O físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo e um dos autores do estudo que o IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental para a Mudança Climática) divulga hoje, em Estocolmo, tem uma certeza quanto ao resultado do trabalho de quatro anos de cientistas do mundo todo sobre a ciência do clima: "O homem está aumentando cada vez mais a sua influência negativa no clima do nosso planeta. Estamos em um processo acelerado de aquecimento global".
Artaxo é um dos autores do capítulo de aerossóis e nuvens do novo relatório e é coordenador da divulgação no Brasil do "Sumário para Formuladores de Políticas", que será conhecido mundialmente hoje. Ele adianta aqui alguns pontos que não devem mudar na discussão que representantes de mais de 180 países estão fazendo nesta semana, na Suécia sobre a última versão do documento. O documento reafirma o que se divulgou no estudo anterior - que o nível dos mares vai subir, que os eventos extremos serão cada vez mais frequentes, que o regime de chuvas irá mudar, que o aquecimento está se agravando e que tudo isso é responsabilidade do homem.
"O relatório deixa muito claro que é fundamental reduzirmos as emissões dos gases de efeito estufa o mais cedo possível e com a maior intensidade possível", resumiu Artaxo, em Londres, onde participa da Fapesp Week, evento que a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo promove nesta semana para reforçar a pesquisa no Brasil e a colaboração entre cientistas brasileiros e estrangeiros.
A entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 27-09-2013.
Eis a entrevista.
A ciência do clima foi questionada no outro relatório. O sr. tem comentários sobre isso?
Em ciência é saudável ter vozes dissonantes. É um mecanismo que promove o aprimoramento da ciência. Então, o que oIPCC fez no novo relatório foi analisar cuidadosamente, com dados científicos e trabalhos de observação e de modelagem, os vários aspectos que foram levantados em relação a pontos que poderiam não ter um embasamento forte no relatório anterior, o AR4 [lançado em 2007]. Esses pontos foram cuidadosamente analisados e estão discutidos, em detalhes, no AR5. O que nós observamos é que a base científica é hoje muito robusta. O que nos leva a afirmar que, com mais de 95% de certeza, o homem está, sim, alterando o clima do planeta de uma maneira que pode trazer impactos socioeconômicos muito fortes neste século.
Vem sendo dito na mídia que o aumento de temperatura previsto agora é menor que o sido previsto antes. O que isso significa?
O aumento de temperatura previsto não é menor. É da mesma ordem de grandeza se se levar em conta as incertezas inerentes nesse cálculo.
O sr. está dizendo que está dentro da margem de erro?
Está dentro da margem de incerteza, não de erro porque não existe erro aí. Isso são incertezas estatísticas inerentes ao processo de cálculo, por exemplo, de como será a temperatura no final deste século. Basicamente, a faixa das projeções de temperatura são muito similares ao relatório AR4. Deve-se também levar em conta que não são exatamente os mesmos cenários de emissões que foram utilizados no AR4 que estão sendo utilizados no AR5.
Eles mudaram?
O aprimoramento da ciência levou os cientistas a elaborar um sistema de projeções climáticas que é muito mais sofisticado do que o utilizado no último relatório porque não se baseia apenas nas emissões, por exemplo, de CO2 ou metano de cada setor. Ele se pautou pelas concentrações atmosféricas do conjunto de todos os efeitos que afetam o sistema climático terrestre.
O sr. pode dar um exemplo disso?
É um cálculo muito mais sofisticado. Por exemplo, um cenário mais otimista, chamado RCP 2,5, é um cenário onde, basicamente, estima-se que as concentrações de gases de efeito estufa até o final deste século produzirão um valor máximo de forçante radioativa de 2,5 watts por metro quadrado. Essa medida, essa forçante radioativa, pode ser obtida pela concentração de CO2, pela concentração de metano, pela alteração do uso do solo, por um número muito grande de fatores que não são somente as emissões de gases individuais. É um protocolo de concentrações atmosféricas muito mais sofisticado do que o usado até agora. Antes as simulações climáticas eram baseadas apenas nos cenários de emissões de gases do efeito estufa. Os novos "cenários de emissões" não são propriamente isso. São caminhos de como a forçante radioativa vai ser atingida e qual a forçante radioativa de equilíbrio para cada perfil de emissões de gás de efeito estufa.
O que é essa forçante radioativa?
É a medida do efeito de qualquer alteração que se faça, tanto na atmosfera quanto na superfície do nosso planeta, que mude o balanço de radiação que mantém a temperatura e as condições termodinâmicas da Terra. Por exemplo, o cenário de 8,5 watts por metro quadrado significa que a contribuição de toda a alteração humana no clima seria de 8,5 watts por metro quadrado. Hoje essas alterações são de 2,3 watts por metro quadrado.
O senhor está falando só do impacto do homem nas mudanças climáticas?
Sim, só do impacto do homem, sem as componentes naturais do sistema climático. O IPCC estruturou agora quatro cenários. Em um deles, a forçante radioativa é de 2,6 watts por metro quadrado. No outro, 4 watts por metro quadrado, 6,5 watts por metro quadrado e finalmente 8,5 watts por metro quadrado.
O cenário mais pessimista, por exemplo, significa o quê em termos de impacto no planeta?
O cenário mais pessimista, o chamado RCP 8,5 implica um aumento de temperatura entre 2 a 4,5 graus centígrados ao longo deste século, projetado para os últimos 20 anos deste século como média, levando em conta como base a temperatura em 2010. Levando em conta que o nosso planeta já se aqueceu 1 grau centígrado, isso leva a um aquecimento total da Terra, desde o início da Revolução Industrial ao final deste século, entre 3 a 5 graus, o que é um aumento muito significativo.
Quanto a temperatura pode variar nesses novos cenários?
No cenário mais otimista, o aumento da temperatura seria de 2 graus centígrados e no mais pessimista, de 4,5 graus centígrados ao longo deste século.
A imprensa está falando em um "hiato" no aumento da temperatura. O que é isso?
Na última década, o aumento da temperatura cresceu menos do que cresceu nos anos 80 e 90 do século passado. O aumento anterior, por década, era de 0,12 grau centígrado e, na última década, esse aumento diminuiu para 0,05 grau centígrado por década. Há duas razões que podem esclarecer porque isso acontece. Nessa última década houve uma predominância de fenômenos La Niña versus fenômenos El Niño.
Pode explicar La Niña?
O La Niña aquece as águas do oceano Pacífico e aumenta a transferência de calor da atmosfera para as águas profundas.
E o outro ponto?
Esse calor tem que ter ido para algum lugar. Medidas recentes mostram claramente que nos oceanos, em profundidades abaixo de 700 metros, as águas estão aquecendo a uma razão muito maior do que antigamente. Portanto, esse calor retirado da atmosfera está indo para os oceanos mais profundos. Recentemente foram coletados dados de boias que medem o perfil da temperatura dos oceanos até 700 metros de profundidade e eles indicaram que é para lá que esse calor foi. E isso não quer dizer que o aumento da temperatura não possa voltar aos valores da década anterior.
Então o "hiato" não é um indicativo de que, na verdade, a Terra não está aquecendo.
Não, muito pelo contrário. Não só a Terra está aquecendo, como agora até a água mais profunda dos oceanos, abaixo dos 700 metros, está aquecendo.
O que o novo estudo traz sobre aumento do nível do mar?
Os modelos hoje são muito mais sofisticados em analisar o aumento do nível do mar. Esse aumento foi projetado para os diferentes cenários variando de 20 a até 85 centímetros ao longo deste século. Um aumento médio de 85 centímetros significa que em algumas regiões podemos ter um aumento do nível do mar menor que este, mas em outras regiões pode ser um aumento maior do que um metro. Isso pode trazer problemas sérios de erosão em muitas zonas costeiras do mundo.
Qual o impacto no Brasil?
O Brasil não está imune à mudança climática. Observamos, do ponto de vista da temperatura e do ponto de vista do aumento do nível do mar, valores muito similares aos observados pelo IPPC. Isso foi divulgado recentemente no lançamento do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC). O aumento médio da temperatura no país até hoje é da ordem de 1 grau centígrado, mas em algumas regiões reportam aumentos de até 2 graus, o que acarreta alterações importantes no funcionamento dos ecossistemas.
O Nordeste continuará sofrendo mais?
Sem dúvida nenhuma, no caso do aumento da temperatura e redução da precipitação. No caso de aumento de temperatura e precipitação, é a região Sudeste. O Sudeste já observa aumento na taxa de chuvas da ordem de 30% do início do século passado até 2010, de acordo com o relatório do PBMC. Os modelos climáticos preveem alta ainda maior nas taxas de precipitação para a região Sul.
Isso acarreta mudanças na produção agrícola e também no surgimento de doenças?
Isso significa que teremos impactos socioeconômicos. O setor da agricultura, em particular, é extremamente sensível a essas mudanças e também o setor de pesca, que será bastante afetado, com certeza, tendo efeitos socioeconômicos importantes.
O senhor está falando em redução do estoque de peixes?
Redução e alteração de estoque pesqueiro. Cardumes que hoje chegam a determinadas regiões por causa de correntes marítimas, da salinidade e da temperatura, podem ter a incidência alterada. Na agricultura teremos, e já estamos observando, de acordo com a Embrapa, alterações na produtividade em várias culturas incluindo café, cana-de-açúcar, soja.
O que pode mudar, amanhã, na divulgação do relatório final? Haverá surpresas?
A plenária do IPCC, onde há mais de 180 países, não faz qualquer alteração nos cálculos ou nos números constantes do relatório, porque esses números foram resultado de quatro anos de observações realizadas por milhares de cientistas. Isso não é alterado. O que pode mudar, isso dependerá da ação de governos, é por exemplo, retirar a inclusão de itens ou de adjetivos. Se um evento é "provável", "pouco provável" ou "muito provável", por exemplo.
Qual a mensagem mais importante desse relatório?
O que está muito claro no relatório é que é fundamental reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa na maior intensidade possível e no menor tempo possível. É uma tarefa não só dos governos de cada país individualmente. Precisamos ter um sistema de governança global que permita uma política coerente de redução de emissões por todos os países.
O senhor vê avanços para essa governança?
Artaxo: A governança das mudanças climáticas globais é sem dúvida o maior desafio político, social e econômico que o nosso planeta teve em toda a história. Não é muito simples se estruturar políticas que envolvam todos os países sem exceção e que podem alterar a produtividade econômica de muitos países e regiões. Isso não é tarefa fácil. Vai demorar algumas décadas para que a gente possa equacionar uma política coerente de redução de emissões.
E no Brasil, em termos de políticas públicas, há avanços?
O Brasil tem uma política agressiva de redução de emissões, com corte de 80% em 2020, comparado com 1990. O Brasil está atingindo a sua meta, reduziu o desmatamento e tem a vantagem de ter 50% de sua matriz energética em fontes renováveis. O Brasil tem vantagens estratégicas enormes, basta saber usar.
Mas o Brasil está mudando seu perfil de emissões, não?
Sem dúvida nenhuma, o Brasil está alterando o perfil de emissão ao longo dos últimos anos. Com a dificuldade de explorar o potencial hidrelétrico na Amazônia e com o aumento na demanda, o Brasil vai usar cada vez mais combustíveis fósseis na produção de energia. Mas o Brasil tem um potencial de energia eólica muito forte, potencial de energia solar muito forte, e esses potenciais devem ser explorados o mais rápido possível e com a maior intensidade possível.