTADA É A MELHOR MANEIRA DE CONHECER A IGUALDADE DESEJADA...

Explicar a igualdade aos 1% mais ricos do Mundo

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21/12/2018
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O Primeiro Fórum Mundial do Pensamento Crítico, realizado em Buenos Aires pela CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências Sociais) de 19 a 21 do mês passado, fez-me um desafio surpreendente: explicar a igualdade aos 1% mais ricos do mundo. Fazer tal explicação perante oito mil pessoas é quase uma provocação. Mas não fugi ao desafio. Como tenho escrito, a fórmula dos 1% contra os 99% não foi inventada pelo movimento dos indignados de 2011. Está nas páginas finais do diário de Leon Tolstoi, de 1910. A voga desta fórmula está menos na figura de Tolstoi do que nas condições atuais do capitalismo mundial, atravessado por desigualdades entre ricos e pobres que têm muitas semelhanças com as de há cem anos. Perante o desafio, decidi começar por desconstruir a pergunta. Era uma pergunta velha, uma pergunta típica do século XX. Em primeiro lugar, no século XXI e depois de todas as vitórias dos movimentos feministas e anti-racistas, seria mais correto explicar não a igualdade, mas a diferença. A igualdade não existe sem ausência de discriminação, ou seja, sem o reconhecimento de diferenças sem hierarquias entre elas (homem/mulher, branco/negro, heterossexual/homossexual, religioso/ateu). Neste ano em que celebramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos recordo a formulação que tenho dado a este tema: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

Em segundo lugar, a pergunta visava explicar aos 1% mais ricos. Não faria mais sentido, ou não seria mais útil, explicar a igualdade aos 99% mais pobres? Explicar a igualdade aos 1% é como explicar ao Diabo que Deus é bom. Se eu o tentar fazer, talvez não me entendam; e se me entenderem, talvez me expulsem ou proíbam de escrever sobre o tema. Recordei a propósito esse sinistro movimento de extrema direita educacional no Brasil, conhecido pelo nome ardiloso de Escola Sem Partido, que nos seus últimos documentos inclui entre os autores proibidos: Karl Marx, Paulo Freire, Milton Santos, José Saramago, António Gramsci. Lembrei, a propósito, a situação de antigos estudantes meus, hoje professores nas universidades brasileiras, que se sentem perseguidos e monitorados (senão mesmo filmados) nas suas aulas de sociologia política e direitos humanos, suspeitos de defender "ideias vermelhas" ou "ideologia de genero", a mais recente inovação conceptual das cloacas autoritárias e neofascistas.

Perguntei-me, pois, se não seria mais útil e adequado explicar a igualdade aos 99%. Mas aí auto-suspendi-me na minha reflexão: seria afinal necessária tal explicação? Não saberão eles melhor que ninguém, e com a prova de todas as rugas da vida, o que é igualdade e desigualdade? Precisarão de alguém que lhas explique? No domingo anterior tinha passado uma boa parte do dia num dos bairros mais pobres e mais resistentes de Buenos Aires, o bairro Zavaleta, onde um grupo de ativistas produz cooperativamente uma revista, a Garganta Poderosa, que vai sendo conhecida em todos os bairros pobres do continente. Aí pude verificar como para eles e elas a igualdade se explica facilmente pela desigualdade que sofrem nos corpos e na vida todos os dias. Acompanhado à distância por militares (não polícia civil) que controlam a comunidade, pude ver que não é igualdade quando umas senhoras voluntárias se organizam para receber doações de produtos alimentares e criar um restaurante comunitário onde os jovens comem uma boa refeição por dia. Que não é igualdade quando quase todos os habitantes têm um jovem parente, amigo, filho ou neto assassinado pela polícia. Que não é igualdade quando as inundações das últimas semanas impedem as cloacas improvisadas de aguentar e as crianças acordem com a cama cheia de merda. Que não é igualdade se alguém em coma diabético morre no transporte em braços solidários pela rua estreita até chegar ao local onde a ambulância o pode recolher. Em Zavaleta, a igualdade explica-se bem pela desigualdade, pela violência policial, pela desvalorização da vida, pela degradação ontológica de quem lá vive.

Mas mesmo admitindo que a explicação tem sentido, a formulação do convite padece ainda de um outro erro, um erro epistemológico. Pressupõe que há um conhecimento específico e o único válido para explicar a igualdade, isto é, o conhecimento científico. Ora tal não é verdade e, neste caso concreto, é particularmente importante que isso se esclareça. A filosofia eurocêntrica – e as epistemologias do Norte que dela nasceram e deram origem à ciência moderna – assenta na contradição de defender em abstrato a igualdade universal e ao mesmo tempo justificar que parte da humanidade não é plenamente humana e não é, por isso, abrangida pelo conceito de igualdade universal, seja ela constituída por escravos, mulheres, povos indígenas, povos afrodescendentes, trabalhadores sem direitos, castas inferiores. Nem é preciso mencionar que John Locke, grande patrono da igualdade, foi dono de escravos, ou que a eugenia, "a ciência mais popular" do início do século XX, demonstrava cientificamente a inferioridade dos negros, uma ciência que Hitler estudou atentamente na prisão ao preparar Mein Kampf. Por isso, confiar em que as ciências nascidas das epistemologias do Norte expliquem adequadamente a igualdade é o mesmo que escolher o lobo para guardar as ovelhas. Uma metáfora menos chocante será a de pensar que a ajuda ao desenvolvimento ajuda de fato os países a desenvolver-se. Ao contrário do que promete, ela contribui, não para desenvolver os países, mas para os manter subdesenvolvidos e dependentes dos mais desenvolvidos.

As epistemologias do Sul que tenho vindo a defender partem dos conhecimentos nascidos nas lutas daqueles e daquelas que viveram e vivem a desigualdade e a discriminação, e resistem contra elas. Estes conhecimentos permitem tratar a igualdade como denúncia das desigualdades que oculta ou considera irrelevantes para a contradizerem. Permitem também tratá-la como instrumento de luta contra a desigualdade e a discriminação. Apenas para dar um exemplo: as epistemologias do Sul permitem reconceituar o capital financeiro global, o verdadeiro motor da extrema desigualdade entre pobres e ricos e entre países ricos e países pobres, como uma nova forma de crime organizado. Trata-se de um crime contra a propriedade dos trabalhadores e das classes empobrecidas, constituído por vários crimes-satélites, sejam eles, o estelionato, o abuso de poder, a corrupção. Só para dar um exemplo extremo: um trabalhador no Brasil que use o seu cartão para comprar a crédito chega a pagar uma taxa de juros de 326%! Como diz o economista Ladislau Dowbor, o crédito no Brasil não é estímulo, é extorsão. A sua natureza criminosa é o que explica o exército de advogados ao seu serviço para se defender das múltiplas violações das leis e para mudar as leis quando tal seja necessário. Só assim se explica que no Brasil, segundo dados da Oxfam, 6 pessoas tenham mais patrimônio do que a metade mais pobre da população, e que os 5% mais ricos tenham mais do que os 95% restantes.

Mas o capital financeiro global, na sua atual configuração, não é apenas um crime contra a propriedade dos mais pobres, é também um crime contra a vida e contra o meio ambiente. Dados de várias agências internacionais, incluindo a UNICEF, revelam que as políticas neoliberais de ajustamento estrutural ou de austeridade têm conduzido à diminuição da esperança de vida na África e à morte por subnutrição ou doenças curáveis de milhões de crianças. As mesmas políticas tem vindo a exercer uma pressão enorme sobre os recursos naturais, exigindo a sua exploração cada vez mais intensiva, com a consequente expulsão das populações camponesas e indígenas, a contaminação das águas e a desertificação dos territórios. Além disso, as poucas regras de proteção ambiental que tinham sido conquistadas nas últimas décadas estão a ser violadas ou anuladas pelos governos de direita. O exemplo mais grotesco é hoje Donald Trump; amanhã será certamente Jair Bolsonaro. Com isto, torna-se muito provável que os cenários mais pessimistas propostos pela ONU possam vir a concretizar-se.

À luz das epistemologias do Sul, os crimes cometidos pelo capital financeiro global serão uns dos principais crimes de lesa-humanidade do futuro. Junto com eles e articulados com eles estarão os crimes ambientais. No ano em que celebramos os 70 anos da Declaração Universal, recomendo que comecemos a pensar na revisão da sua redação (e num modo totalmente novo de participação na redação) para dar conta da nova criminalidade que nos próximos 70 anos continuará a impedir a humanidade de ser plenamente humana.

- Boaventura de Sousa Santos é sociólogo português

20 de Dezembro de 2018
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/378134/Explicar-a-igualdade-aos-1-mais-ricos-do-Mundo.htm

CHICO MENDES NO EMPATE CONTRA AS FALSAS SOLUÇÕES DO CAPITALISMO VERDE


DECLARAÇÃO DE XAPURI
CHICO MENDES NO EMPATE CONTRA AS FALSAS SOLUÇÕES DO CAPITALISMO VERDE
         

Daqui de Xapuri, afirmamos ao mundo que Chico Mendes não morreu: foi assassinado. Esse foi o preço que ele pagou por dedicar sua vida à causa da reforma agrária e da proteção da floresta, já que os dominantes nunca aceitaram que os povos da floresta tivessem direito à terra, ao pão e ao sonho. Acharam que assassinando-o, enterrariam sua luta. Mas, já era tarde. Chico havia se transformado numa força que ultrapassou sua existência física.
Desde seu assassinato, sua memória cresceu em importância. Conscientes disso e com medo de seu poder libertário, os de cima se lançaram na tarefa de se apropriar dela através de um contínuo e sistemático processo de distorção.
Isso foi o que os governos da Frente Popular do Acre (FPA) fizeram ao longo dos últimos 20 anos: servindo aos interesses do capital internacional, impuseram, usando e abusando da imagem de Chico Mendes, um conjunto de políticas cujo resultado foi o aumento da privatização e da destruição da floresta.
Indo da exploração florestal madeireira, de gás e petróleo no Vale do Juruá, e da mineração, passando pela pecuária extensiva de corte e abrindo as portas para os projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal - REDD e outras formas de Pagamentos para Serviços Ambientais – PSA, essas políticas representam, em tudo, a mais absoluta negação daquilo que o líder seringueiro defendeu, pois privatizam as florestas, violam os direitos dos povos da floresta e os tratam como criminosos.
Em todo esse processo desfiguram e, num certo sentido, assassinam Chico Mendes, uma e outras vezes mais, fazendo dele um defensor do mesmo capitalismo que o assassinou, ou seja, fazendo dele o contrário do que ele foi.
Lamentavelmente, o que vemos hoje no Acre é a tentativa de transformar em mercadoria terras e territórios que são sagrados para os povos originários e que, além disso, são a base de subsistência de todos os habitantes da floresta.

Por isso é que, nos últimos anos, vimos crescer em nosso meio a criminalização tanto de práticas ancestrais das comunidades locais, como de toda forma de resistência à apropriação capitalista da natureza.
Fiéis ao legado de lutas de Chico Mendes, denunciamos esses projetos assassinos e aqueles que os defendem. Com base em nossas dolorosas experiências, afirmamos ao mundo que propostas como “desenvolvimento sustentável” e “economia verde” não passam de farsa e tragédia.
São farsa porque não protegem a natureza como dizem. São uma tragédia porque fazem exatamente o contrário disso. E nós sabemos a razão: não há saída no capitalismo, seja em qualquer uma de suas formas, ou com qualquer uma de suas cores. Não pode cuidar da vida um sistema assassino.   
Denunciamos essa farsa e exigimos a suspensão imediata de todos os projetos de exploração florestal madeireira e de todas as políticas de compensação ambiental e climáticas derivadas das falsas soluções do capitalismo verde, a demarcação de todas as terras dos povos indígenas, e uma reforma agrária com soberania popular.
Pela Amazônia, pela reforma agrária, pela demarcação das terras indígenas e contra o capitalismo verde e de todas as outras cores, seja conduzido por governos ditos de esquerda ou por governos assumidamente fascistas!


Chico Mendes vive. A luta segue.

 
Xapuri, 16 de dezembro de 2018



 Assinam esta carta as seguintes entidades:

Grupo de Pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia (TRATEPAM)
Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO)
Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM)
Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre e Amazonas (OPIAJBAM))
Movimento dos Pequenos Agricultores de Rondônia (MPA)
Via Campesina
Amigos da Terra - Brasil
Centro Acadêmico de Ciências Sociais da Ufac (CACS)
Movimento Esquerda Socialista – PSOL
Coletivo Juntos - Acre
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (STR-Xapuri)
Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPAHC)
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social - FMCJS
Equipe Itinerante
Centro Shuar Kupiamais (Equador)
Conselho Indigenista Missionário – Cimi



quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

NOSSOS VOTOS DE NATAL E ANO NOVO EM 2019

PESSOALMENTE E EM NOME DO FÓRUM MUDANÇAS CLIMÁTICAS DESEJO QUE NOSSA ESPERANÇA SE FIRME CADA DIA MAIS. ISSO É VIVER O NATAL.



PROFECIA DO NATAL PARA TODA A HUMANIDADE


FAÇO MINHAS AS PALAVRAS, OS DESEJOS, OS COMPROMISSOS DO MARCELO.
FELIZ NATAL E ANO REALMENTE NOVO!

A profecia do Natal para toda a humanidade



Marcelo Barros



Neste Brasil de Bolsonaro e em meio às notícias tristes e dolorosas com as quais convivemos cada dia, me lembro de que, nas antigas liturgias da véspera do Natal, diversas vezes, aparece um refrão, baseado no livro do Êxodo: “Hoje, todos saberão que o Senhor virá e amanhã poderão ver a sua glória”. Parece irreal cantar: “Hoje ainda poderá ser destruída a iniquidade do mundo. Amanhã reinará sobre nós o Salvador”.

Atualmente, a iniquidade do mundo se tornou mais escandalosa. A desigualdade social se multiplica. Milhões de pessoas são excluídas do trabalho digno. Fome e miséria aumentam. Diariamente, milhares de crianças morrem por não terem acesso à água potável. Além disso, a praga do armamentismo ameaça a própria segurança do planeta.

Em meio a tudo isso, o evangelho do Natal nos assegura: “A Palavra divina se faz carne em nós e em todas as criaturas” (Jo 1, 14). Essa palavra ressoa, hoje, no grito surdo da mãe Terra, agredida e ameaçada em suas condições de vida. Ecoa nos campos contaminados pelos agrotóxicos. É o grito sufocado da irmã Água transformada em mercadoria e privatizada pelas Coca-cola e Nestlé da vida. Essa Palavra de dor e de resistência se faz carne e é acolhida e respondida na luta de resistência dos índios, na caminhada dos lavradores sem-terra e dos pequenos agricultores. Ela se concretiza a cada dia na esperança teimosa e já operante de todos/as nós.  

Cantar que amanhã será destruída a iniquidade do mundo é uma profecia que nos anima. Essa esperança vai além das fronteiras da fé cristã. É algo que diz respeito a toda a humanidade. Ao ser palavra de amor para toda a humanidade, essa mensagem de Natal nos chama a sermos cada vez mais humanos e cuidadores/as do planeta. Isso significa nos abrir cada vez mais aos outros. Implica em priorizar o diálogo, a convivência; reconhecer a dignidade inviolável das pessoas e de todo ser vivo. Mas na vida da gente há sempre um outro que tem rosto concreto, nem sempre muito belo e que é aquele ou aquela através da qual Deus nos chama a viver a profecia do Natal no acolhimento gratuito e transformador. Quem não é capaz de aceitar o diferente não sabe o que é Natal.

Nesses tempos de intolerância, nesse Natal, temos de testemunhar a capacidade de vermos o rosto divino do outro nas diferenças de gênero e sexo, como na diversidade religiosa.

1 - Jesus de Nazaré se revelou como homem, mas acolhe também a dimensão divina do feminino. Revela que Deus é Pai e Mãe e permite que o chamemos de Ele ou Ela. De modo especial, no Brasil de hoje, esse Natal nos confirma que cada ser humano, homem ou mulher, homo, hetero, ou transexual, são imagens do amor divino e merecem nossa solidariedade e caminho em comum.

2 – Esse Natal precisa nos levar mais e mais à espiritualidade macro-ecumênica. Desde criança, Jesus quis ser encontrado não pelos religiosos de Jerusalém e sim pelos pastores do campo. Manifestou-se não no templo e sim na manjedoura de Belém. Assim, hoje, o Espírito, Ventania do Amor Divino,  quer que o encontremos de formas diversas, desde que seja na realidade da pobreza e da marginalização social. A Palavra feita carne no Natal nos faz reconhecer a presença divina nas manifestações de todas as culturas e religiões. Aqui no Brasil, o Natal nos compromete na defesa diária e intransigente das comunidades indígenas e afrodescendentes, tanto na sua luta sagrada pela terra e pelo direito a viver suas culturas e expressões religiosas. Mais do que isso, nos faz reconhecer e valorizar a permanente encarnação do Espírito Divino nos terreiros afro e nas ocas indígenas.

Vamos encontrá-lo nas tradições dos Orixás. Ele se revela nos Espíritos da Umbanda e nos Encantados indígenas. Vem dançar com seus filhos e filhas índios e negros para confirmá-los na sua resistência profética e dar a toda humanidade a esperança de um mundo renovado.

Hoje, o cântico dos anjos de Belém se torna o cantar discreto e misterioso que o Xamã ianomâmi David Kopenawa escuta dos Xapiris da floresta. Toma a forma do Toré dos  índios do Nordeste. São os novos cânticos do Natal da mãe Terra e da natureza ferida que renovam o universo de amor e de vida.

O mundo inteiro se transforma em um imenso presépio. Não do Menino Jesus que, hoje, já não é mais menino e sim o Cristo Ressuscitado que nos vêm pelo Espírito. Essa mesma energia materna de amor que cobriu Maria com sua sombra, hoje, fecunda o universo com seu amor e sua força libertadora. Feliz Natal para você e para todos os seus entes queridos.

                                        Com carinho de irmão, Marcelo Barros



(Penha, minha irmã,  se recupera lentamente da cirurgia. Dentro do quadro, está bem).














O QUE AS ESQUERDAS LATINO-AMERICANAS PODEM APRENDER DO BRASIL

REFLEXÃO PROVOCADORA, E DE QUEM COMPROVADAMENTE QUER QUE SE APRENDA COM AS PRÁTICAS, ABRINDO CAMINHOS MELHORES PARA OS POVOS LATINO-AMERICANOS. 


ENSINAMENTOS DO TRIUNFO DE BOLSONARO PARA AS ESQUERDAS LATINO-AMERCANAS

IHU, 20 de dezembro de 2018

"Apesar da opressão que poderiam provocar essas manifestações de ressurgimento da extrema direita na América Latina e em outras partes do planeta, não compartilhamos do pessimismo extremo que existe entre alguns atores, ainda que possamos entendê-lo. Um pessimismo que considera que o capitalismo alcançou uma vitória total na América Latina e que qualquer opção de esquerda se tornou inviável. Ao contrário, entendemos que esse colapso afeta os progressismos, e que eles deveriam permitir novas opções para reconstruir as esquerdas", escrevem Eduardo Gudynas, ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES, e Alberto Acosta, economista, foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador e candidato à presidência pela Unidad Plurinacional de las Izquierdas. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo

Continua o aluvião de análises e opiniões sobre as dramáticas mudanças políticas no Brasil. A partir dos demais países sul-americanos se observa com muita atenção o que ocorre, e, ao menos na nossa perspectiva, é necessário identificar e aprender do que aconteceu no país. O que nos ensina o Brasil para evitar, por exemplo, que a extrema direita alcance a presidência no Equador ou no Uruguai? Como evitar que o exemplo Bolsonaro permita que se acentue ainda mais a deriva à direita no Chile e na Colômbia? Sem negar as intromissões externas ou os desvios internos, é necessário refletir sobre o ocorrido.

É oportuno começar a partir de uma reflexão de Florestan Fernandes sobre o Brasil. Em uma palestra, que tem muita vigência ainda que tenha passado mais de meio século, oferecida em 1965 aos estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo, ele indicava que “na verdade, é quase nula a diferença que separa o presente do passado em muitas comunidades humanas brasileiras, onde ainda imperam formas arcaicas de mandonismo. Também é pacífico que as três experiências republicanas falharam no plano elementar de garantir ao regime democrático viabilidade histórica e normalidade de funcionamento (para não dizer de crescimento)” (1).

Seguindo essas ideias, teria que se perguntar se segue prevalecendo o mandonismo arcaico que descreve Florestan, ou se este mais recente ciclo republicano voltou a falhar em garantir e fortalecer a democracia. Em um artigo anterior exploramos algumas das primeiras lições que se podiam tomar (2). Partimos da distinção entre progressismos e esquerda, para explicar que progressismos como o do Partido dos Trabalhadores - PT abandonaram muitos compromissos das esquerdas dos quais nasceram. Entre eles destacamos a incapacidade para romper com as estratégias de desenvolvimento subordinadas como provedores de matérias-primas, enquanto se refugiavam em políticas sociais cada vez mais assistencialistas e mercantilizadas, sem mudar as arcaicas estruturas de acumulação de capital ou de concentração de riqueza. Advertimos que os experimentos de radicalização da democracia se apagaram, e em troca prevaleceu o verticalismo partidário, o culto ao caudilho. Não se quebraram os vícios da corrupção política e tampouco se deram passos para transformações estruturais, tudo com o qual se faz analogia com as advertências de Florestan.

Neste artigo objetivamos explorar alguns dos elementos que são comuns a esses e outros problemas, partindo de Florestan Fernandes, para concluir em um retorno a ele, e ao seu chamado ao papel que deveriam desempenhar os intelectuais.

Simplificações que caem no essencialismo

Observando desde o exterior a situação brasileira, com tudo o que isso pode ter de vantajoso como também de limitado, em primeiro lugar impressiona o giro político. O giro ocorreu depois de quase quatro governos sucessivos nas mãos de uma coalizão progressista (duas administrações de Luiz Inácio Lula da Silva, uma completa de Dilma Rousseff e a outra abortada). A partir de uma perspectiva histórica, a virada à direita radical foi vertiginosa.

Imediatamente se deve apontar outra particularidade. Muitas análises tanto dentro do Brasil como na América Latina insistiram em descrições essencialistas. Os governos do PT eram apresentados, tanto por outras esquerdas como inclusive por conservadores, como uma maravilha, se insistia em ganhos rotulantes (como a substantiva redução da pobreza), e os apresentava como um exemplo a seguir para as esquerdas dos países vizinhos. Se dizia que Lula era uma esquerda séria, do tipo social-democrata, e longe dos desvarios, por exemplo, de Hugo Chávez na Venezuela. Hoje em dia mudaram os argumentos e as vozes, mas se repete esse essencialismo totalizante: o Brasil agora se converteu no exemplo da pior extrema direita.

Muitas dessas abordagens esquemáticas são as mesmas que indicavam que aquele “povo” que poucos anos atrás era empurrado para a esquerda, agora repentinamente festeja utilizar armas, achincalhar migrantes ou indígenas, ou se refugiar no dogmatismo religioso. É por isso que alertamos sobre os usos superficiais de categorias como “povo”.

Esse problema se repete em vários países sul-americanos. É assim que na Argentinamuitos intelectuais e líderes sociais insistiam que os governos do matrimônio Kirchnerhaviam mudado para sempre a sociedade argentina, enquanto na Bolívia se publicita que se criou um estado “plurinacional” com predominância dos “indígenas”. Agora sabemos que as duas posições são tanto simplificações como exageros.

Esquivando das críticas

No Brasil do PT e sua base aliada, como nos demais governos progressistas, quando se cai em simplificações que insistem em apresentar como quase tudo isso foi positivo, já não há lugar nem para advertência ou críticas, nem para os ajustes e mudanças. Aquelas posturas mostram que se minimizaram muitos problemas, e inclusive se negavam as contradições. Ao se abordar as situações dentro do Brasil, a crítica e a autocrítica estavam suspensas para muitos, tanto dentro como fora do país. Não se entendiam os alertas sobre as crescentes contradições no governo do PT e seus aliados. Era mais simples minimizar ou ocultar os problemas, negar os enfrentamentos, ou recorrer a slogans.

Entre eles se adjetivavam os alertas como expressão da oposição conservadora, de ser uma esquerda infantil, ou servir ao imperialismo estrangeiro, tão somente para citar algumas delas. Assim, simplesmente qualquer crítica era de antemão desprezada porque se fazia o jogo da direita, diziam.

negação da autocrítica e a blindagem irracional também se observava, com distintas intensidades, nos países onde os progressismos ainda governam. Isso vai desde a perseguição direta à dissidência partidária e o desmoronamento das garantias democráticas na Venezuela, à decomposição política do governo Ortega na Nicarágua, passa pelo abuso eleitoral como ocorre com o Movimiento al Socialismo - MAS da Bolívia que qualifica qualquer voz de alerta como neoliberal, opositora ou de direita, e chega à postura do governo de Tabaré Vázquez no Uruguai que simplesmente se refugia em uma postura pedante e silenciosa.

Pode-se retrucar que os agrupamentos partidários progressistas ou de esquerda promovem a crítica, que realizam seminários convidando todo tipo de painelistas, que discutem com os movimentos sociais, e assim sucessivamente. Mas na realidade, uma vez ganho o governo, todos eles avançaram para o enclausuramento e blindagem. E o que é mais grave, grupos de pensamento outrora críticos terminaram por orquestrar reuniões que demonstram que nesse passo simplesmente vão morrer de nostalgia pelo poder que perderam.

Uma insistência notável foi a adesão a distintas versões do chamado “novo desenvolvimentismo” como um caminho que não podia ser questionado. É certo que essas estratégias permitiram no início alguns avanços importantes, entre eles o mais destacado e repetido é a redução da pobreza. No entanto se desentenderam todas as advertências que se faziam sobre os limites de um desenvolvimento que seguia baseado nas matérias-primas que se exportavam, mas que geravam severa deterioração ambiental e conflitos locais, em paralelo à perda de terreno dos setores industriais. Nesse contexto se mesclam reivindicações de emprego e saúde com outras, como as demandas econômicas. O consumismo e as ajudas em dinheiro aos setores mais empobrecidos fortaleceram a lógica do clientelismo (sustentado muitas vezes em uma intimidação caudilhista), sem que construíssem ou fortalecessem cidadanias responsáveis e organizações sociais autônomas, indispensáveis para fazer das requeridas mudanças estruturais uma realidade.

O sonho de resolver as contradições e conflitos por meio de compensações econômicas, entregando todo tipo de bonificação, foi derrubado. Em condições onde o consumismo gera a falsa imagem de bem-estar em amplos segmentos sociais, ao carecer de espaços plurais para sobrepesar oposições, se semeia o terreno para apelar a um narcisismo nacionalista que em pouco tempo se conecta com a xenofobia. O racismo xenófobo já não ocorre somente no Brasil. Ultimamente se percebe e se vive nas ruas das cidades da ColômbiaEquadorPeru e Chile. E em ambos se envolve sobretudo a migração venezuelana, aproveitando para acusar o socialismo como a raiz de todos os males.

A situação, em suma, se tornou muito estranha, havia muitas discussões sobre distintas variedades de desenvolvimento, mas se impedia de pensar mais além do desenvolvimento. O debate crítico e plural se empobreceu.

O mesmo ocorre em países vizinhos. A subordinação global como provedores de matérias-primas se acentuou na VenezuelaEquador e Bolívia, e, assim como no Brasil, os setores industriais também se reduziram ou se simplificaram na Argentina e no Uruguai. E nessas nações esse desenvolvimentismo origina conflitos similares. Uma análise minuciosa dessa dinâmica permite entender o limitado potencial de mudança do progressismo.

As posturas diante do desenvolvimento são uma das temáticas principais para distinguir entre progressismos e esquerdas, e que afetam vários grupos nos países vizinhos. Por exemplo, no Peru a aliança Frente Amplio conseguiu uma importante votação, arranhou o segundo turno presidencial, e formou uma importante bancada no Congresso. Mas em pouco tempo rachou devido a uma mistura de disputas pessoais e a contradições mais estruturais: uma ala progressista que defende um desenvolvimentismo estatista, ao estilo do PT, e outro grupo aposta que se nutrem de uma crítica mais radical diante do desenvolvimento. Essa mesma tensão está agora presente no Frente Amplio do Chile, outro grupo que conseguiu uma importante adesão de eleitos na última campanha.

novo desenvolvimentismo golpeou sobretudo os pobres e marginalizados nas cidades e no campo, e em particular os indígenas. Isso alimentou as brigas do progressismo com organizações campesinas, indígenas, ambientalistas e feministas etc.

Em síntese, os conflitos e as contradições proliferam, e sim se observam com atenção estando presentes no Brasil e nos outros governos progressistas. O que sucede agora é que essas situações são agora mais difíceis de ocultar, e chegou a tal extremo no Brasil que esse imobilismo do progressismo se converteu em um dos tantos fatores que seguramente explicam a vitória de Bolsonaro.

Corroendo as esquerdas e a política

Ao final, se buscou silenciar os problemas, mas não os resolver. Por isso, aumentam as contradições entre distintos grupos sociais, ou entre o capital e a natureza, ou entre a soberania nacional e a subordinação à globalização, para mencionar apenas três situações. Essas contradições seguem sua marcha, se somam tensões, as pessoas se cansam, se irritam, se enojam, e chega um momento em que se corrói grande parte da base de sustentação cidadã do progressismo.

Aqui há vários problemas sociais. Enquanto insistimos que progressismos e esquerdas são distintos, os questionamentos e o cansaço cidadão termina englobando a esquerda. É entendível que para boa parte da opinião pública esquerda e progressismo sejam o mesmo, sobretudo pela insistência dos progressismos em se auto-qualificarem como uma nova esquerda, por um lado, e pela sistemática ação de confusão e demolição ideológica que levam adiante as forças da direita, por outro lado. Então, o desastre de progressismos como o PT no Brasil ou o kirchnerismo na Argentina tem uma consequência associada que faz ainda mais dificultosa a reconstrução de algumas esquerdas que sejam realmente novas.

Nessa frente também operam a escassez de análises rigorosas e críticas, por exemplo, sobre as particularidades dos progressismos, suas diferenças com as tradições das esquerdas latino-americanas, ou o abuso de etiquetas como a de populismo para todo tipo de regime político.

Por sua vez, o desencanto e a raiva com os progressismos no Brasil – assim como ocorre em outros países – também afeta a qualidade da política. Observamos uma queda da confiança cidadã nos partidos políticos, nos poderes legislativos ou executivos. Como denota o relatório Latinobarómetro 2018, o apoio à democracia declina de maneira sistemática desde o ano 2010, alcançando 48% em 2018 (3).

Enquanto começou a crescer a porcentagem dos que prefeririam um regime autoritário, essa mesma análise adverte que “os cidadãos da região que abandonaram o apoio ao regime democrático preferem ser indiferentes ao tipo de regime, afastando-se da política, da democracia e suas instituições. Esse indicador nos mostra um declive por indiferença. São esses indiferentes que votam os que estão produzindo as mudanças políticas, sem lealdade ideológica, nem partidária e com volatilidade” (3). Tudo isso alimenta as posturas antipolíticas que preparam um terreno fértil para aventuras ultraconservadoras, como a que expressa Bolsonaro.

Nessa deterioração, vale para a imprensa insistir que não foi nada menor o papel dos escândalos de corrupção que salpicam em todos esses governos. Todos os progressismos, que em suas origens se ofereciam para combatê-la, tiveram problemas de corrupção, ainda que com intensidade e extensão diferentes. É uma situação que foi aproveitada pelos meios de comunicação convencionais, insistindo uma e outra vez em tramas como a da Petrobras e as corporações como um exclusivo problema da esquerda.

Relançar as esquerdas

Não pode deixar de surpreender que o mesmo país que há poucos anos atrás era apresentado como exemplo de “maré para a esquerda”, de um “novo” desenvolvimentismo e de uma liderança popular, passara agora a ser um estudo de caso no sentido contrário. Uma tendência que para alguns anuncia uma catástrofe democrática. Essa situação merece uma reflexão adicional pensando nas respostas que são necessárias para enfrenta-la.

Os exemplos expostos têm em comum a prevalência de análises simplistas e essencialistas. A isso se soma a falta de autocrítica, inclusive a ativa oposição a ela. O abafamento da pluralidade de vozes deteriora as opções da esquerda para se renovar, porém ao mesmo tempo implica em um enfraquecimento da democracia.

Isso permite voltar a Florestan Fernandes, já que na sua conferência de 1965 também assinalava que “não tenho dúvida em sustentar que o único elemento realmente positivo de nossa história recente diz respeito aos pequenos progressos que alcançamos na esfera da democratização do poder”. Ali já postulava que “o dever maior do intelectual, em sua tentativa de ajustar-se criadoramente à sociedade brasileira, objetiva-se na obrigação permanente de contribuir, como puder, para estender e aprofundar o apego do homem médio ao estilo democrático de vida”.

O que ocorreu com os progressismos é que se tornaram cada vez mais comuns os casos de intelectuais que abandonavam a reflexão independente e se somavam aos coros de apoio, em vez das análises que escutavam as reivindicações das comunidades locais, preferiram as visões e argumentos da burocracia desenvolvimentista estatal, e assim sucessivamente. Essa deterioração das capacidades de análise crítica e autocrítica é um fator muito importante para explicar o esgotamento dos progressismos.

O que o Brasil mostra são as consequências das falhas, limitações ou fraquezas nessa tarefa. As ideias que bastava conquistas a presidência para mudar tudo, foram demolidas pela realidade. Sobretudo porque uma vez no palácio do governo, ao se assumir portadores da vontade coletiva e quase proprietários da verdade, acreditaram que já não era necessário seguir aprofundando a democracia. Posições que, sem dúvida alguma, se revelaram não somente alheias à esquerda, mas sim que terminam sendo funcionais no médio prazo à extrema-direita. A democratização em buscar alternativas ao desenvolvimento não pode ser confundida, nem reduzida, à nacionalização de recursos ou sustentar empresas estatais.

Florestan insistia que os “intelectuais brasileiros devem ser paladinos convictos e intransigentes da causa da democracia”. Nesse compromisso democrático está a necessidade de aceitar, reconhecer e escutar as advertências, as reivindicações e as críticas. Ali se abrem as portas para uma renovação a partir da esquerda.

Apesar da opressão que poderiam provocar essas manifestações de ressurgimento da extrema-direita na América Latina e em outras partes do planeta, não compartilhamos do pessimismo extremo que existe entre alguns atores, ainda que possamos entende-lo. Um pessimismo que considera que o capitalismo alcançou uma vitória total na América Latina e que qualquer opção de esquerda se tornou inviável. Ao contrário, entendemos que esse colapso afeta os progressismos, e que eles deveriam permitir novas opções para reconstruir as esquerdas.

Aceitamos que essa situação de excepcionalidade que vivemos é fruto de processos profundos que devemos compreender melhor, e que são parte da complexa e convulsa mudança civilizatória. Por isso as alternativas para reconstruir as esquerdas que surgem da resistência ante esses atropelas, não podem se colocar em marcha como forma de imposição de uma vanguarda que acredita ter lido corretamente o andar da história. Apelamos às esquerdas que sejam conscientes dos limites do planeta, e por isso explorem uma renovação ecológica, que assumam a brutalidade do patriarcado, e apostam em outras relações de gênero. Esquerdas que superem a colonialidade e que enfrentem racismosiniquidades e desigualdades sociais.

Tudo isso em um processo de permanente radicalização da democracia. Pois, sem se criar mais democracia se corre um risco no Brasil, dizia Florestan, e, como agregamos, nos demais países latino-americanos: que o capitalismo gere “formas de espoliação e iniquidades sociais tão chocantes, desumanas e degradantes como outras que se elaboraram em nosso passado agrário”.

Notas

(1) Fernandes, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5ª edição, Global, São Paulo, 2008.
(2) A extrema-direita no poder no Brasil. E agora? E. Gudynas y A. Acosta, Correio Cidadania, 8 novembro 2018.
(3) Latinobarómetro 2018. Corporación Latinobarómetro, Santiago de Chile.