sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

BAIXO AMAZONAS: O COLONIALISMO CONTINUA


QUANDO SERÁ QUE AS PESSOAS QUE DEPENDEM DA UMIDADE E ÁGUA GERADA NA E PELA AMAZÔNIA DEFENDERÃO E APOIARÃO PROJETOS DE CONVIVÊNCIA COM A AMAZÔNIA? PARA ISSO, É PRECISO QUESTIONAR E PARALISAR OS PROJETOS EXTRATIVISTAS E COLONIZADORES, JÁ QUE ELES ESTÃO ACABANDO COM A AMAZÔNIA EM NOME DE UM DESENVOLVIMENTO QUE SÓ ENRIQUECE POUCAS PESSOAS JÁ RICAS.



 Baixo Amazonas, um canto em que o Brasil é colonial


Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos | IHU, 11 Janeiro 2019

Quando o Brasil ainda era um ponto visível apenas por embarcações fora de rota ou no destino de degredados, a exploração dessas terras já ocorria de uma forma muito sutil. Na medida em que se descobriu que o Brasil era muito mais do que uma ilha e que por aqui havia muito mais do que belos papagaios, o Estado português decidiu ocupar e colonizar estas terras. Era o século XVI, tempos de expansão territorial, de colonização e colonialismo, em que o local era tido como exótico e passível de expropriação.

Quando se mergulha nos confins do norte do país, região do Baixo Amazonas, se percebe que, de lá para cá, pouca coisa mudou. O Brasil, embora agora Estado soberano, continua dizimando seus povos originários e espoliando a matéria-prima da terra em nome de um tal desenvolvimentismo, um novo nome para as ações colonizadoras. “A nossa condição colonial tem sido ratificada ao longo dos mais diversos processos econômicos e políticos que o país vivenciou”, destaca o professor Rogério Almeida, que conhece em detalhes a realidade dessa região.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Almeida revela que “o extrativismo mineral, o agronegócio e as respectivas obras de infraestrutura para viabilizar tais atividades colocam em risco constante as populações consideradas tradicionais e camponeses, as unidades de conservação [UCs], as institucionalidades criadas para operacionalizar ações junto às populações e às UCs”. De um lado, há um Estado com órgãos que deveriam proteger essas áreas e pessoas extremamente fragilizados, e de outro o capital internacional, que vende uma ideia de desenvolvimento que não é mais do que uma forma de tomar recursos naturais e imprimir as lógicas coloniais do século XXI. “No contexto atual, as grandes corporações de mineração, de construção civil e do agronegócio hegemonizam o cenário”, aponta o professor. E ainda dispara: “estão destruindo um patrimônio que as universidades sequer tiveram tempo de conhecer”.

Como se tudo isso não fosse o bastante, ainda sobra miséria e violência para quem vive nesse Brasil do norte. “Nós estamos num território de ilegalidades de toda ordem: tráfico de drogas, tráfico humano, trabalho escravo, tráfico de madeira, biopirataria, entre tantas outras. Tem a violência estrutural, um Estado autoritário, e o poder concentrado nas mãos de poucos. A agenda de ‘desenvolvimento’ concentrada em grandes empreendimentos é uma ameaça constante”, pontua. Não é à toa que defensores do meio ambiente vêm sendo assassinados na região há 30 anos, pelo menos.

Mas como pensar em desenvolvimento dessa região, numa lógica que não apenas repagine a colonização do século XVI? “Esse tema do desenvolvimento sustentável é paradoxal, complexo e controverso. Ainda mais por conta da incorporação do mesmo nos planos e discursos de grandes corporações como estratégia de marketing. Elas integram um xadrez de saque, e fazem algumas perfumarias e colocam como responsabilidade social e afins”, adverte o professor.

Para ele, a receita é olhar profundamente para as populações originárias e apreender como sobrevivem a partir da natureza, mas sem dizimar a terra por cada vez mais matéria-prima. “No Baixo Amazonas há ricas experiências realizadas a partir das populações locais no uso dos recursos madeireiros e não madeireiros, a partir da produção de óleos vegetais, artesanato, biojoias etc.”, exemplifica. “Faz-se necessário a superação do preconceito com relação às populações originárias, que desde os relatos coloniais, onde o mais célebre é o de Carvajal, são tratadas e enquadradas como desprovidas da capacidade de gerir as suas próprias vidas e os recursos locais”, sugere.

Rogério Henrique Almeida  (Foto: Bulicoso)

Rogério Henrique Almeida é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, cursou especialização e mestrado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará - UFPA. A dissertação Territorialização do Campesinato no sudeste do Pará foi laureada com o Prêmio Naea/2008 e o livro lançado no começo de 2013. Atualmente, é professor do Curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA e doutorando em Geografia Humana da Universidade de São Paulo - USP, na categoria interinstitucional, uma parceria com a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - UNIFESSPA, UFOPA e Instituto Federal do Pará - IFPA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pode nos dar um panorama da região do Baixo Amazonas? Quem são os povos tradicionais que vivem nessa região e como eles se relacionam com os demais moradores da região?
Rogério Almeida – Trata-se de uma relevante região da Amazônia por inúmeras razões. O Baixo Amazonas guarda vestígios do período pré-colombiano, onde a Caverna da Pedra Pintada, localizada no município de Monte Alegre, é considerada o registro mais antigo sobre a presença humana na Amazônia do Brasil, com 11.200 anos estimados. Há vários sítios arqueológicos, cavernas etc. Algumas sem prospecção ainda.
Trata-se de sociedades consideradas bem complexas, que conviveram/convivem de forma harmoniosa com os recursos das florestas, dos rios, das várzeas, ilhas e da terra firme. Os caudalosos rios Tapajós e Amazonas irrigam a região que abriga populações indígenas, quilombolas e um diversificado campesinato. Com relação aos indígenas, temos uma população de, em média, seis mil indivíduos, distribuídos entre 13 povos em oito territórios. A coordenação da Funai da região atende às etnias Munduruku, Apiaká e Kayabi (Alto e Médio Tapajós) e Arapium, Munduruku, Apiaká, Maytapu, Cumaruara, Jaraqui, Tupinambá, Borari, Cara-preta Munduruku, Tapuia, Arara-Vermelha (Arapiranga), Tapajó e Tupaiú (Baixo Tapajós/Santarém).

Baixo Amazonas (Foto: MPPA)

Baixo Amazonas (Foto: Researchgate.net)
No que tange aos remanescentes de quilombos, a estimativa é de 65 comunidades que abrigam 2.874 famílias; multiplicando por cinco, que é a média familiar, teremos aí perto de 15 mil pessoas. Deste conjunto de comunidades, creio que nem dez conseguiram o reconhecimento por parte do Estado. Com relação a projetos de assentamentos da reforma agrária [PAs], caso a gente some com os assentados da região do município de Altamira, que está sob a influência da Transamazônica, teremos uns 200 projetos PAs. Nós estamos falando de cerca de 12 municípios, num território de 315 mil km², com uma população de 705 mil habitantes, uns 9% da população do estado. População essa que, desde o século passado, convive com a presença do grande capital internacional, onde são os casos mais destacados a tentativa de Henri Ford de domesticar a floresta nos anos de 1920, na cidade de Aveiro, que ficou imortalizada como Fordlândia, e de Daniel Ludwig, nos anos de exceção com um megaprojeto que devastou uma parcela significativa da floresta na cidade de Almeirim para implantar pecuária e o monocultivo de eucalipto para produção de celulose.
Trailer_1 Beyond_Fordlandia Port from Beyond Fordlândia on Vimeo.

Exploração na atualidade

Atualmente, a empresa paulista Orsa controla o empreendimento. Faz quatro anos que extrativistas promoveram um empate [prática de resistência pacífica criada por Chico Mendes no Acre], com vistas a defender o castanhal da comunidade de Pilões. A Mineração Rio do Norte [MRN] explora bauxita no município de Oriximiná desde os anos 1980; já em Juruti, a Alcoa explora o mesmo minério desde os anos 2000.
Esta diversidade social: indígenas, quilombolas, camponeses, extrativistas estão no olho do furacão por conta de obras de infraestrutura da cadeia de produção de grãos do Brasil Central e de exploração mineral. Na pauta de obras de infraestrutura consta asfaltamento da BR 163 [Cuiabá-Santarém], hidrovias, ferrovias, edificação de várias hidroelétricas e portos. A lógica aprofunda a condição colonial da Amazônia como mero exportador de matérias-primas. Além da cadeia da soja, tem os impactos da mineração. Em Oriximiná, por exemplo, a MRN explora bauxita há uns 30 anos. E essa atividade não dinamiza a economia local, além de gerar graves danos ao meio ambiente.
A Comissão Pró-Índio de São Paulo acabou de lançar um documento sobre a qualidade da água em comunidades quilombolas da região. Os recursos estão comprometidos e os quilombolas impedidos de usar a água, um recurso vital. A mineradora faz parte do portfólio da Vale, e explora bauxita. O projeto integra a cadeia de alumínio, cuja outra ponta, as plantas industriais, ficam na cidade de Barcarena, perto de Belém. Assim como Oriximiná, o município de Barcarena e cidades vizinhas possuem os recursos hídricos comprometidos.

Cumplicidade estatal

O governo do Pará tem sido omisso ou cúmplice em fiscalizar as empresas. Em Barcarena têm sido recorrentes os problemas de transbordo nas barragens de rejeito. A rotina consiste nas empresas enviarem relatórios e o órgão de meio ambiente simplesmente endossar. Atualmente, a empresa norueguesa Norsk Hydro controla a cadeia do alumínio. Soa meio irônico pelo fato de a Noruega ser o país que mais aporta recursos no Fundo Amazônia, destinado para apoiar o meio ambiente.
Neste contexto, pescadores, extrativistas, camponeses, indígenas e o campesinato têm as suas condições de reprodução econômica, social, política e cultural ameaçadas. A expropriação e espoliação tem sido a regra desde os primeiros colonizadores.

Mapa do Baixo Amazonas 

IHU On-Line – O que é o Coletivo Tapajós Vivo, quem faz parte dele e quais são suas reivindicações para a Amazônia?
Rogério Almeida – O Coletivo aglutina entidades do campo democrático e popular, pesquisadores, ativistas de defesa do meio ambiente e direitos humanos. Ele tem como pauta central a manutenção dos territórios dos povos ancestrais e dos camponeses, a defesa do meio ambiente. O grupo realiza reuniões periódicas, incentiva e participa de produção de conteúdos sobre a agenda desenvolvimentista sobre a região, articula seminários e encontros dentro e fora da região, é um dos protagonistas da realização do Fórum Social Pan-Amazônico. Assim como o capital, a articulação em defesa dos povos da floresta também se coaduna em escala maior. A última versão do Fórum ocorreu no Peru, por exemplo. Tem ocorrido o diálogo que aproxima as populações atingidas por problemas que são comuns. Assim, eles intentam agir a partir de redes em várias linhas de ações de resistência.
IHU On-Line – Na apresentação da Revista Terceira Margem Amazônia, o senhor mencionou que a Amazônia é uma “derradeira fronteira de expansão do capitalismo”. Quais são as principais disputas em torno da “exploração” ou do “uso” da biodiversidade e dos recursos da Amazônia e quais são os grupos nacionais e internacionais que disputam a possibilidade de “explorar” o território e sua biodiversidade?
Rogério Almeida – A nossa condição colonial tem sido ratificada ao longo dos mais diversos processos econômicos e políticos que o país vivenciou. Isso desde a era Vargas, quando se tem o registro do primeiro plano de integração subordinada aos interesses do grande capital. E tudo pode ficar pior por conta do atual e temerário contexto. O extrativismo mineral, o agronegócio e as respectivas obras de infraestrutura para viabilizar tais atividades colocam em risco constante as populações consideradas tradicionais e camponeses, as unidades de conservação [UCs], as institucionalidades criadas para operacionalizar ações junto às populações e às UCs.
Há uma precarização nas instituições como Ibama, ICMBio, Funai, Ministério do Trabalho, universidades, entre outras. No Congresso Nacional, a bancada ruralista tem pressionado a partir de várias estratégias para revisar e afrouxar algumas leis que em certa medida garantem a sobrevivência das populações tradicionais. Lembro agora de revisões com vistas a permitir mineração em territórios tradicionais. No contexto atual, as grandes corporações de mineração, de construção civil e do agronegócio hegemonizam o cenário. Aí temos a Vale, Alcan, Alcoa, Tractebel Suez, Norsk Hydro, Anglo, Odebrecht, Mendes Junior, Cargill, Bunge, e por aí vai.
Um reflexo desta tensão tem sido os constantes ataques sofridos por servidores públicos do Ibama e ICMBio em suas atividades laborais. Tais ataques ocorrem desde os anos iniciais de 2000. Os servidores sofrem ameaças, os carros públicos e sedes das instituições são queimados, os governos acenam com anistia de multas e ainda financiam atividades que provocam o desmatamento, a contaminação dos recursos hídricos. Estão destruindo um patrimônio que as universidades sequer tiveram tempo de conhecer.

Endosso da imprensa

No campo simbólico, os meios de comunicação das cidades que abrigam os empreendimentos, mesmo os da capital do estado, que em tese poderiam problematizar as questões, e os dos principais centros, ressoam um discurso triunfalista destes projetos, e satanizam as ações das populações ancestrais, camponeses e seus respectivos apoiadores. Tem-se ainda a criminalização da luta por direitos. A mineradora Vale processa mais de cem pessoas, entre ativistas, apoiadores e professores. Além de criminalizar, ocorre a cooptação de pessoas para ressoar o discurso de geração de emprego e renda das empresas. Em resumo, a assimetria de forças conforma o combate.
IHU On-Line – Quais são os principais projetos brasileiros em execução e previstos para a região do Baixo Amazonas?
Rogério Almeida – As rodovias, os polos de produção sob a inspiração estadunidense e europeia foram a guia de integração física e subordinada da região ao país e à economia mundial nos anos de exceção. Esta opção projetou um cipoal de passivos de toda ordem na região, onde podemos sublinhar, além do desmatamento em grande escala, a violência em suas mais variáveis nuances, simbólica e física.
O sudeste paraense, por ter sido a região que mais concentrou investimentos, também é a mesma que concentrou/concentra os indicadores mais alarmantes com relação à execução de camponeses. Nos dias atuais, os projetos estão baseados a partir da Iniciativa de Infraestrutura de Integração Sul-Americana [IIRSA], desde os fins dos anos 1990 e início dos anos 2000. A escala trabalhada agora é sul-americana, com vistas a acessar terra e os recursos naturais da região, com pleno financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [BNDES], que injetou obras de infraestrutura no Peru, por exemplo, com vistas a dinamizar uma saída para o Pacífico.
No caso do Baixo Amazonas, como citei acima, há projetos de um complexo de hidroelétrica no rio Tapajós, asfaltamento da BR-163, ferrovias e hidrovias, e vários complexos portuários. Em síntese, se quer consolidar a região como um grande corredor de exportação de commodities. Em Santarém, cidade polo da região, contra a posição popular consagrada em conferência municipal no processo de revisão do plano diretor, que decidiu pela manutenção do bairro do Maicá contra a instalação de portos, a câmara de vereadores não respeitou a decisão e atendeu ao setor de agronegócio. É a prevalência do interesse privado em detrimento do público. Segue o mesmo caminho de ilegalidade que marcou a construção do porto da estadunidense Cargill nos anos 2000. Erguido ao arrepio da lei.
No caso do projeto do complexo de porto de Maicá, os precários estudos de impactos publicizados não reconhecem a presença das comunidades quilombolas do lugar. Avaliação realizada por pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará [Ufopa] pontua os limites em vários campos do conhecimento sobre o projeto apresentado de Estudos de Impactos Ambientais [EIA-Rima]. Apesar da decisão popular da conferência, dos estudos da Ufopa, da posição de várias entidades e coletivos, o prefeito Nélio Aguiar, do DEM, endossou a decisão da casa legislativa realizada sem a devida publicidade e no momento de fim de ano, onde via de regra as pessoas estão mais centradas em atividades da família e fazendo o balanço do ano.
IHU On-Line – De outro lado, quais são as principais tensões que evidencia na Amazônia hoje, especialmente no Baixo Amazonas? Quais são as causas dessas tensões?
Rogério Almeida – Nós estamos num território de ilegalidades de toda ordem: tráfico de drogas, tráfico humano, trabalho escravo, tráfico de madeira, biopirataria, entre tantas. Tem a violência estrutural, um Estado autoritário, e o poder concentrado nas mãos de poucos. A agenda de “desenvolvimento” concentrada em grandes empreendimentos é uma ameaça constante. Enquanto os dividendos são auferidos por poucos, o conjunto da sociedade socializa os passivos de toda ordem. Faz 30 anos que a mineração ocorre no sudeste paraense, por exemplo. Apesar de ser o principal produto da economia do Pará, a região concentra os piores indicadores sociais. A chacina de camponeses ocorrida na cidade de Pau D’arco pelas polícias civil e militar é um indicador da naturalização da violência nas disputas territoriais num ambiente marcado pelo caos fundiário e a grilagem de terras.
Agora mesmo mataram o ativista Gilson Maria Temponi, em Rurópolis, região do Baixo Amazonas, no dia 15 [de dezembro]. A impunidade tem sido a regra. A maioria das chacinas e execuções ocorridas nos anos 1980 estão impunes. Isso incentivou as execuções de irmã Dorothy, dos ativistas Bartolomeu Morais da Silva, conhecido como “Brasília”, sequestrado, torturado e executado por tiros de vários calibres no município que possui o irônico nome de Castelo dos Sonhos, no início dos anos 2000. O mesmo destino teve Ademir Federicci, conhecido como “Dema”. E, para mim, tudo pode piorar. Agora estão a perseguir o Pe. Amaro, na cidade de Anapu, onde atuava a irmã Dorothy. Assim como no caso da missionária e agente da Comissão Pastoral da Terra [CPT], Amaro foi acusado de armar o povo do campo, e chegou a ser preso a partir de acusações falsas.
IHU On-Line – As pesquisas recentes demonstram que houve um aumento da pobreza no país. O que os indicadores de desenvolvimento e pobreza indicam sobre a situação de pobreza e desenvolvimento da Amazônia e do Baixo Amazonas?
Rogério Almeida – O Pará tem uma população estimada em uns seis milhões. Mais da metade vive abaixo da linha da pobreza. Creio que esse dado ajuda a evidenciar o quanto são limitados os projetos de desenvolvimento impostos para a região. No caso do Baixo Amazonas, a estimativa é a mesma, cerca da metade da população. A região é a terceira maior taxa de pobreza do estado. A ironia é que o estado é um dos que mais contribui para a composição do PIB nacional por conta do extrativismo mineral, em particular o minério de ferro das terras da região de Carajás, nos municípios de Parauapebas e Canaã dos Carajás. É nessa cidade que a Vale desenvolve o maior projeto de mineração do seu portfólio, o S11D.
É como se tivesse sendo reeditado um novo Projeto Grande Carajás, inaugurado na década de 1980. O projeto impacta projetos de assentamentos rurais, terras indígenas e quilombolas nos estados do Pará e Maranhão. Um saque agravado pela renúncia fiscal por conta da Lei Kandir, que veta o recolhimento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias - ICMS. O minério representa quase cem por cento do PIB do estado. A economia do Pará é assentada numa única atividade que possui limites, e depende de oscilações do mercado mundial. Como diz o jornalista Lúcio Flávio Pinto, um especialista na região, “minério possui única safra!”. O que será do estado após o esgotamento da atividade?
IHU On-Line – Como as mudanças econômicas ocorridas no Brasil a partir dos anos 1960 modificaram o padrão de ocupação sociogeográfico da Amazônia? É possível fazer um balanço sobre quais são as implicações dessas mudanças para a floresta hoje, quase 60 anos depois?
Rogério Almeida – Tem um conjunto de pesquisas de variados campos do conhecimento que atestam as radicais modificações ocorridas quando o planejamento tecnocrático dos militares impôs a rodovia como o principal vetor de integração física da região. Implicações na demografia, grande fluxo migratório, criação de várias vilas e cidades, sob o caos fundiário e a grilagem de terras, onde grandes extensões foram concentradas nas mãos de poucas e grandes corporações aos moldes dos Bancos Bamerindus, Econômico, Bradesco, Volkswagen etc. Lembro de tratados de Bertha Becker (UFRJ), José de Souza Martins (USP), Octávio Ianni (USP), Ariovaldo Umbelino (USP), Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF), Edna Castro, Rosa Acevedo Marin, Jean Hébette e Francisco de Assis Costa, todos da UFPA.
Até a execução de Chico Mendes, que este ano fez 30 anos, as políticas tinham como matriz atender demandas do mercado externo. A partir de 1988, ocorreram algumas inflexões a partir das demandas das populações locais. Isso fruto de muita pressão, várias experiências de lutas e mediações de partidos políticos, ONGs, frações da Igreja Católica, intelectuais, efetivação de redes locais e internacionais a partir da defesa do meio ambiente. Neste contexto foi possível criar o Ministério do Meio Ambiente e outras institucionalidades, políticas, reconhecimento das Reservas Extrativistas como possibilidade de reforma agrária adequada ao modelo da região. Mas as tensões continuam no agudo cenário na disputa pela terra e os recursos naturais.
IHU On-Line – Que transformações ocorreram na dinâmica de navegação no Baixo Amazonas depois da integração da região ao circuito produtivo do agronegócio?
Rogério Almeida – O rio continua a ser um importante meio de circulação de pessoas, produtos e informação na região. Na cidade de Santarém, em particular, no rio Tapajós, os barcos tradicionais teimam em enfeitar a orla da cidade. É possível notar de forma nítida na orla da cidade os circuitos econômicos baseados no agronegócio e o mobilizado a partir das populações locais. As balsas de soja a alcançarem o porto da Cargil, e os barcos locais a alimentarem o Mercadão 2000, o mercado municipal. Mas sugiro ler o artigo do Eduardo Margarit, que consta no Dossiê. Ele faz uma excelente síntese do que tem ocorrido.
IHU On-Line – O que seria uma proposta adequada de desenvolvimento para a região, na sua avaliação? O que já tem sido feito no Baixo Amazonas para garantir o desenvolvimento sustentável da região?
Rogério Almeida – Esse tema do desenvolvimento sustentável é paradoxal, complexo e controverso. Ainda mais por conta da incorporação do mesmo nos planos e discursos de grandes corporações como estratégia de marketing. Elas integram um xadrez de saque, e fazem algumas perfumarias e colocam como responsabilidade social e afins.
Noutro extremo, há milênios as populações tradicionais convivem com os recursos da floresta. Há um conhecimento tradicional que deve ser considerado no cálculo dos projetos, mas que, via de regra, não são levados em consideração. Vários intelectuais, ativistas, dirigentes sindicais e de associações defendem a necessidade de uma convergência de ações que passa pelas universidades na produção de conhecimentos, políticas públicas, ações em sinergia de vários segmentos do poder institucionalizado, financiamento que favoreçam as experiências de pescadores artesanais, extrativistas, camponeses e a rica sociodiversidade da região.
Só que o combate é muito desigual, o que tem predominado é a força do grande capital. No Baixo Amazonas há ricas experiências realizadas a partir das populações locais no uso dos recursos madeireiros e não madeireiros, a partir da produção de óleos vegetais, artesanato, biojoias etc. Faz-se necessário a superação do preconceito com relação às populações originárias, que desde os relatos coloniais, onde o mais célebre é o de Carvajal, são tratadas e enquadradas como desprovidas da capacidade de gerir as suas próprias vidas e os recursos locais. Esse tipo de discurso tem legitimado a arquitetura das políticas públicas historicamente impostas para a região, não à toa os militares a consideraram um vazio demográfico.

http://www.ihu.unisinos.br/585958-baixo-amazonas-um-canto-em-que-o-brasil-ainda-e-colonial-entrevista-especial-com-rogerio-almeida 

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