O “Pai-Nosso” e a conjuntura
brasileira
Maurício Abdalla
No século I, na Palestina, o domínio romano extorquia os agricultores
por meio de pesados impostos. Adicionalmente, na região camponesa da Galileia,
o reinado perdulário de Herodes Antipas acrescentava outros tributos que
sobrecarregavam ainda mais os que viviam da terra - que ainda tinham que pagar
o imposto do Templo para os governantes judeus.
Como os impostos levavam a maior parte da colheita (principalmente nos
períodos das grandes obras de Antipas), sobrava pouco para o sustento da
família e para estoque para a próxima semeadura. Os agricultores eram, então,
obrigados a recorrer a empréstimos. Os ricos proprietários de terra, que
sustentavam o poder judaico e se aproveitavam de maneira submissa da dominação
romana, passaram a ganhar ainda mais com os juros dos empréstimos e,
principalmente, com o confisco das terras dos que não conseguiam saldar as
pesadas dívidas. Esses eram os saduceus, que orbitavam o
Templo, sede do poder judaico, e apresentavam-se como líderes religiosos e da
tradição.
Um jovem líder daquela época, de origem camponesa (da Galileia), ao
ensinar em público como se deve dirigir a Deus, disse: "Diga a Deus que
perdoe as suas dívidas do mesmo jeito que você perdoa a de seus
devedores..." Esse era Jesus.
Como essas palavras devem ter soado aos ouvidos religiosos dos saduceus,
cuja riqueza sustentava-se e crescia justamente na cobrança, e não no perdão,
das dívidas? Era como forçá-los a dizer "Deus, condene-nos".
Com isso, Jesus expressava também a condenação ao sistema que levava ao
endividamento e ao consequente enriquecimento de uns à custa do empobrecimento
de muitos. Não se preocupou em fazer referência ao “compromisso de honra” do
tomador do empréstimo com o seu pagamento. Preferiu chamar à consciência para o
sentido ético-social de uma cobrança que tinha em sua raiz original um sistema
de dominação e injustiça. Tem coragem de pedir a Deus que faça com você a mesma
coisa que você faz com os outros? Se não, algo está errado, independente das
justificativas.
Traduzida na fórmula de oração católica do "Pai-Nosso" por
"perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido" e mantida na tradição protestante como "perdoa-nos as
nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores", a oração
de Jesus contém uma crítica social e econômica fulminante, inseparável da sua
espiritualidade e só compreensível dentro de seu contexto.
O sentido original da oração foi um dos tantos fatores que levaram o
jovem da Galileia a sofrer o castigo que os romanos reservavam aos
contestadores da ordem: o assassinato político na cruz.
A retirada do contexto e o esvaziamento do sentido crítico das palavras
de Jesus é a única coisa que permite que muitos sejam a favor da ordem atual e,
paradoxalmente, se digam cristãos.
Com as riquezas do Brasil sendo entregues à rapina de banqueiros e
empresários, o empobrecimento da população, a destruição do patrimônio e dos
serviços públicos em nome de uma dívida não auditada, insolvível e fruto de um
sistema injusto, onde você acha que Jesus estaria? No Facebook defendendo as
privatizações, a destruição das leis trabalhistas e da previdência e o
engessamento do orçamento primário em nome de uma ideologia liberal de
comentadores de TV, ou com o chicote na mão liderando uma invasão ao Templo,
chamando Herodes de raposa e dizendo que o diabo é a Legião (nome das tropas de
ocupação romana)?
Pense nisso na próxima vez que for orar o “Pai-nosso”.
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