Diante de manifestações preconceituosas e injustas em relação aos médicos cubanos que estão chegando ao Brasil, vejam o texto que segue, com informações que precisamos ter presente para formarmos nossa visão pessoal. E que a leitura sirva também para ir pensando sobre a realidade e sobre as mudanças que deveriam acontecer na formação e na prática dos médicos no Brasil.
O que você precisa saber
sobre médicos cubanos
Escrito por
Hélio Doyle
Segunda, 26 de Agosto de 2013
Profundo conhecedor da realidade de Cuba e membro do núcleo de estudos
cubanos da Universidade de Brasília, o jornalista Hélio Doyle produziu diversas
análises técnicas, e sem ranço ideológico, sobre a importação de 4 mil
profissionais pelo governo brasileiro. Os textos foram originalmente cedidos ao
247, agora reproduzidos pelo Correio da Cidadania, e permitem uma maior
compreensão sobre um tema que tem gerado tanto debate.
O que não se diz sobre os médicos cubanos
A grande imprensa brasileira, que nos últimos anos exacerbou, por
incompetência e ideologia, a superficialidade que sempre a caracterizou, tem
sido coerente ao tratar da vinda de quatro mil médicos cubanos: limita-se a
noticiar o fato e reproduzir as críticas das associações corporativas de
médicos e dos políticos oposicionistas. Mantém-se fiel à superficialidade que é
sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico conservador e de direita.
Não conta, por exemplo, que médicos cubanos já trabalharam no Brasil,
atendendo a comunidades pobres e distantes nos estados de Tocantins, Roraima e
Amapá. Não houve nenhuma reclamação quanto à qualidade desse atendimento e
nenhum problema com o conhecimento restrito da língua portuguesa. Os médicos
cubanos tiveram de deixar o Brasil por pressão do corporativismo médico
brasileiro – liderado por doutores que gostam de trabalhar em clínicas privadas
e nas grandes cidades.
A grande imprensa não conta também que há mais de 30 mil médicos cubanos
trabalhando em 69 países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania,
lidando com pessoas que falam inglês, francês, português e dialetos locais. Só
no Haiti, onde a população fala francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos
cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele país e, como profissionais
com alto nível de educação formal, aprendem rapidamente línguas estrangeiras.
O professor John Kirk, da Universidade Dalhousie, no Canadá, estudou a
participação de equipes de saúde de Cuba em vários países e é dele a frase
seguinte: “A contribuição de Cuba, como ocorre agora no Haiti, é o maior
segredo do mundo. Eles são pouco mencionados, mesmo fazendo muito do trabalho
pesado”. Segredo porque a imprensa internacional – especialmente a
estadunidense – não gosta de falar do assunto.
Kirk contesta o argumento de que os médicos cubanos que atendem as comunidades
pobres em vários países não são eficientes por não dominar as últimas
tecnologias médicas: “A abordagem high-tech para as necessidades de saúde em
Londres e Toronto é irrelevante para milhões de pessoas no Terceiro Mundo que
estão vivendo na pobreza. É fácil ficar de fora e criticar a qualidade, mas se
você está vivendo em algum lugar sem médicos, ficaria feliz quando chegasse
algum”.
O problema dos que contestam a vinda de médicos estrangeiros e, em especial
dos cubanos, é que as pessoas que passam anos ou toda a vida sem ver um médico
ficarão muito felizes quando receberem a atenção que os corporativistas do
Brasil lhes negam e tentam impedir.
Socialismo e Guerra Fria
Duas informações referentes à vinda de médicos cubanos para o Brasil e que
podem ser úteis aos que querem ir além do que diz a grande imprensa:
- Cuba é um país socialista e por isso, gostemos ou não, as coisas não
funcionam exatamente como em um país capitalista. Como é um país socialista, há
a preocupação de manter baixos os índices de desigualdade econômica e social.
Por isso nenhuma empresa ou governo estrangeiro contrata trabalhadores cubanos
diretamente, em Cuba ou no exterior (nesse caso, quando a contratação é
resultado de um acordo entre Estados). Todos são contratados por empresas estatais
que recebem do contratante estrangeiro e pagam os salários aos trabalhadores,
sem grande discrepância em relação ao que recebem os que trabalham em empresas
ou organismos cubanos. Os médicos que trabalham no exterior recebem mais do que
os que trabalham em Cuba.
Mas, algo como, nem muito que seja um desincentivo aos que
ficam, nem tão pouco que não incentive os que saem.
- O governo dos Estados Unidos tem um programa especial para atrair médicos
cubanos que trabalham no exterior. Eles são procurados por funcionários
estadunidenses e lhes são oferecidas inúmeras vantagens para “desertar”, como
visto de entrada, passagem gratuita, permissão de trabalho e dispensa de
formalidades para exercer a atividade. Os que atuam na América Latina são os
mais procurados e uma condição para serem aceitos no programa é que critiquem o
sistema político cubano e digam que os médicos no exterior são oprimidos e
mantidos quase como escravos. Os que aceitam as ofertas dos Estados Unidos, os
que emigram para outros países ou ficam no país que os recebe depois de
terminado o contrato representam cerca de 3% dos efetivos. No Brasil,
mantida essa média, pode-se esperar que até 120 dos quatro mil médicos cubanos
“desertem”.
Um sistema irreal
A citação a seguir é do New England Journal of Medicine: “O sistema de
saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de
família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba
dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o
nosso (dos EUA) não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de
médicos por habitante do que os EUA”.
Menções elogiosas ao sistema de saúde cubano e a seus profissionais são
frequentes em publicações especializadas e ditas por autoridades médicas e
organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, a Organização
Panamericana de Saúde e o Unicef. Mas mesmo assim, querendo negar a realidade,
médicos e políticos brasileiros insistem em negar o óbvio, chegando ao absurdo
de dizer que nossa população está correndo riscos ao ser atendida pelos
cubanos.
Para começar, os indicadores de saúde em Cuba são os melhores da América
Latina e estão à frente dos de muitos países desenvolvidos. A mortalidade
infantil, por exemplo (4,8 por mil), é menor do que a dos Estados Unidos.
Aliás, para os que gostam de dizer que Cuba estava melhor antes da revolução de
1959, naquela época era de 60 por mil. A expectativa de vida dos cubanos é
também elevada: 78,8 anos.
Outro, aliás, quanto aos saudosistas: em 1959, Cuba tinha seis mil médicos,
sendo que três mil correram para os Estados Unidos quando viram que não haveria
mais lugar para o sistema privado de saúde e que os doutores elitistas e da
elite perderiam seus privilégios. Hoje tem 78 mil médicos, um para cada 150
habitantes, uma das melhores médias do mundo. Isso permite a Cuba manter mais
de 30 mil médicos no exterior. Desde 1962, médicos cubanos já estiveram
trabalhando em 102 países.
Em 2012 formaram-se em Cuba 5.315 médicos cubanos em 25 faculdades públicas
e 5.694 estrangeiros, que estudam de graça na Escola Latino-americana de
Medicina (Elam). A Elam recebe estudantes de 116 países, inclusive dos Estados
Unidos, e já formou 24 mil estrangeiros.
Os médicos cubanos se formam após seis anos de graduação, incluindo um de
internato, e mais três ou quatro anos de especialização. Os generalistas, que
atendem no sistema Médico da Família (um médico e um enfermeiro para 150 a 200 famílias, e que
moram na comunidade que atendem), são preparados para atuar em clínica geral,
pediatria, ginecologia-obstetrícia e fazer pequenas cirurgias.
Dos quatro mil médicos que vêm para o Brasil, todos têm especialização em
medicina de família, 42% já trabalharam em pelo menos dois países e 84% têm
mais de 16 anos de atividade. Grande parte já atuou em países de língua
portuguesa, na África e em
Timor-Leste. Foi em Timor, a propósito, que ocorreu o fato
seguinte: o embaixador estadunidense exigiu do então presidente Xanana Gusmão
que expulsasse os médicos cubanos. Xanana perguntou quantos médicos dos Estados
Unidos havia no Timor-Leste e quantos o país mandaria para substituir os mais
de duzentos cubanos que estavam lá. Diante da resposta, de que havia apenas um,
que atendia os diplomatas norte-americanos, e que não viria mais nenhum,
Xanana, simplesmente, disse que os cubanos ficariam. E estão lá até hoje.
Falando português.
Os limites do corporativismo
1 – Sindicatos de trabalhadores existem para defender os interesses das
categorias profissionais que representam. São corporativistas por definição.
2 – É natural que esses interesses conflitem com os de seus empregadores,
especialmente em questões ligadas à remuneração e condições de trabalho.
3 – Muitas vezes os interesses de uma categoria batem de frente com
interesses de outras categorias, e aí cada sindicato defende seus
representados, o que também é natural.
4 – Outras vezes os interesses de uma categoria colidem com interesses do
país e da sociedade. Essa é uma questão complicada: quem tem legitimidade para
definir os interesses nacionais é a população, que só é consultada quando elege
seus governantes e representantes. E esses governantes e representantes têm,
muitas vezes, sua legitimidade contestada.
A contradição entre interesses corporativos e interesses nacionais e da
sociedade, assim, só pode ser resolvida pelos que têm legitimidade para
expressar esses interesses nacionais e da sociedade em seu conjunto.
Nos últimos dias, tivemos três bons exemplos de como os interesses
corporativos colidem com os da sociedade. São três causas que podem interessar
às categorias profissionais, mas violam a legislação e ferem os direitos
humanos e sociais:
- O sindicato dos servidores no Legislativo defendeu que funcionários da
Câmara e do Senado recebam remunerações que superam o teto salarial que deve
vigorar para todos.
- O sindicato dos aeroviários defendeu a tripulação que criou absurdos e
desnecessários constrangimentos a uma criança de três anos e a sua família, por
causa de uma doença não infecciosa.
- Os sindicatos de médicos são contra o trabalho de médicos estrangeiros no
Brasil, mesmo não havendo médicos brasileiros interessados no trabalho que eles
vão fazer.
O corporativismo é inevitável, e os interesses corporativos devem ser
discutidos e considerados. Não podem é prevalecer quando contrariam interesses
e direitos da sociedade: o teto salarial dos servidores tem de ser respeitado,
ninguém pode ser submetido a constrangimentos por causa de uma doença e as
pessoas têm o direito de receber assistência médica, seja de um brasileiro ou
de um estrangeiro.
Sistema cubano dá “de lavada”
As frases a seguir são de um médico cubano radicado no Brasil desde 2000.
Insuspeito, pois abandonou Cuba. Formou-se lá e se especializou em
epidemiologia e administração da saúde. Trabalhou por dois anos em Angola e
veio para Santa Catarina em um acordo da prefeitura de Irati com o governo de
Cuba.
Dois anos depois resolveu ficar no Brasil, onde vive com a mulher e quatro
filhos. Critica o sistema de pagamento aos médicos, dizendo que ficava com 50% do
que era pago pela prefeitura. Mesmo tendo “desertado”, não entra na onda dos
médicos brasileiros e dos oposicionistas de direita que atacam a vinda dos
cubanos.
O que o médico cubano Alejandro Santiago Benítez Marín, 51 anos, disse ao
portal G1:
“Em dois meses, eu já entendia perfeitamente tudo (diferenças culturais,
língua). Fazer medicina é igual em todo o lugar, só muda o endereço”.
“Eu não sou contra que eles venham, não. Os médicos cubanos são muito bons,
nossa medicina é a melhor do mundo. Só não concordo com a forma como o governo
quer pagar, repassando o dinheiro para Cuba e Cuba vai decidir a quantia que
vai repassar. Isso não tem cabimento”.
“Há médicos cubanos fazendo um excelente trabalho no Norte e Nordeste. O
Conselho Federal de Medicina tem nos ofendido sem necessidade desde o início,
chamando-nos de curandeiros, feiticeiros. Eu sou incapaz de ofender um médico
brasileiro, mesmo conhecendo médicos brasileiros que cometem erros, a imprensa
publica sempre. Tem médico ruim e bom tanto no Brasil quanto em Cuba. Não temos culpa do
que está acontecendo no Brasil e que os médicos de fora têm que vir”.
“Em Cuba é bem mais fácil o atendimento, não tem esta fila que há hoje no
SUS, em que há a demora de três meses para a realização de exames simples, como
ultrassonografia ou ressonância. Em Cuba este exame é feito no mesmo dia ou na
mesma semana. Esta demora faz o diagnóstico médico ter que esperar”.
“O sistema cubano dá ‘de lavada’ no SUS, tanto no atendimento normal quanto
de emergência. A especialização nossa é muito boa, tanto que Cuba exporta
médicos para mais de 70 países”.
Helio Doyle é jornalista.
Blog
do Hélio Doyle
Leia também:
Defender
os médicos cubanos; denunciar as políticas de saúde no Brasil! (uma
contribuição ao debate)