O Senado Federal aprovou, na noite desta terça (27), a PEC do Trabalho Escravo (57A/1999). A medida prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos.
A reportagem é de Leonardo Sakamoto e publicada em seu blog e na agência Repórter Brasil, 27-05-2014.
Após acordo de líderes, os dois turnos de votação foram realizados na mesma sessão. Como é uma proposta de emenda constitucional, ela não precisa de sanção presidencial e passa a valer após sua promulgação. Ela já havia sido aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados em 2004 e 2012.
Foram 59 votos a favor, nenhum contra e nenhuma abstenção – era necessário um total de 49 senadores – na votação em primeiro turno. E 60 votos a favor, nenhum contra e nenhuma abstenção no segundo turno.
Uma subemenda de redação também foi aprovada, acrescentando o texto “na forma da lei'' à proposta. De acordo com o presidente Renan Calheiros, essa redundância foi para reforçar a necessidade de regulamentação. A emenda não fará a proposta retornar à Câmara, segundo a Mesa do Senado.
Uma proposta de regulamentação está sendo discutida, apontando como se dará o perdimento de terras, imóveis e benfeitorias. Ela deve ser votada na próxima semana, de acordo com o senador Romero Jucá.
Todos os senadores que se manifestaram na sessão de aprovação da PEC ressaltaram que este foi um “momento histórico''. Nem pareceu que, ao longo de anos, parte deles lutou arduamente nos bastidores para impedir o trâmite da proposta.
A primeira vez que uma proposta de confisco de propriedades flagradas com trabalho análogo ao de escravo foi apresentada no Congresso Nacional foi em 1995, mesmo ano em que o governo brasileiro reconheceu diante das Nações Unidas a persistência de formas contemporâneas de escravidão no país e da criação do sistema público de combate a esse crime. Desde então, mais de 46 mil pessoas foram resgatadas do trabalho escravo pelo governo federal em fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obra, entre outros empreendimentos.
Nesta terça (27), a ministra-chefe da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti, ao lado de artistas e intelectuais do Movimento Humanos Direitos, como Camila Pitanga e Maria Zilda Bethelem, percorreram os gabinetes de lideranças e senadores para pedir apoio à votação da proposta.
“Essa é uma sinalização bem clara do Estado brasileiro que não compactua com esse crime em seu território. Isso em um momento em que a Organização Internacional do Trabalho se encontra em Genebra para aprofundar as medidas previstas para essa violação de direitos humanos, a aprovação da PEC é uma sinalização para o resto do mundo'', afirmou a este blogIdeli Salvatti.
Confisco
A PEC prevê um acréscimo ao artigo 243 da Constituição que já contempla o confisco de áreas em que são encontradas lavouras de psicotrópicos. O projeto está tramitando no Congresso Nacional desde 1995, quando a primeira versão do texto foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA), mas não conseguiu avançar. Então, uma proposta semelhante, criada no Senado Federal por Ademir Andrade (PSB-PA), foi aprovada em 2003 e remetida para a Câmara, onde o projeto de 1995 foi apensado.
Devido à comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego durante uma fiscalização rural de rotina em 28 de janeiro de 2004, no que ficou conhecido como a “
Chacina de Unaí'', no Noroeste de Minas Gerais, a proposta foi aprovada em primeiro turno na Câmara em agosto daquele ano. Os produtores rurais
Antério e
Norberto Mânica, acusados de serem os mandantes do crime, ainda não foram julgados.
Desde sua proposição, a PEC entrou e saiu diversas vezes na pauta. Dezenas de cruzes foram plantadas no gramado do Congresso e mais de mil pessoas abraçaram o prédio em março de 2008, para protestar contra a lentidão na aprovação da proposta. Dois anos depois, um abaixo-assinado com mais de 280 mil assinaturas foi entregue ao então presidente da Câmara e hoje vice-presidente da República, Michel Temer. Em janeiro de 2012, Dilma havia colocado a PEC como prioridade legislativa para o governo federal neste ano.
No dia 08 de maio de 2012, houve um ato no auditório Nereu Ramos, da Câmara, reunindo centenas de pessoas, entre trabalhadores rurais, movimentos sociais, centrais sindicais, artistas e intelectuais, pedindo a aprovação da PEC. Um outro abaixo-assinado com cerca de 60 mil peticionários foi entregue a Marco Maia. Os ruralistas, então, adotaram como estratégia aproveitar para negociar mudanças profundas no conceito de trabalho escravo, usando a justificativa da aprovação da PEC 438 para tentar descaracterizar o que é a escravidão contemporânea.
Em 22 de maio de 2012, a PEC do Trabalho Escravo, que tramitou na Câmara dos Deputados sob numeração 438/2001, foi aprovada em segundo turno. Foram 360 votos a favor, 29 contrários e 25 abstenções, totalizando 414 votos. Em 2004, haviam sido 326 votos a favor, 10 contrários e 8 abstenções. Com isso, a matéria foi remetida de volta ao Senado, sua casa de origem, por conta da inclusão, pela Câmara, da previsão de expropriação de imóveis urbanos.
Regulamentação
Nos últimos meses, parlamentares contrários à PEC do Trabalho Escravo pressionaram para que a pauta só fosse ao plenário caso uma regulamentação pudesse ser aprovada antes. O senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação da PEC do Trabalho Escravo usou um conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição mais restrita, que não é encampada pelo governo federal, mas está alinhada com a bancada ruralista.
Renato Bignami, coordenador do enfrentamento ao trabalho escravo urbano da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo afirma que a PEC não contribuirá com o combate ao crime em oficinas de costura e canteiros de obra, por exemplo, caso sua regulamentação seja a do projeto do senador Jucá.
De acordo com a lei vigente, são elementos que determinam trabalho escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social – um exemplo são as mais de duas dezenas de pessoas que morreram de tanto cortar cana no interior de São Paulo nos últimos anos), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, retenção de documentos, ameaças físicas e psicológicas, espancamentos exemplares e até assassinatos) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
A legislação brasileira é considerada pela relatoria das Nações Unidas para formas contemporâneas de escravidão como de vanguarda, pois considera não apenas a liberdade mas também a dignidade como valores que são negados em casos de escravidão. Ou seja, quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo.
A senadora e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) Kátia Abreu reforçou, em seu discurso, o conceito de trabalho escravo que se resume ao trabalho forçado e à servidão por dívida, ignorando os outros elementos ligados à dignidade do trabalhador que fazem parte da lei.
De acordo com senadores ouvidos por até blog, a bancada ruralista aposta em uma regulamentação restrita não apenas para enfraquecer a emenda constitucional, mas também para possibilitar uma rediscussão do próprio artigo 149 do Código Penal.
Ideli Salvatti afirmou que não haverá acordo para mudanças no conceito que será usado na regulamentação da PEC. “O governo atuará para usar o conceito presente no artigo 149 do Código Penal, que tem norteado o combate ao trabalho escravo.''
O artigo 149, que traz o conceito de trabalho escravo, é de 1940, reformado em 2003 para deixar sua caracterização mais clara. Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a definição desse artigo. Processos por trabalho escravo contra parlamentares foram abertos no Supremo Tribunal Federal com base no 149.
No campo, a maior incidência de trabalho escravo contemporâneo está na criação de bovinos, produção de carvão vegetal para siderurgia, produção de pinus, cana-de-açúcar, erva-mate, café, frutas, algodão, grãos, cebola, batata, na extração de recursos minerais e na extração de madeira nativa e látex. Nas cidades, a incidência é maior em oficinas de costura, no comércio, hotéis, bordéis e em serviços domésticos. No campo e na cidade, pipocam casos na construção civil.