IHU - Quinta, 22 de maio de 2014
A agricultura
camponesa e ecológica pode alimentar o mundo?
Para a jornalista Esther Vivas, ativista social e
política, “a agricultura camponesa e ecológica não só pode alimentar o mundo,
como também é a única capaz de fazer isso. Não se trata de um retorno romântico
ao passado, nem de uma ideia bucólica do campo, mas, sim, de fazer confluir os
métodos campesinos de ontem com os saberes do amanhã e de democratizar
radicalmente o sistema agroalimentar”. O artigo é publicado por Publico.es, 20-05-2014. A tradução é doCepat.
Eis
o artigo.
Calcula-se que a população mundial, em 2050, chegará aos 9,6 bilhões de
habitantes, segundo um relatório das Nações Unidas. O que
significa 2,4 bilhões a mais de bocas para alimentar. Diante destes números,
existe um discurso oficial que afirma que para dar de comer para tantas pessoas
é imprescindível produzir mais. No entanto, é necessário nos perguntarmos:
Hoje, falta comida? Cultiva-se o bastante para toda a humanidade?
Atualmente, no mundo, “são produzidos alimentos suficientes para dar de
comer para até 12 bilhões de pessoas, segundo dados da FAO”, afirmava Jean Ziegler, relator especial
das Nações Unidas para o direito à alimentação, entre os
anos 2000 e 2008. E recordemos que o planeta é habitado por 7 bilhões. Sem
contar que todo dia é jogada 1,3 bilhão de tonelada de comida, em escala
mundial, um terço do total que se produz, conforme um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Segundo estes dados, comida não falta.
Os números demonstram que o problema da fome não é por causa da escassez
de alimentos, apesar de alguns se empenharem em afirmar totalmente o contrário.
O próprio Jean Ziegler dizia: “As causas
da fome são provocadas pelo homem. Trata-se de um problema de acesso, não de
superpopulação”. Em definitivo, é uma questão de falta de democracia nas
políticas agrícolas e alimentar. De fato, na atualidade, estima-se que quase
uma em cada oito pessoas no mundo passa fome, de acordo com os dados da FAO. A aberração da fome atual é que ocorre em um
planeta da abundância de comida.
Então, por que há fome? Por que
muitas pessoas não podem pagar o preço cada dia mais caro dos alimentos, seja
aqui ou em países do Sul. Os alimentos se tornaram uma mercadoria e se você não
pode pagar por ela, preferem jogar a dar para comer. Do mesmo modo, os cereais
não são produzidos apenas para alimentar as pessoas, mas também os carros, como
os agrocombustíveis, e os animais, criação que necessita de muito mais energia
e de recursos naturais do que se, com esses cereais, a pessoas forem
alimentadas diretamente. Produz-se comida, mas uma grande quantidade dela não
vai para o nosso estômago. O sistema de produção, distribuição e consumo de
alimentos está organizado unicamente para dar dinheiro para aquelas empresas do
agronegócio, que monopolizam do início ao fim a cadeia agroalimentar. Eis,
aqui, a causa da fome.
Por conseguinte, por que alguns
continuam insistindo em que é preciso produzir mais? Por que nos dizem que é
preciso uma agricultura industrial, intensiva e transgênica que nos permita
alimentar o conjunto da população? Querem nos fazer acreditar que as causas da
fome serão a solução, mas isto é falso. Mais agricultura industrial, mais agricultura
transgênica, como já se demonstrou, significam mais fome. Existe muita coisa em
jogo, quando falamos de comida. As grandes empresas do setor sabem muito bem
disso. Daí que o discurso hegemônico, dominante, diz-nos que elas têm a solução
para a fome mundial, quando na realidade são aquelas, com suas políticas, que a
provocam.
Outro
paradigma agroalimentar
Diante do que vimos, o que podemos
fazer? Quais alternativas há? Se todos nós queremos comer e comer bem, é
necessário apostar por outro modelo de alimentação e agricultura. Antes,
afirmávamos que agora há comida suficiente para todos. Isto é assim, com uma
dieta diferente, com muito menos consumo de carne do que a dieta ocidental
atual.
Nossa “adição” à carne faz com que
precisemos de muito mais água, cereais e energia para produzir comida, para
engordar o gado, do que se nossa dieta fosse mais vegetariana. Calcula-se,
segundo o Atlas da Carne, que 1/3 das terras de cultivo e 40% da produção de
cereais no mundo são destinadas para alimentá-los. Tornar compatível a vida
humana com os limites e recursos finitos do planeta terra também passa pelo
questionamento do que comemos.
Além disso, outro tema se apresenta,
caso se proponha prescindir de uma produção de alimentos industrial, intensiva,
transgênica, que alternativa temos? A agricultura camponesa e ecológica pode
alimentar o mundo? Cada vez são mais as vozes que dizem “sim”.
Uma das mais reconhecidas é a de Olivier de Schutter,
relator especial das Nações Unidas para o direito à alimentação, entre os anos 2008 e
2014, que afirmava em seu relatório, “A agroecologia e o direito à
alimentação”, apresentado em março de 2011, que “os pequenos agricultores
poderiam duplicar a produção de alimentos em uma década, caso utilizassem
métodos produtivos ecológicos” e acrescenta: “faz-se imperioso adotar a
agroecologia para colocar fim à crise alimentar e ajudar a enfrentar os
desafios relacionados com a pobreza e a mudança climática”.
Segundo De Schutter, a agricultura
camponesa e ecológica é mais produtiva e eficiente e garante melhor a segurança
alimentar das pessoas do que a agricultura industrial:
“A evidência científica demonstra que
a agroecologia supera o uso dos fertilizantes químicos no fomento da produção
de alimentos, sobretudo nos entornos desfavoráveis onde vivem os mais pobres”.
O relatório “A agroecologia e o direito à alimentação”, a partir da
sistematização de dados de vários estudos de campo, deixava claro: “Em diversas
regiões, desenvolveram-se e foi provado com excelentes resultados técnicas muito
variadas, baseadas na perspectiva agroecológica. (...) Tais técnicas, que
conservam recursos e utilizam poucos insumos externos, tem um potencial
comprovado para melhorar significativamente os rendimentos”.
Um dos principais estudos, dirigido por Jules Pretty,
e citado neste relatório da ONU, analisava o
impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em 286 projetos de 57
países pobres, em um total de 37 milhões de hectares (3% da superfície
cultivada em países em desenvolvimento), e suas conclusões não deixam dúvidas:
a produtividade destas terras, graças à agroecologia, aumentou em 79% e a
produção média de alimentos cresceu em 1,7 toneladas anuais (até 73%).
Posteriormente, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio
e Desenvolvimento e o Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente (PNUMA) tomaram de
novo estes dados para analisar o impacto da agricultura ecológica e camponesa,
especificamente nos países africanos. Os resultados ainda foram melhores: o
aumento médio das colheitas nos projetos na África foi de 116% e na África
Oriental de 128%. Outros estudos científicos, citados no relatório “A agroecologia e o direito à alimentação”, chegavam às
mesmas conclusões.
Além disso, a agricultura ecológica e camponesa não apenas é altamente produtiva,
inclusive mais do que a agricultura industrial, especialmente nos países
empobrecidos, mas, como afirmavam os estudos anteriormente citados, também
cuida dos ecossistemas, permite “conter e inverter a tendência na perda de
espécies e a erosão genética” e aumenta a resiliência à mudança climática. Como também dá
maior autonomia ao campesinato. “Ao melhorar a fertilidade da produção
agrícola, a agroecologia reduz a dependência dos agricultores dos insumos
externos e das subvenções estatais”.
Mais
apoios
Outro importante relatório que aponta nesta direção são as conclusões a
que chegou um dos principais processos intergovernamentais realizados para
avaliar a eficácia das políticas agrícolas: a Avaliação Internacional do
papel do Conhecimento, da Ciência e da Tecnologia em Desenvolvimento Agrícola (IAASTD, em suas siglas em inglês). Uma iniciativa
estimulada, em um primeiro momento, pelo Banco Mundial e
a FAO, e que contou com o seu patrocínio e de outras
organizações internacionais como o Fundo para o Meio Ambiente
Mundial (FMAM), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o PNUMA, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O objetivo desse processo era avaliar o papel do conhecimento, a ciência
e a tecnologia agrícola na redução da fome e da pobreza no mundo, a melhora dos
meios de subsistência nas zonas rurais e a promoção de um desenvolvimento
ambiental, social e econômica sustentável. A avaliação, realizada entre os anos
2005 e 2007, contou com uma direção integrada por representantes de
governos, ONGs, grupos de produtores e
consumidores, entidades privadas e organizações internacionais, com um claro
equilíbrio geográfico, com a participação de 400 especialistas mundiais para
realizarem este estudo, que incluía uma avaliação mundial e cinco de regionais.
Suas conclusões marcaram um ponto de
inflexão, já que pela primeira vez um processo intergovernamental destas
características, e patrocinado por estas instituições, realizava uma aposta
clara e firme na agricultura ecológica e destacava sua alta produtividade. Em
concreto, o relatório afirmava que “o aumento e o fortalecimento dos
conhecimentos, a ciência e a tecnologia agrícola, orientados para as ciências
agroecológicas, contribuirão para resolver questões ambientais, ao mesmo tempo
em que mantém e aumenta a produtividade”.
Desse modo, considerava que a
agricultura ecológica era uma alternativa real e viável à agricultura
industrial, que garantia melhor a segurança alimentar das pessoas e que era
capaz de reverter o negativo impacto ambiental desta última. O relatório dizia:
“A pegada ecológica da agricultura industrial já é muito grande para ignorá-la
(...). As políticas que promovem uma adoção mais rápida de soluções de eficácia
(...) para a mitigação e a adaptação à mudança climática podem contribuir para
frear ou inverter esta tendência e, ao mesmo tempo, manter uma adequada
produção de alimentos. As políticas que promovem práticas agrícolas
sustentáveis (...) estimulam uma maior inovação tecnológica, como a
agroecologia e a agricultura orgânica, para aliviar a pobreza e melhorar a
segurança alimentar”.
Os resultados da IAASTD consideravam,
igualmente, a agricultura industrial e intensiva como geradora de
“desigualdades”, acusavam-na pelo “manejo insustentável do solo ou da água” e
de práticas baseadas na “exploração trabalhista”. A avaliação concluía que “as
variedades de cultivos de alto rendimento, os produtos agroquímicos e a
mecanização beneficiaram principalmente aos grupos dotados de maiores recursos
da sociedade e corporações transnacionais, e não aos mais vulneráveis”. Algumas
afirmações inéditas, até o momento, no panorama internacional, por parte de
instituições e governos.
Este relatório, com estas conclusões,
foi aprovado pelas autoridades de 58 países em uma assembleia plenária
intergovernamental, em abril de 2008, em Johanesburgo, em que mostraram acordo
e avaliaram os resultados. Os Estados Unidos, Canadá e Austrália, como não é
surpresa para ninguém, negaram-se a subscrever esta avaliação e mostraram
reservas e desconformidades à totalidade.
Conclusão
Os relatórios de Olivier de Schutter,
relator especial das Nações Unidas para o direito à
alimentação, e da IAASTDdestacam, sem
ambiguidades, a alta capacidade produtiva da agricultura camponesa e ecológica,
igual ou superior, dependendo do contexto, à agricultura industrial. Ao mesmo
tempo, consideram que esta permite um maior acesso aos alimentos, por parte das
pessoas, ao apostar em uma produção e uma comercialização local. Além disso,
com suas práticas respeita, conserva e mantém a natureza. O "mantra"
de que a agricultura industrial é a mais produtiva e de que é a única que pode
dar de comer à humanidade demonstra-se, com base nestes estudos, totalmente
falso.
Na realidade, a agricultura camponesa
e ecológica não só pode alimentar o mundo, como também é a única capaz de fazer
isso. Não se trata de um retorno romântico ao passado, nem de uma ideia
bucólica do campo, mas, sim, de fazer confluir os métodos campesinos de ontem
com os saberes do amanhã e de democratizar radicalmente o sistema
agroalimentar.
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