Seaspiracy e o jornalismo que incomoda o poder
Sucesso de documentário que expõe sem concessões a indústria da pesca sugere: cresce o incômodo com o capitalismo verde e a mídia suave. Muitos querem conhecer, além dos problemas, suas causas – e as formas de enfrentá-las
Publicado 27/04/2021 às 19:20 - Atualizado 27/04/2021 às 20:17
Por George Monbiot |Tradução: Simone Paz
Quando a BBC fez um filme sobre a crise dos oceanos, ela conseguiu, de algum jeito, evitar dar nome à maior causa dessa destruição ecológica: a indústria pesqueira. A única sequência significativa sobre a pesca no Blue Planet II, de 2017, era uma comovente história sobre como os barcos de arenque noruegueses eram gentis com as orcas. Assim, não se apresentava a pesca industrial como a maior ameaça à vida marinha, e sim como sua salvadora.
Isso é equivalente a fazer um filme sobre o colapso climático sem revelar o papel das empresas de combustíveis fósseis. Ops! Calma, que a BBC também fez isso, em 2006. Seu documentário “The Truth About Climate Change” mencionava as empresas de combustíveis fósseis apenas como parte da solução, porque uma delas vinha fazendo experiências com captura e armazenamento de carbono. Esses filmes não passam de um desabafo sobre um problema mal definido, seguido da sugestão de que deveríamos “fazer algo”, mas sem oferecer nenhuma pista do que poderia ser esse “algo”.
Eles também são sintomas de uma doença que aflige grande parte da mídia, a maior parte do tempo: a aversão a enfrentar o poder. Embora a BBC tenha feito depois alguns filmes melhores, eles ainda tendem a nos alienar dos ataques comerciais maciços que sofremos em nossos sistemas de suporte à vida, e a nos direcionar para as questões que eu chamo de “besteiras do micro-consumo” (MCB), como os canudos de plástico e os cotonetes. Vejo o MCB como uma atividade de deslocamento: um substituto para confrontar o poder econômico. Longe de salvar o planeta, ela nos distrai e despista dos problemas sistêmicos, prejudicando a ação efetiva.
A premissa central do neoliberalismo é poder deslocar o locus da tomada de decisão: das decisões coletivas democráticas para o indivíduo, utilizando o “mercado”. Em vez de usarmos a política para mudar e melhorar o mundo, podemos fazer isso por meio de nossas compras. Se os neoliberais acreditassem pelo menos em metade desse absurdo, eles nos garantiriam o máximo de conhecimento possível, para que pudéssemos exercer uma tomada de decisão eficaz nessa grande democracia do consumo. Em vez disso, a mídia nos mantém num estado de ignorância quase total sobre os impactos de nosso consumo.
Mas uma de nossas bolhas de ignorância acaba de ser furada. Com baixo orçamento, o primeiro filme de Ali Tabrizi e Lucy Tabrizi conseguiu realizar algo em que os gigantes da mídia repetidamente fracassaram: confrontar o poder diretamente. Seu filme Seaspiracy tornou-se um grande sucesso na Netflix em vários países, incluindo o Reino Unido (revelo: contribuí para a pesquisa da obra). Finalmente as pessoas começaram a prestar atenção para o surpreendente fato de que, quando imensas redes são arrastadas sobre o fundo do mar, ou quando se estendem linhas de anzóis com 45 quilômetros de comprimento, ou perseguimos implacavelmente espécies em declínio, estamos interferindo e abalando a vida do oceano.
O filme engana-se em algumas questões. Ele cita um artigo desatualizado sobre a data prevista para o colapso global da pesca. Dois de seus dados sobre capturas acidentais estão incorretos. Ele confunde o carbono armazenado pelas formas de vida com o carbono armazenado na água do mar. Mas o sentido da obra é correto: a pesca industrial, um assunto lamentavelmente negligenciado pela mídia e por grupos conservacionistas, está levando muitas populações de vida selvagem e ecossistemas do planeta ao colapso. Os grandes navios pesqueiros, de nações poderosas, ameaçam privar populações locais de sua subsistência. Muitas “reservas marinhas” são uma farsa total, pois a pesca industrial ainda é permitida dentro delas. Na UE, a intensidade da pesca de arrastão nas chamadas áreas protegidas é maior do que nos locais desprotegidos. “Frutos do mar sustentáveis” muitas vezes não são nada disso. A pesca comercial é a maior causa de morte e declínio de animais marinhos. Também pode ser extremamente cruel com os humanos: escravidão e outras formas graves de exploração do trabalho acontecem aos montes.
De acordo com a última avaliação da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, apenas 6,2% das populações mundiais de peixes marinhos não são “totalmente pescadas”, nem pescadas em excesso, e ainda assim este percentual continua a diminuir. “Totalmente pescados” significa que os peixes estão sendo capturados em seu “máximo rendimento sustentável”, ou seja, no limite para não acabar com o estoque.
Este é um objetivo central na gestão da indústria da pesca. Mas do ponto de vista do ecologista, muitas vezes, ainda significa uma exploração excessiva. Como o trabalho do Professor Callum Roberts demonstra, as populações de peixes e outros animais marinhos eram muito maiores antes do início da pesca industrial, e o estado do fundo do mar, em muitas áreas, era totalmente diferente. Mesmo uma pesca “bem administrada”, com rendimentos máximos, impede a restauração de ecossistemas ricos e abundantes.
No entanto, sei que os detalhes também importam e, embora todos os filmes — assim como todo jornalismo, e toda ciência — cometam erros, devemos nos ater aos fatos. Então, por que os especialistas em indústria pesqueira que hoje reclamam sobre os erros no Seaspiracy não apontaram as deturpações e omissões muito mais graves no Blue Planet II e no Blue Planet Live (a série de 2019, da BBC)?
O Blue Planet Live levou essa “distração”, esse desvio, a um nível totalmente novo. Embora seu foco fosse principalmente o plástico, ele não mencionava a indústria de plásticos. Era como se o plástico, o colapso climático e a pressão pesqueira tivessem se materializado no ar, do nada. Enquanto desviava de interesses poderosos, a maioria das soluções propostas eram pequenos curativos tecnológicos: resgatar focas órfãs, semear corais, remover anzóis da boca de tubarões. Algumas de suas afirmações não só eram erradas, mas hilárias. Por exemplo, afirmava que poderíamos “livrar nossos oceanos do plástico” limpando as praias.
Então, por que esse silêncio todo? Talvez porque alguns cientistas da pesca, como apontou o grande biólogo Ransom Myers, tenham se identificado com a indústria da qual depende seu sustento. Embora pareçam contentes com as distorções ultrajantes que favorecem a a pesca industrial, ficam furiosos com erros muito menores que a desfavorecem.
Me parece que o problema é simbolizado por duas palavras com as quais eu sempre me deparo em artigos científicos e oficiais: “subpescado” e “subexplorado”. Estes são os termos que os cientistas da pesca usam para as populações que não são “totalmente pescadas”. As palavras que as pessoas usam expõem a maneira como pensam — e que palavras poderosas, iluminadoras e horríveis são essas! Elas parecem pertencer a outra época, quando acreditávamos na doutrina do domínio: os humanos têm o dever sagrado de conquistar e explorar a Terra. Eu suspeito que algumas pessoas estejam furiosas porque o Seaspiracy não expõe apenas negligência, mas toda uma visão de mundo.
É hora de olharmos para os oceanos sob outra luz: tratar os peixes não como frutos do mar, mas como animais selvagens; ver suas sociedades não como estoques, mas como populações; e suas redes alimentares marinhas não como pescarias, mas como ecossistemas. É hora de vermos sua existência como uma maravilha da natureza, ao invés de uma oportunidade para a exploração. É hora de redefinirmos nossa relação com o planeta azul.
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