Ameaçado pelo seu trabalho com os sem-teto das ruas de São Paulo, um padre brasileiro recebeu uma “medida cautelar” da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada em Crux, 30-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Pe. Júlio Lancellotti tem mais de três décadas de experiência trabalhando no ativismo social entre os pobres. O padre e Daniel Feitosa, um morador de rua que trabalha com ele, receberam a medida da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA no início de março.
Pe. Júlio Lancellotti, participando de um
ciclo de formação e debate em janeiro passado (Foto: Anchietanum/Magis
Brasil/Jesuítas Brasil)
A CIDH emite medidas cautelares em “situações urgentes que apresentem um risco de dano irreparável a pessoas, ou a uma questão pendente de uma petição, ou a um caso perante os órgãos do sistema interamericano”. Essas medidas pedem aos governos nacionais que adotem “medidas protetivas” para pessoas que enfrentam ameaças à sua vida ou bem-estar físico.
A CIDH decidiu emitir uma medida cautelar depois de analisar as acusações dos dois homens sobre uma onda de perseguição que eles vêm sofrendo nos últimos anos e que aumentou em 2018. Eles dizem que receberam várias ameaças de morte por telefone e pelas mídias sociais, além de enfrentar outros atos de intimidação – às vezes incluindo violência – perpetrados até mesmo pelas autoridades.
Lancellotti é o vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e é um conhecido defensor dos direitos dos pobres, das crianças abandonadas e das pessoas com HIV/Aids. Durante muito tempo, Lancellotti deu apoio aos moradores de uma favela conhecida como Favela do Cimento, perto da sua paróquia, localizada em um bairro de classe média em São Paulo. Alguns dos lojistas e moradores próximos, de acordo com Lancellotti, nunca toleraram a favela e, consequentemente, se ressentiram do seu ativismo.
“Essas ameaças não são novas e às vezes pioram. Seus alvos são os sem-teto. O bairro quer que a favela saia, então inventam inúmeras histórias sobre mim: dizem que eu recebo dinheiro dos traficantes de drogas e que os criminosos pagam meu aluguel”, disse Lancellotti ao Crux.
Mas, no início de 2018, esses boatos se transformaram em ameaças. Em um documento apresentado aos promotores locais há um ano, os advogados de Lancellotti compilaram uma lista de postagens em fóruns na internet que encorajavam atos de violência contra ele e seus colegas ativistas. Os agressores diziam coisas como: “Morte ao Padre Júlio” e “Esse cara tem feito horas extras há muito tempo, ele precisa se encontrar com o Criador”. Outro comentário diz: “Em primeiro lugar, alguém deveria mandar esse padre para o inferno e depois os seus seguidores”. Nenhuma medida concreta foi tomada pelas autoridades brasileiras quando essas ameaças foram denunciadas, disse Lancellotti.
Os ataques virtuais se transformaram em atos de intimidação face a face cometidos por policiais: segundo Feitosa, um policial disse-lhe uma vez que, “se pegarmos você [e Lancellotti] caminhando à noite, vamos matar vocês dois”.
Em setembro de 2018, outro incidente violento ocorreu: Lancellotti estava tentando mediar uma briga entre a polícia da cidade e um pequeno grupo de moradores de rua, cujos pertences pessoais haviam sido indevidamente levados pelos catadores de lixo da cidade. Acusando Lancellotti de ter iniciado o conflito, um policial bateu nele, derrubou-o e cuspiu nele.
No fim de 2018, as ameaças começaram a acontecer semanalmente. Frequentemente, um sem-teto diz ao padre que alguém nas ruas – muitas vezes um policial – disse que todos devem ir embora para sempre.
“Diga a esse padre de m*rda que, a partir de 1º de janeiro, todo mundo vai desaparecer”, foi supostamente a advertência de um oficial a um homem, referindo-se ao início do governo do presidente Jair Bolsonaro – um político conservador muitas vezes chamado de “Donald Trump brasileiro”. Muitos dos seus partidários o elegeram na esperança de que ele enfrentaria o que consideram como movimentos sociais indesejáveis.
A CIDH solicitou informações sobre o caso ao governo brasileiro e enviou representantes ao país em novembro de 2018. Após analisar todos os documentos, a comissão concluiu que não haviam sido tomadas medidas efetivas para garantir os direitos de Lancellotti e de Feitosa.
“Consequentemente, [...] a Comissão solicitou ao Estado do Brasil que tomasse as medidas necessárias para proteger os direitos à vida e à integridade pessoal de Júlio Renato Lancellotti e de Daniel Guerra Feitosa e para permitir que Júlio Lancellotti continue fazendo seu trabalho como defensor dos direitos humanos sem ser objeto de ameaças, assédio ou quaisquer outros atos de violência por realizar tal trabalho”, disse o comunicado da CIDH, divulgado em 21 de março.
Apenas dois dias após a divulgação do comunicado da OEA, no dia 23 de março, a Favela do Cimento foi incendiada, destruindo quase tudo e matando um homem. No dia seguinte, 24 de março, o governo municipal anunciou que a área seria recuperada e que todos os residentes seriam realocados em abrigos. Muitas pessoas foram à paróquia de Lancellotti à procura de ajuda.
“A maioria deles têm medo nas ruas. A polícia lhes disse para manterem distância da área ou serão espancados”, disse o padre.
Lancellotti disse ao Crux que acredita que a medida cautelar da OEA aumentará a visibilidade da luta dos sem-teto e funcionará como uma medida de controle das ameaças que ele e Feitosa estão enfrentando.
“Mas o Estado brasileiro, particularmente o governo federal, não pode se importar menos conosco. Seria um favor para eles se alguém me matasse.”
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