A MENSAGEM DO MONGE SATO, ANIMADOR DA COMUNIDADE BUDISTA DE BRASÍLIA, NOS CONVIDA A TERMOS CONSCIÊNCIA E RESPONSABILIDADE PELA ÁGUA NOSSA DE CADA DIA.
EU-ÁGUA
Eu me sinto honrado em participar dessa sessão especial denominada
“Água e Espiritualidade” no âmbito do 8º Fórum Mundial da Água”, em companhia
de outros irmãos religiosos.
Eu sou a Água.
Existo antes da Terra, fundamento o mundo material, sou a
essência da vegetação. Sou fonte e a
origem, a matriz de todas as possibilidades de existência. Asseguro longa vida, força criadora, bálsamo
e cura a qualquer dor, produzo bem-estar.
Sou receptáculo de qualquer forma embrionária, simbolizo a
substancia primordial onde nascem todas as formas e às quais retorna, por
regressão ou por cataclismo.
Estava no começo e retorno ao fim de todo ciclo histórico ou
cósmico. Estarei, sempre, recompondo a
unidade inquebrantável das virtualidades em todas as suas formas.
A imersão na água simboliza regressão à pré-forma, a
regeneração total, o novo nascimento, equivale à dissolução das formas,
reintegrar-se ao todo indiferenciado da pré-existência. Emergir dela nada mais é que repetir o gesto
cosmológico de voltar a se manifestar em outra forma. O contato com a água implica sempre em
regeneração, porque a dissolução é seguida por um novo nascimento, a imersão
fertiliza e aumenta o potencial da vida e da criação. Seja por ritual iniciático, crença mágica ou
cerimonial religioso, é a incorporação de todas as virtualidades como símbolo
de Vida.
É a Água que confere a Vida, a Água é a Vida. Fecunda a terra, os animais, o feminino. Água na terra, lua no céu, elas conjugam o
mesmo ritmo, na aparição e desaparição periódica de todas as formas, dando ao
futuro universal uma estrutura cíclica.
A água sustenta o circuito antropocósmico, tanto como o esperma que
guarda o sémen como o líquido amniótico em que o gérmen-feto se gesta. É muito bonita a lenda primitiva de que a
Terra-Mãe foi fecundada por uma gota d’água que caiu de uma nuvem em uma noite
enluarada.
Na cosmologia, na mística, na religião, na iconografia,
Eu-Água guardo essa mesma função, em roupagens culturais diferentes, mas nunca
deixo de preceder a todas as formas e sustentar toda a criação.
Assim, aqui estou, Eu-Água, porque não quero ser considerada
uma mera mercadoria.
Mercadoria é traduzida em inglês como commodity e carrega o estigma de lucro. Sim, ninguém trabalha com mercadorias sem
levar alguma vantagem, mas o sentido de commodity
é pior, nos lembra Comodus, o Imperador Romano que não só vendeu a irmã, como
provocou grande caos na Roma do século II.
Lembremos que commodity
passou a designar os bens primários de produção massiva, seja mineral ou
agrícola, que tem seu preço negociado em um mercado especial chamado bolsa de
mercadorias, que até parece o caos provocado pelo Imperador Comodus conduzido
pelo valor mercantil de troca e não o valor de uso do bem nem a sua utilidade
social!
Eu-Água, não quero ser fetichizada como mercadoria.
Há 150 anos, fala-se em fetiche da mercadoria como alienação
fantasmagórica em que objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou
produzido pela natureza, assume poder sobrenatural e se presta à adoração. Fenômeno psicológico que se generaliza pela
sociedade em que coisas passam a ter vontade própria no lugar das pessoas,
pessoas agindo como coisas, coisas se tornando cada vez mais importantes que
pessoas, em que a interação fraterna se transforma em trocas mal intencionadas,
o valor de tudo que se mede pela lei da oferta e procura. Comodismo conduzido pelo preço de mercado
que, paradoxalmente, nos distancia da felicidade que todo avanço científico e
tecnológico estaria propiciando à humanidade.
Na pós-modernidade, após a revolução agrícola e industrial
que aumentou continuamente a produtividade humana e o valor do trabalho que
marca a modernidade, vivemos a revolução comunicacional propiciada pelo
extraordinário avanço cientifico e tecnológico.
Entretanto, a selvageria e a barbárie continuam a despeito do aumento da
criatividade humana e da produtividade social. O crescimento das desigualdades
dificultou o exercício da fraternidade humana, agudizando as idiossincrasias e
os estereótipos de direita e esquerda.
Até a economia é conduzida pelo chamado risco
idiossincrático das bolsas de valores que se aproveitam sistematicamente dos
riscos de mudanças do preço das commodities
e, consequentemente, de todos os bens, especialmente os virtuais, estimulando e
provocando circunstancias anormais de intranquilidade e de desconfiança através
da dança macabra de boatos e informações caóticas, muitas vezes falsas.
Para muitos, a última instância é a religião. Mas cuidado, a religião deve ser a grande incentivadora
da espiritualidade e universalidade na sua diversidade de cultos, impedindo a
difusão de idiossincrasias estereotipadas.
Mais do que ninguém os religiosos devem respeitar a formação cultural da
equanimidade, a crença sincera na verdade divina ou cósmica e aceitar o
comportamento diferenciado do outro, quem quer que seja, se está voltado para o
bem comum.
Por tudo isso, Eu-Água, me recuso a ser mercadoria.
Tenho vontade de regredir ao horizonte dos primórdios e
retornar como um tsunami que dissolve todas as formas para a regeneração total,
na crise que estamos vivendo.
Não, não posso fazer isso.
Busco então sustentar na superfície a flor de lótus que se
alimenta do lodo do fundo, mas ostenta no seu trono o Buda Amida, o Patrono da
Terra Pura.
Obrigado pela atenção.
Monge Sato
22/3/2018
22/3/2018
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