Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Nota prévia
O título talvez
cause estranheza, por referir-se a “tempos de guerra”. O problema é que a
guerra ganhou uma nova forma – guerra de
4ª geração, ou guerra híbrida – e
ainda não sabemos como lidar com ela. Estamos em situação semelhante à dos
povos originários que não sabiam como defender-se dos europeus que chegaram protegidos
por vestes metálicas e armas de fogo. Esta análise tem por objetivo desvendar
as atuais estratégias de dominação econômica, política e cultural a serviço das
grandes empresas transnacionais e seus efeitos na realidade da América Latina e
Caribe.
A análise de
conjuntura deve partir dos acontecimentos recentes, mas ir além deles e buscar a
lógica do processo histórico no qual se inserem. Por isso a análise de
conjuntura deve situar os fatos (visíveis) no plano das estruturas
(invisíveis). É o que tento fazer aqui, para decifrar o sentido profundo do que
está acontecendo em Nossa América,
particularmente no Brasil.
Distingo três planos estruturais: o sistema de vida da Terra, o sistema-mundo com seu modo de produção e
consumo capitalista, e o sistema (social, político, cultural e econômico) dos
países da América Latina e Caribe, que são o foco de nosso interesse imediato.
Sabemos, porém, que só podemos entender sua realidade considerando a história da
Terra e o sistema-mundo em crise. Por
isso, farei breve menção às mudanças conjunturais em cada um deles.
Lembro que não
existe neutralidade na análise de fatos históricos. Por isso explicito que esta
análise é feita na perspectiva de quem se identifica com as classes
trabalhadoras, os povos originários e os grupos socialmente discriminados em
suas lutas por um mundo de Paz, Justiça e Vida da Terra.
1. O sistema de vida Terra
Tornaram-se
frequentes os sinais de mudanças estruturais no sistema Terra. Ao abrir a
reunião da COP-24, no final de 2018 na Polônia,
disse o secretário-geral da ONU: “Estamos
em apuros. Estamos em grandes apuros com as mudanças climáticas”. Porque ele tem uma visão global, sabe avaliar
o significado de uma catástrofe climático-ambiental. E sabe que ela poderá
acontecer ainda antes de 2050, caso não sejam tomadas as medidas recomendadas
pela comunidade científica internacional – medidas que as empresas rejeitam
porque prejudicariam seus lucros. A situação se agrava porque os Estados
nacionais dão mais prioridade aos lucros das empresas do que ao equilíbrio
climático e ecológico. O caso do presidente dos EUA é emblemático, mas são muitos
os governantes que, para não desagradar as empresas poluidoras, negam o fator
humano no aquecimento global.
Aqui reside uma
grave deficiência de nossa metodologia de análise: não entender a questão ambiental como questão política. É preciso ampliar nossas
categorias de pensamento para incluir a Terra – ou, pelo menos, sua comunidade de vida – como sujeito da história, e não mais como coisa. Ela está sofrendo e esse
sofrimento certamente atinge a espécie humana, embora o instrumental científico
disponível não consiga explicar essa conexão.
Tudo se passa
como se espécie homo sapiens esteja a
pressentir sua extinção e isso provoca comportamentos opostos. Num polo estão
práticas que destroem a sociabilidade própria de nossa espécie, como o ódio ao
diferente, a voracidade do consumo, o refúgio no mundo virtual e tantas outras;
no polo oposto, esse mesmo pressentimento favorece a emergência da consciência da
Terra como sujeito de direitos e ser vivo do qual a espécie humana faz parte,
como bem expressou a Carta da Terra,
publicada em 2000. Essa nova consciência recupera concepções ancestrais – como
o Sumak Kawsay (Bem-Viver) – que só entendem os seres humanos em comunhão com a Mãe-Terra, seus filhos e filhas de
outras espécies e com o espiritual.
Atenção: Essa realidade de âmbito planetário precisa ser seriamente considerada,
porque ainda é possível ao menos amenizar a catástrofe ambiental que se
anuncia. No mínimo, ela precisa ser considerada como um obstáculo intransponível
ao crescimento econômico de médio e longo prazo. O próprio megaprojeto chinês
da nova rota da seda, que prevê
investimento de US$5 trilhões até 2049, fracassará se desconsiderar as mudanças
ambientais.
2. O
sistema-mundo do capitalismo em
crise/guerra.
A crise de 2008
fecha o ciclo de acumulação do capital puxado pelos EUA no século 20. Acaba o
desenvolvimentismo no terceiro mundo e
as economias avançadas se protegem fechando-se. Enquanto o capitalismo mundial manteve
aquele ciclo de crescimento, gerou ao mesmo tempo megaempresas transnacionais e
diminuição da pobreza e da miséria no mundo; depois da crise de 2008, porém, a
pobreza e a miséria retornam ao patamar anterior, enquanto o poderio das megaempresas
se manteve, provocando superconcentração da riqueza mundial. O resultado é a financeirização típica dos processos de
transição no interior do capitalismo: o capital se torna mais lucrativo no
mercado financeiro do que na produção de bens e serviços.
Nesse contexto,
as previsões apontam a transferência do polo econômico mundial do Ocidente (EUA
- Europa), para a Ásia (China - Índia - Rússia). O projeto da nova rota da
seda visa construir a
infraestrutura para essa transferência. Enquanto esse projeto não se torna
realidade, o capitalismo permanece em crise, deixando conturbada a
situação econômica mundial. Fator relevante dessa crise é o US$ ainda ser a
moeda de referência das transações internacionais, apesar da enorme dívida externa
dos EUA.
A disputa geopolítica entre as grandes potências
envolve o controle sobre suas áreas de influência e a conquista de novas áreas.
Os investimentos chineses na África, por exemplo, assim como o retorno da
doutrina Monroe “A América para os Americanos” devem ser entendidos na
perspectiva geopolítica: cada Estado busca estender seu poder além do próprio
território nacional para assegurar o acesso ao petróleo, a matérias-primas ou realizar
alianças estratégicas com outros Estados. Além dos meios políticos e
diplomáticos, a geopolítica usa também a força militar. Ao fazê-lo, surgem as guerras.
Há hoje muitas guerras
no mundo: são guerras civis, étnicas, religiosas, contra drogas ou terrorismo –
todas respaldadas pelas grandes potências. Não se pode descartar o risco de
tais guerras evoluírem para uma guerra nuclear que liquidaria a espécie humana.
A essas modalidades já conhecidas, acrescenta-se atualmente a guerra de 4ª geração ou guerra híbrida. Para explicar muito
abreviadamente o que são elas, recorro a A. Korybko: Guerras híbridas: Expressão Popular, São Paulo, 2018.
Toda guerra é uma
combinação de ações que visam destituir um poder definido como hostil e substituí-lo por um poder amigável. Desde
milênios a guerra visa eliminar um governante ou regime que se recusa a
submeter-se aos ditames de outro governo. A novidade da guerra de 4ª geração reside no tratamento da informação como arma de combate. O uso metódico,
racional e sistemático da informação, associado a experiências empíricas, como
meio de enfraquecimento do “poder hostil”. Trata-se de produzir informações
parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news), mas plausíveis para quem as recebe, e difundi-las pela
combinação da mídia corporativa (TVs, rádios e jornais), mídias digitais (whatsapp,
facebook e twitter) e instituições com credibilidade, como Igrejas cristãs,
ONGs ou institutos de pesquisa.
Ao receber uma
informação que corresponde a seu desejo, a pessoa é levada a replica-la em sua
rede de contatos. Isso aumenta sua credibilidade, porque as pessoas tendem a
dar crédito à informação proveniente de fontes diferentes. Esse processo
funciona como o vírus que infecta o sistema. Quando se trata de derrubar um governo
“hostil”, as informações devem abalar sua legitimidade
(geralmente acusando-o de corrupto) a tal ponto que bastará uma ofensiva local
liderada por algum setor militar, político ou do judiciário para liquidá-lo. Esse processo de
ataque é blindado pela tática de desqualificação das fontes de informação
não-alinhadas contra o “poder hostil” como não-fidedignas por serem a favor da corrupção.
Atenção. Diante dessa forma de guerra, não basta indignação ética: se não aprendemos a combatê-las,
seremos facilmente derrotados pelas armas ideológicas produzidas por Steve
Bannon e outros manipuladores de opinião a serviço do liberalismo de mercado.
Antes que a suspeição de teoria conspiratória dificulte a
compreensão dessa realidade, é preciso ter claro que a guerra de 4ª geração não é o resultado de
decisão tomada em alguma assembleia secreta por dirigentes de fundações,
empresas petrolíferas, bancos, ONGs, agentes da NSA, FBI, embaixadores,
procuradores e Secretários de Estado. Tampouco teria um comando centralizado na
CIA ou alguma agência governamental dos EUA. Ela é o resultado objetivo de
diferentes fluxos de dinheiro, de poder ou de conhecimento, que se conectam
direta ou indiretamente em laços de retroação, conformando uma grande rede.
Nessa rede cada ator – no campo
econômico, político, cultural e militar – age tendo em vista apenas seus
interesses particulares ou da instituição que representa.
Agências governamentais e
fundações privadas financiam o treinamento de atores locais para aprenderem a
atuar em parceria com atores dos EUA na aplicação de suas normas e leis, no
emprego de suas técnicas ou na difusão de seus valores e ideologia. É a conexão
desses fluxos – materiais, de poder e conhecimento – em laços de
retroalimentação, que faz surgirem atores, singulares ou coletivos, como nodos
dessa rede. Assim como surgem, os nodos podem ser desligados após gerarem os
resultados esperados, simplesmente pelo corte do fluxo de recursos, de poder ou
de informação que os alimentava. (Adaptação livre do que diz Euclides Mance em O Golpe:
3. Guerra
de 4ª geração em Nossa América
A análise da
situação geopolítica atual aponta para a ocorrência de uma guerra latente entre
as grandes potências mundiais hoje polarizadas por EUA e China. Embora se
mantenham as relações diplomáticas e as transações comerciais e financeiras
entre esses dois polos do capitalismo contemporâneo, as tensões eclodem em
forma descontínua e localizada. Examinarei aqui dois exemplos – Brasil e
Venezuela – para mostrar como essa tensão geopolítica se desdobra em guerras de 4ª geração na América Latina e
Caribe.
3. 1: Brasil.
A hipótese
desta análise é que a derrubada do governo de Dilma Rousseff, em 2016, faz
parte de uma estratégia de guerra de 4ª
geração iniciada nos primeiros meses de 2014 e que se estende pelo menos
até a posse do atual governo. Sua causa está no conflito de interesses entre os
governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores – PT – e grupos petroleiros e
financeiros dos EUA. A divergência era a exploração do petróleo do pré-sal e o
alinhamento do Brasil com o bloco formado por Rússia, China, Índia e África do
Sul – BRICS. No quadro geopolítico resultante da crise financeira de 2008, o
controle do petróleo (e de seu preço) e a manutenção do US$ como moeda de
referência mundial representam pontos de grande importância. Por isso, ao
defender o monopólio estatal na exploração do petróleo e favorecer a
aproximação com a China, aqueles governos passaram a ser tratados como uma forma de poder “hostil” e, por
conseguinte, alvo da guerra de 4ª
geração.
Fundamental
para o êxito dessa guerra é a aliança das megaempresas com as classes
dominantes do Brasil: cerca de 71.500 pessoas com rendimentos mensais
superiores a 160 salários mínimos e patrimônio (bens e direitos) médio de
R$17,7 milhões (Dados de Receita Federal de 2013). Em meio à crise econômica e
política de 2013, esses muito-ricos romperam o pacto informal feito com o PT, que em troca da governabilidade postergou as reformas estruturais (agrária,
fiscal, política) e a auditoria da dívida pública. Assim, o projeto
social-desenvolvimentista foi trocado pelo programa de Temer Ponte para o futuro que favorecia a
política de subordinação aos interesses dos EUA. Seu apoio à eleição de Bolsonaro
para dar cobertura à política econômica ultraliberal de P. Guedes, é o
coroamento daquela aliança entre os muito-ricos do Brasil e os dos EUA.
Pelo menos
temporariamente, as classes dominantes conseguiram a adesão das classes médias
e os votos da massa popular. Para isso contam com a colaboração da mídia corporativa,
de militares, Igrejas neopentecostais e setores conservadores das Igrejas Evangélicas
e Católica. Embora seu ideário político-social dependa de pensadores do quilate
de Olavo Carvalho, isso parece bastar para conquistar a adesão da grande massa de
insatisfeitos com o sistema atual, que atiça o desejo de consumo mas não o
satisfaz. Na ânsia de uma nova política, essa massa deixa-se levar pela
propaganda que recobre e disfarça as velhas práticas da politicagem nacional.
Desde a vitória
eleitoral de Bolsonaro os grupos no poder têm recorrido à agressividade para eliminar
– ou ao menos enfraquecer – os instrumentos de que dispõem as classes
trabalhadoras e setores subalternos para se expressar ou se organizar (como os
Partidos de esquerda, Movimentos como MST, MTST, de Indígenas, negros,
mulheres, LGBT e outros). Essa agressividade estende-se a setores de Igrejas, da
intelectualidade e de universidades vistas como forças de oposição ao novo
governo. Mais grave ainda é a permissividade à violência (policial-militar ou
miliciana) contra povos originários e a defensores e defensoras de Direitos
Humanos, na cidade como no campo. É típica do fascismo essa atitude de
pretender eliminar toda oposição, sem ceder espaço à luta política dentro da
institucionalidade democrática.
Atenção. Esta análise indica que as classes trabalhadoras e os setores populares
ou nacionalistas foram derrotados pela guerra de 4ª geração. Sintomas dessa derrota é a fragilização das
instituições republicanas – os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo – e
a estagnação da economia, que não voltou a crescer significativamente desde
2014. Mas ainda é prematuro avaliar até que ponto suas forças foram exauridas e
até que ponto têm capacidade de reação com real possibilidade de reverter a
situação.
Convém pensar o
Brasil atual como um país derrotado numa guerra de 4ª geração e com um governo a serviço dos muito-ricos e subordinado
aos interesses das grandes empresas petrolíferas e financeiras dos EUA. Esse
quadro, porém, não pode deixar de fora os sinais de vitalidade dos setores
populares: (1) uma bancada suficientemente forte na Câmara para evitar
aprovação de PECs, desde que construa um arco de alianças com partidos
democráticos, significativa presença no Senado e conquista de Governos
estaduais; (2) Movimentos Sociais organizados, Povos Indígenas, Partidos de esquerda,
Sindicatos e novos coletivos dão
mostras de resiliência e capacidade de reorganização desde as bases; (3) as
propostas antidemocráticas do governo sofrem oposição da maioria da
intelectualidade, de artistas e da população universitária; (4) CEBs e
Pastorais sociais, bispos e padres católicos e pastores evangélicos, embora
minoritários em sua Igreja, mantém vivo o Cristianismo da Libertação; (5) as
pequenas unidades de economia solidária,
cooperativas populares e assentamentos são alternativas à economia capitalista.
3.2 Venezuela.
A estratégia de
guerra de 4ª geração usada no Brasil
– informações que descrevem o governo como corrupto – foi reforçada na
Venezuela pelo bloqueio econômico que estrangula a economia nacional. Também
ali está em jogo o controle do petróleo (e de seu preço) e a aproximação com
China e Rússia. Fosse a Venezuela produtora de cacau ou café, provavelmente
desenvolveria seu projeto bolivariano com autonomia.
Sinal evidente
dessa estratégia de guerra é sustentação dada pelos EUA e meia centena de
governos aliados ao inexperiente suplente de deputado eleito presidente da
Assembleia e logo depois presidente da República. A ascensão política de J.
Guaidó como expressão do descontentamento popular certamente foi possibilitada
pela política econômica de Chávez e Maduro, que beneficiou antes a nova
burguesia bolivariana e seus comandantes militares, do que o empoderamento
econômico popular. Mas ela seria inexplicável se não considerasse a importância
geopolítica de um país que, sendo grande exportador de petróleo e tendo enorme
potencial para mineração, encontra-se a menos de 4.000 km do território
estadunidense.
Apagões de
eletricidade (provavelmente causados por ataques cibernéticos) e a recente
intensificação do bloqueio a toda compra de petróleo sinalizam que a guerra vai
continuar e intensificar-se em 2019. É verdade que a Venezuela conta com aliados
poderosos – Rússia, Turquia, Irã e China – mas todos estão do outro lado do
Atlântico. É bem diferente da guerra de 4ª geração contra a Síria, cujo regime sofreu
igual ataque acompanhado de intervenção militar, mas ali a vizinha Rússia interveio
militarmente e não permitiu que seu aliado fosse derrotado. No caso do regime bolivariano
a situação é diferente, pois os principais vizinhos da Venezuela – Brasil e
Colômbia – querem derrubá-lo.
Conclusão.
A solução a ser
encontrada pela Venezuela em conjunto com outros países de Nossa América será muito valiosa para aprendermos a lidar com essa
nova forma de guerra, mas ainda não se consegue sequer vislumbrar qual será
ela.
Cuba, Venezuela
e a Bolívia são hoje os únicos regimes latino-americanos que resistem à
hegemonia dos EUA, acompanhados até certo ponto por México, Uruguai e
Nicarágua. Se os EUA conseguirem impor seus interesses geopolíticos sobre a
Venezuela, o próximo alvo de guerra de 4ª
geração será provavelmente a Amazônia,
dada a ambição de empresas pelas reservas de água, biodiversidade e minerais
contidas em seu enorme território.
Percebe-se,
então, a intuição genial do Papa Francisco ao escolher a Amazônia como tema do
próximo sínodo da Igreja Católica. Ela pode ser a instituição multinacional
mais adequada à defesa da vida na Amazônia, dada a fragilidade atual da ONU,
cujas resoluções são sujeitas a vetos das grandes potências. O Sínodo, reunindo
bispos de todo o mundo, poderá despertar e mobilizar novas energias capazes de
assegurar a Paz na Terra e com a Terra. Que o teor de fidelidade
ao Evangelho no episcopado mundial seja suficientemente forte para resistir às
pressões que virão dos poderosos!
Juiz de Fora, 30/ abril. 2019