Há muita formas de celebrar o Natal. A que tomou conta é a do mercado capitalista, que consegue instrumentalizar tudo para gerar lucros, para promover o consumismo - até mesmo as coisas mais sagradas, lembrava o mestre Karl Marx, já no século XIX em seu esforço por compreender criticamente a economia política da sociedade capitalista. Desta festa eu quero distância; na verdade, quero que entre numa crise que a force a deixar de existir, para que a humanidade possa encontrar outras formas de suprir o que necessita para construir o seu bem viver e para que não se continue insensivelmente aumentando o estresse da Terra.
Há, no outro extremo, a festa dos que não têm nada para fazer ceias, distribuir presentes, vestir-se com roupa de grife. Eles são a demonstração física da injustiça estrutural da sociedade em que vivemos: enquanto alguns acumulam todo tipo de riqueza, e adoecem porque precisam consumir sem parar, uma imensa quantidade de humanos não têm o mínimo necessário para uma vida digna. Eles são também juízes da nossa democracia: sua existência demonstra que governos eleitos por toda a cidadania ainda servem aos interesses de uma minoria; a política que merece o nome de dmocracia deve ter como ponto de honra agir para que despareçam as desigualdades, e toda elas, as sociais, as econômicas, as culturais, as políticas...
Estranho: o que se festeja neste Natal é o nascimento de quem? Deve ser alguém importante, já que envolve quase todo mundo. Não é do Papai Noel, apesar de sua presença comercialmente forte. É de um menino pobre, que nasceu fora da cidade, a que deram o nome de Jesus, e que, depois, nas práticas de sua vida adulta, mostrou que era filho de Deus, e ensinou que todas as pessoas, a começar das mais pobres, são igualmente filhos e filhas de Deus. Foi julgado perigoso e, por isso, condinado à morte de cruz. Enterrado, ressuscitou e tornou-se fonte de sentido para a vida de muitas e muitas pessoas...
Assim sendo, a festa do Natal só é verdadeira se, de alguma forma, estiver ligada ao menino celebrado. Como ele nasceu pobre entre os pobres, certamente nasceria mais uma vez, em 2010, entre os pobres de hoje. Na verdade, enquanto a humanidade gerar pobreza e miséria, quem é filho e filha de Deus estará junto com os pobres, caminhando com eles para uma sociedade justa, em que a riqueze seja destribuída com justiça, e para uma sociedade em que reinem relações de amor e, por isso, de paz. Enquanto persistir a geração de miséria, o amor dos filhos e filhas de Deus só pode ser amor aos injustiçados, aos empobrecidos, aos excluídos.
A propósito, e para concluir esta breve reflexão com arte, ofereço um poema de Pedro Casldáliga, o bispo dos que reconhecem Jesus nos empobrecidos e dos que caminham com eles na construção de uma nova civilização, a da cooperação, da solidariedade, do justiça, da democracia verdadeira, do amor.
Natal 2010
É difícil detectar O Anúncio
em meio a tantos anúncios que nos invadem.
Ainda existe Natal?
Natal é a Boa Nova?
Natal é também Páscoa?
Sabemos que «não há lugar para eles».
Sabemos que há lugar para todos,
até para Deus...
O boi e a mula,
fugindo do latifúndio,
se refugiaram nos olhos desta Criança.
A fome não é só um problema social,
é um crime mundial.
Contra o Agro-Negócio capitalista,
a Agro-Vida, o Bem Viver.
Tudo pode ser mentira,
menos a verdade de que Deus é Amor
e de que toda a Humanidade
é uma só família.
Deus continua entrando por debaixo,
pequeno, pobre, impotente,
mas trazendo-nos a sua Paz.
A dona Maria e o seu José
continuam na comunidade.
A Veva continua sendo tapirapé.
O sangue dos mártires
continua fecundando a primavera alternativa.
Os cajados dos pastores
(e do Parkinson também),
as bandeiras militantes,
as mãos solidárias
e os cantos da juventude
continuam alentando a Caminhada.
As estrelas só se enxergam de noite.
E de noite surge o Ressuscitado.
«Não tenhais medo».
Em coerência, com teimosia e na Esperança,
sejamos cada dia Natal,
cada dia sejamos Páscoa.
Amém, Axé, Awire, Aleluia.
Pedro Casaldáliga,
Natal 2010, ano novo 2011.
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