ESSA POSSIBILIDADE NOS INDICA QUE PRECISAMOS ESTAR MUITO ATENTOS À REALIDADE, SENDO, AO MESMO TEMPO, REALISTAS E ABERTOS AO NOVO, AO POSSÍVEL, PRESENTE EM PROCESSOS QUE ESTÃO ACONTECENDO. MESMO NÃO SENDO UM PROGRAMA DEFINIDO, É UM CONVITE À ESPERANÇA.
Outras palavras – 4 DE FEVEREIRO DE 2015
Conhecido por seus
estudos sobre “modernidade líquida”, sociólogo polonês afirma: interregno que
vivemos é transitório; sociedade já procura novos arranjos
No ContiOutra
O sociólogo polônes Zygmunt
Bauman, em entrevista à MGMagazine traduzida
para o português e publicada pelo site Fronteiras do
Pensamento, fala, aos 89 anos, sobre o mundo atual e como entende os
efeitos da modernidade sobre as pessoas. “As consequências são a austeridade, o
aumento do desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de muitos
jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não são bem-vindos,
que não podem adicionar nada ao bem-estar da sociedade, porque são uma carga”,
diz.
O senhor imaginou
que poderia se tornar uma estrela midiática em nível global?
Certamente não. Mas
não sou uma estrela. Quando eu morrer, o que provavelmente acontecerá logo, com
certeza morrerei como uma pessoa insatisfeita, que não alcançou seu objetivo.
Por quê?
Porque tratei de
transmitir certas ideias durante toda a minha vida, que tem sido muito longa. E
quando olho pra trás, existe toda uma montanha cinza de esperanças e
expectativas que morreram ao nascer ou faleceram muito jovens. Não tenho nada
para me gabar. Tento juntar palavras para dizer às pessoas quais são os
problemas, de onde eles vêm, onde se escondem, como encontrar ajuda para
resolvê-los se for possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas,
porque a nossa realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa
vida, nossas lembranças, são palavras. Mas, apesar de ter vivido tantos anos,
não consegui resolver o problema de transformar as palavras em carne. Hoje,
existe uma enorme quantidade de pessoas que querem a transformação, que têm
ideias de como tornar o mundo melhor não somente para eles, mas também para os
outros, mais hospitaleiro. Mas na sociedade contemporânea, na qual somos mais
livres do que nunca, ao mesmo tempo somos também mais impotentes do que em
qualquer outro momento da história. Todos sentimos a desagradável experiência
de ser incapazes de mudar qualquer coisa. Somos um conjunto de indivíduos com
boas intenções, mas entre as intenções e os projetos e a realidade tem muita
distância. Todos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento pela
falta total de agentes, de instituições coletivas capazes de atuar
efetivamente.
O que mudou?
Quando eu era
jovem, todos os meus contemporâneos, de esquerda, direita ou centro, coincidiam
em um ponto: se chegamos ao governo ou fazemos uma revolução, sabemos o que
fazer e como fazer através do poder do Estado. Agora, ninguém acredita que o
governo pode fazer algo. Os governos são vistos como instituições que nunca
cumprem suas promessas. É um grave problema. Porque significa que, embora
saibamos como criar uma sociedade mais humana – e no momento abandonamos a esperança
de poder projetá-la–, a grande pergunta, para a qual não tenho resposta, é quem
vai transformá-la em realidade.
Viver em um mundo
líquido, o que isso significa exatamente?
Modernidade
significa modernização obsessiva, viciante, compulsiva. Modernização significa
não aceitar as coisas como elas são, e sim transformá-las em algo que
consideramos que é melhor. Modernizamos tudo. Você pega as suas regulações,
seus objetos, e trata de modernizá-los. Não duram muito tempo. Isso é o mundo
líquido. Nada tem uma forma definida que dure muito tempo. Deve-se dizer que
fundir o que é sólido, transformá-lo em líquido e moldá-lo de novo era uma
preocupação da modernidade desde o princípio, mas o objetivo era outro.
Arbitrariamente, mas acredito que de forma útil, situo o início da modernidade
no ano de 1.775 no terremoto de Lisboa, seguido de um incêndio que destruiu o
que restava e em seguida um tsunami que levou consigo tudo
para o mar.
Por que nesse
terremoto?
Foi uma catástrofe,
não só material, mas também intelectual. As pessoas pensavam, até então, que
Deus tinha criado tudo, que tinha criado a natureza e disposto leis. Mas, de
repente, veem que a natureza é cega, indiferente, hostil com os humanos. Não se
pode confiar nela. O mundo tem que estar sob direção humana. Substituir o que
existe pelo que se pode projetar. Assim, Rousseau, Voltaire ou Holbach viram
que o antigo regime não funcionava e decidiram que tinham de fundi-lo e
refazê-lo de novo no molde da racionalidade. A diferença em relação ao mundo de
hoje é que não o faziam porque não gostavam do que era sólido, e sim, pelo
contrário, porque acreditavam que o regime que existia não era suficientemente
sólido. Queriam construir algo resistente para sempre que substituísse o
oxidado. Era a época da modernidade sólida. A época das grandes fábricas
empregando milhares de trabalhadores em enormes edifícios de tijolos,
fortalezas que iam durar tanto quanto as catedrais góticas. No entanto, a
história decidiu um caminho muito diferente.
Tornou-se líquida?
Sim. Hoje a maior
preocupação da nossa vida social e individual é como prevenir que as coisas
sejam fixas, que sejam tão sólidas que não possam mudar o futuro. Não
acreditamos que existam soluções definitivas, e não é só isso: não gostamos
delas. Por exemplo: a crise que muitos homens têm ao fazer 40 anos. Ficam
paralisados pelo medo de que as coisas já não sejam como antes. E o que mais
lhes dá medo é ter uma identidade aferrada a eles. Uma imagem que não se pode
tirar. Estamos acostumados com um tempo veloz, certos de que as coisas não vão
durar muito, de que vão aparecer novas oportunidades que vão desvalorizar as
existentes. E isso acontece em todos os aspectos da vida. Há duas semanas, as
pessoas faziam filas durante a noite pelo iPhone 5 e agora mesmo estão fazendo
pelo 6. Posso garantir que em dois anos aparecerá o 7 e milhões de iPhones 6
serão jogados no lixo. E isso dos objetos materiais funciona da mesma forma com
as relações pessoais e com a própria relação que temos conosco mesmos, como nos
avaliamos, que imagem temos de nossa pessoa, que ambição permitimos que nos
guie. Tudo muda de um momento a outro, somos conscientes de que somos
transformáveis e, portanto, temos medo de fixar qualquer coisa para sempre.
Provavelmente, seu governo, como o do Reino Unido, convoca seus cidadãos a
serem flexíveis.
Sim, convoca.
O que significa ser
flexível? Significa que você não está comprometido com nada para sempre, mas
sim pronto para mudar a sintonia, a mente, em qualquer momento no qual seja
requisitado. Isso cria uma situação líquida. Como um líquido em um copo, no
qual o mais leve empurrão muda a forma da água. E isso está em todos os
lugares.
Quais o senhor
acredita que são os efeitos desta nova situação nas pessoas?
Há alguns anos, os
jovens iam trabalhar para a Ford ou a Fiat como aprendizes e podiam acabar
ficando ali pelos próximos 40 anos se não se embebedavam ou morriam antes.
Hoje, os jovens que não perderam a ambição depois de ter amargas experiências
de trabalho sonham em ir ao Vale do Silício. É a meca das ambições de todo
homem jovem, a ponta da lança da inovação, do progresso. Você sabe qual é a
média de um trabalhador de uma empresa do Vale do Silício? Oito meses. O
sociólogo Richard Sennet calculou, há uns anos, que o trabalhador médio mudaria
de empresa onze vezes durante a sua vida. Hoje, essa quantidade é inclusive
maior. As gerações que emergem das universidades em grandes quantidades estão
ainda buscando emprego. E se encontram, não tem nada a ver com suas habilidades
e expectativas. Estão empregados em trabalhos precários, temporários, sem
segurança, sem carreira. Então, a principal maneira pela qual nos conectamos
com o mundo, que é a nossa profissão, nosso trabalho, é fluida, líquida.
Estamos conectados apenas pela água. E não se pode estar conectado por isso,
ocorrem inundações, fugas…
Por isso você diz
que passamos do proletariado ao precariado?
Há não muito tempo
o precariado era a condição de vagabundos, sem-teto, mendigos. Agora, marca a
natureza da vida de pessoas que há 50 anos estavam bem instaladas. Pessoas de
classe média. Com exceção do 1% que está acima de tudo, ninguém pode se sentir seguro
hoje. Todos podem perder as conquistas alcançadas durante sua vida sem aviso
prévio. Não faz tantos anos, seis, o crédito e os bancos entraram em colapso e
as pessoas começaram a ser despejadas de suas casas e seus trabalhos. Antes
disso, os otimistas falavam de orgia de consumo, as pessoas pensavam que podiam
gastar dinheiro que não tinham porque as coisas seriam cada vez melhores, assim
como seus rendimentos, mas tudo isso desabou. As consequências são hoje os
cortes, a austeridade, o alto nível de desemprego e, sobretudo, a devastação
emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e
sentem que não são bem-vindos, que não podem acrescentar nada ao bem-estar da
sociedade, que são um peso.
Aumenta o que o
senhor chama de vidas desperdiçadas.
Cada vez há mais.
Mas é que, além disso, as pessoas que têm emprego experimentam a forte sensação
de que existem altas possibilidades de que também virem resíduos. E, mesmo
conhecendo a ameaça, são incapazes de preveni-la. É uma combinação de
ignorância e impotência. Não sabem o que vai acontecer, mas nem mesmo sabendo
seriam capazes de preveni-lo. Ser o resto, um resíduo, é uma condição ainda de
uma minoria. No entanto, impacta não somente os empobrecidos, mas também
setores cada vez maiores das classes médias, que são a base de nossas
sociedades democráticas modernas. Estão atribuladas.
As classes médias vão desaparecer?
As classes médias vão desaparecer?
Estamos em um
interregno. A palavra foi usada pela primeira vez na história da Roma Antiga. O
primeiro rei lendário foi Rômulo, que reinou por 38 anos. Essa era a
expectativa de vida das pessoas, então, quando ele morreu, pouca gente lembrava
do mundo sem ele. As pessoas estavam confusas. O que fazer? Rômulo lhes dizia o
que fazer. E se houvesse outro, ninguém sabia o que ele lhes pediria. Gramsci
atualizou a ideia de interregno para definir uma situação na qual as antigas
formas de fazer as coisas já não funcionam, mas as formas de resolver os
problemas de uma nova maneira efetiva ainda não existem ou não as conhecemos. E
nós estamos assim. Os governos vivem presos entre duas pressões impossíveis de
reconciliar: a do eleitorado e a dos mercados. Eles têm medo de que, se não
agem como as bolsas e o capital móvel querem, as bolsas quebrarão e o dinheiro
irá a outro país. Não se trata apenas de que possa haver corrupção e estupidez
entre os nossos políticos, mas sim que essas situações os deixam impotentes. E,
por isso, as pessoas buscam desesperadamente novas formas de fazer política.
Como os indignados?
É um bom exemplo.
Se o governo não cumpre, vamos à praça pública. Mas é uma boa tentativa que não
traz muito resultado. Estamos tentando. Tentando criar alternativas praticáveis
para atender às necessidades coletivas. O interregno por definição é
transitório. Eu acredito que não viverei para ver o novo arranjo, mas sua vida
estará repleta de buscas por essas alternativas. Porque este período de
suspensão, no qual muitas coisas vão mal e temos poucas ideias para
resolvê-las, não é eternamente concebível.
Será que já não
estamos líquidos demais?
As mudanças vêm e vão. Muita gente
está hoje convencida de que já existem alternativas, mas que são invisíveis
porque ainda estão muito dispersas. Jeremy Rifkin fala da utilidade pública
colaborativa. Benjamin Barber publicou o livro Se os prefeitos
governassem o mundo, no qual diz que os estados estão acabados, que foram
uma boa ferramenta para a separação, a independência e a autonomia, mas que em
nossos tempos de interdependência devem ser substituídos. Que as instituições
locais são capazes de enfrentar os problemas muito melhor, têm a dimensão
adequada para ver e experimentar sua coletividade como uma totalidade. Podem
levar adiante lutas muito mais efetivas para melhorar as escolas, a saúde, o
emprego, a paisagem. Pede um tipo de Parlamento mundial de prefeitos das
grandes cidades. Um Parlamento onde as pessoas falem e compartilhem
experiências que são altamente parecidas. E as mudanças podem já estar aqui.
Minha tese, quando eu estudava, foi sobre os movimentos operários na Grã
Bretanha. Pesquisei nos arquivos do século XIX e nos jornais. Para minha
surpresa, descobri que até 1875 não se mencionava que estava acontecendo uma
revolução industrial, havia apenas informações dispersas. Que alguém tinha
construído uma fábrica, que o teto de uma fábrica desabou… Para nós, é óbvio
que estavam no coração de uma revolução, para eles, não. É possível que, quando
você for entrevistar alguém dentro de 20 anos, essa pessoa lhe diga: “Quando
você entrevistou o Bauman em Leeds, vocês estavam no meio de uma revolução e o
senhor perguntava a ele sobre mudanças”.
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