IHU - Quarta, 21 de maio de 2014
Surpresa: uma
tecnologia contra o capitalismo?
"Rifkin não deixa de mencionar, é claro, o imenso
poder hoje em mãos dos gigantes que dominam a própria revolução digital.",
escreve Ricardo Abramovay, professor titular da FEA e do
IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor de Muito Além da Economia
Verde, ed. Planeta Sustentável, em resenha publicada no sítio Outras Palavras, 15-05-2014.
Eis
a resenha.
Multiplicam-se ferramentas que
libertam seres humanos das empresas, ao permitir que produzam em colaboração
direta. Quais são? Como sistema tenta sabotá-las?
O livro de Jeremy Rifkin (The Zero Marginal Cost Society- The Internet Things, the
Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism) é uma
ambiciosa tentativa de formular nova narrativa para a utopia que desabou junto
com o muro de Berlim, em 1989. Sua profecia mais ousada é que o capitalismo
entrará em irreversível declínio ao longo das próximas três décadas. Ele não
será substituído por aquilo que costuma ser considerado seu oposto, ou seja, a
propriedade estatal dos grandes meios de produção e troca, orientada pelo
planejamento central.
Seu declínio não passará tampouco por mãos hostis, por processos de
expropriação ou por eventos épicos como a tomada do Palácio de Inverno. Na verdade,
o eclipse do capitalismo já está desenhado e decorrerá do avanço simultâneo da
00 e da economia colaborativa.
Não se trata de fé ingênua no poder da técnica: a ampliação das
oportunidades de oferecer bens e serviços a partir da cooperação direta entre
as pessoas (e cada vez menos, do mercado) depende do fortalecimento da sociedade civil e esbarra na gigantesca força dos
interesses que procuram sempre limitar o alcance dos bens comuns (os commons,
em inglês). Mas, diferentemente de qualquer época precedente, a produção e o uso de bens comuns conta agora com dispositivos cada
vez mais poderosos. É nessa unidade entre a cooperação social e as mídias
digitais que está a base para uma sociedade moderna, inovadora, colaborativa e
descentralizada, funcionamento não se apoia nem nos mercados, nem na busca
individual do lucro.
Jeremy Rifkin é professor de uma das mais
prestigiosas escolas de gestão dos Estados Unidos, a Wharton. Além disso, é consultor de vários governos europeus e empresas globais. Como tantos
outros intelectuais americanos, adotou postura crítica com relação ao papel das
finanças na crise de 2008, apoiando o Occupy Wall Street. O mais intrigante neste seu
último trabalho está no título: custo marginal zero é uma espécie de quadratura
do círculo para a sabedoria econômica convencional. De fato, as primeiras
páginas dos manuais ensinam que a natureza econômica dos bens e dos serviços
deriva de sua escassez. É por serem escassos que os produtos são alocados por
meio dos preços. A abundância generalizada (como bem o observaram, mesmo que
sob enfoques diferentes, Marx, Stuart Mill e Keynes) conduziria a uma organização social com mecanismos
totalmente diferentes dos que marcam a civilização atual.
A era digital está abrindo caminho a uma economia da
abundância. Isso não quer dizer, claro, que produzir matérias-primas minerais e
agrícolas não custe nada, que os serviços ecossistêmicos sejam
ilimitados ou que se tenha abolido a lei da entropia. Mas é cada vez maior o
leque de bens e serviços da economia da abundância.
Aquilo que hoje se encontra gratuitamente no YouTube e na Wikipedia só
podia ser oferecido, duas décadas atrás, por uma típica economia da escassez: o
consumidor era obrigado a comprar um disco, pagar pela leitura do jornal ou
adquirir uma enciclopédia para obter utilidades hoje disponíveis de graça. A
própria educação é e será cada vez mais apoiada em mídiasdigitais, como já mostram os seis milhões de
estudantes, de todo o mundo, inscritos em cursos abertos, on-line, das melhores
universidades americanas.
A grande novidade do século XXI é que essa revolução virtual já atinge a energia e o mundo
material. Passou dos bits aos átomos. E aqui reside o extraordinário potencial transformador da internet das
coisas. Ela é um tripé, formado pela unidade entre a internet
das comunicações, a internet da energia e
a internet da logística.
No campo da energia, a grande novidade não está apenas no caráter
exponencial do crescimento das renováveis – sobretudo, da solar, cuja
capacidade instalada vem dobrando anualmente nos últimos 20 anos. O mais
importante tampouco é o avanço das eólicas, cujas turbinas são hoje mil vezes mais produtivas
que em 1990. O fundamental é que esses avanços são acompanhados por uma radical
descentralização: na Alemanha, 70% da energia renovável se originam em dispositivos
instalados nas residências, nas oficinas ou nas fazendas. Em matéria de
energia, os alemães serão não só, cada vez mais, consumidores, mas produtores
de renováveis, ou, como diz Rifkin, “prossumidores”.
Tanto mais que os próprios bens de consumo (dos eletrodomésticos aos
automóveis) serão também dotados do poder de comunicar-se de forma inteligente,
consumindo energias nos momentos de menor demanda e, muitas vezes, transmitindo
energia para a rede.
O tripé da economia da abundância se completa com dispositivos como a
impressora em três dimensões e as máquinas de corte a laser que permitem
realizar numa escala local, individual, customizada e com imensa eficiência,
aquilo que, até aqui, só era concebível como resultado da grande indústria. Se
o sucedâneo da manufatura é a grande indústria, esta será substituída pelo que Rifkin batizou de “microinfofatura”. É um conjunto
de técnicas e oportunidades que abrem caminho não só a uma extraordinária
economia de recursos, mas a mudanças fundamentais nas bases sociais da oferta
de bens e serviços.
Rifkin chega a dizer
que a produção de massas dará lugar à produção pelas massas, numa espécie de
recuperação dos ideais ghandianos de
autoprodução e independência, mas sob condições técnicas que permitem competir
com o que, até aqui, só era possível em virtude da grande indústria e da
gigantesca concentração de poder que lhe é correlativa. Os prossumidores serão
protagonistas decisivos não só na oferta de informação e de energia, mas também
de bens materiais. É o que forma a infraestrutura de uma sociedade orientada
pela produção e pelo uso de bens comuns.
Rifkin não deixa de
mencionar, é claro, o imenso poder hoje em mãos dos gigantes que dominam a
própria revoluçãodigital. Mas a cultura do acesso aberto a
inovações e a velocidade do avanço da tríade em que se apoia a internet das coisas abrem vias tão novas e
promissoras para a cooperação social direta e para a valorização dos bens
comuns que tornam persuasiva a ideia de que o capitalismo possa estar a caminho de seu eclipse.
Resenha de The Zero Marginal Cost Society- The Internet
Things, the Collaborative Commons, and the Eclipse of Capitalism [“A
Sociedade de Custo Marginal Zero: a Internet das coisas. Os Commons
Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo” , de Jeremy Rifkin. Palgrave MacMillan. 368 págs., US$ 20,97
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