Balbina no País da Impunidade
Sob o título “IGNORÂNCIA OU MÁ FÉ SOBRE AS HIDRELÉTRICAS EM TERRAS INDÍGENAS”, Claudio Sales e Alexandre Uhlig, em o Valor
Econômico defendem a continuação de projetos hidrelétricos em áreas indígenas
da Amazônia, exaltando seus benefícios para as populações amazônicas
“(incluindo a indígena)”. Para comprovar suas afirmações os autores sugerem
“uma analise serena sobre experiências passadas que desmontam o argumento segundo o qual hidrelétricas seriam uma ameaça a populações indígenas”.
Eles se atem à experiência de Balbina como “exemplo documentado” da ação da
Eletronorte em beneficio do povo indígena atingido pelo empreendimento
energético implantado.
Em resposta vou ater-me também à questão Waimiri-Atroari, povo com quem
convivi com a família durante um ano e meio e venho acompanhando desde os anos
60 pelo noticiário e desde 1980 diretamente morando em seu território
tradicional.
Em primeiro lugar alguns esclarecimentos para os articulistas:
1. O povo
indígena Waimiri-Atroari não habitava “parte da área do reservatório da hidrelétrica
de Balbina”, mas toda a área do reservatório.
2. A
primeira providência do programa Waimiri-Atroari-PWA, da Eletronorte foi a
transferência das duas aldeias Taquari e Topupuna, atingidas pelo lago e não a
“demarcação da terra indígena”.
3. Omitem
os dados do levantamento da Universidade de Brasília, de 1983, quando o povo
W-A chegou ao seu número mais baixo, 332. Quando o Programa foi criado já
estavam em franco crescimento, como prova o número dos 374.
4. A interferência
da FUNAI e dos empresários do setor energético e mineral interrompeu um
programa abrangente cuidadosamente elaborado por um Grupo de Trabalho-GT
constituído pelo primeiro presidente da Funai após os 20 anos de Ditadura.
“Uma análise serena inclui um olhar sobre
experiências passadas que desmontam o argumento segundo o qual hidrelétricas seriam
uma ameaça a populações indígenas.” Vou mostrar que a verdade se encontra
colocando esta frase do artigo de “Valor Economico” ao contrário.
Um olhar
sobre a experiência passada do povo indígena Waimiri-Atroari, demonstra como
são prejudiciais as hidrelétricas na Amazônia para os povos indígenas e
populações não indígenas.
Os trabalhos de Balbina iniciaram
nos anos 60 sob a direção da Empresa Eletronorte e perpassaram
os anos 70 e não apenas os 80, como, por astúcia, os autores do artigo em Valor
Econômico-VE escreve.
Este projeto energético teve ativa
participação no genocídio do povo Waimiri-Atroari. Quando começaram os estudos
sobre as possibilidades da construção de Balbina, em 1968, a população do povo
Waimiri-Atroari era estimada em 3.000 pessoas, (vejam Calleri 1968 e FUNAI
1972).
Havia então pelo menos 8 aldeias na área do reservatório de
Balbina, 6 delas citadas em documento da FUNAI de 1972:
as malocas “dos capitães Canori, Coroinha, Abonari, Tomaz, Manoel e Pedro e
outras aldeias arredias”. No alto Abonari havia duas aldeias, Taquari e
Topupuná, cuja existência a Eletronorte ainda negava em meados dos anos 80.
Por volta de
1973 começou uma pressão contra o livre trânsito entre as aldeias do Alto e do
Baixo Abonari e do Uatumã (área do reservatório). Denúncias da época falam até de
grade colocada pelos militares sob a ponte do Abonari, na BR-174, impedindo a
passagem dos índios em suas canoas. É evidente que se tratava de forçar as
aldeias a abandonarem o seu habitat da área do lago. Como os índios teimaram em
desocupar esta e outras áreas, durante o ano de 1974, sumiram aldeias em todo o
território Waimiri-Atroari. Segundo os índios Atroari da margem direita do
Alalaú nos informaram, as aldeias foram bombardeadas por produto “igual pó”
jogado “kawune=do alto”. Entre elas sumiram 9 aldeias na Região da mina do
Pitinga, onde se instalou a mineração Taboca e as 6 aldeias supracitadas do
Baixo Abonari, área do lago de Balbina.
Quando
os índios do Norte contavam as cenas de violência sofridas por eles na região do
Alalaú, durante a travessia da Br-174, incluindo bombardeios aéreos, frequentes
vezes, concluíam dizendo que a violência sofrida pelos irmãos do Axia (Ig. Abonari)
foi ainda pior. Citavam, nominalmente, parentes casados com Waimiri, mortos lá.
“Foi avião que matou o pessoal do Axia” – concluíam. “Lá o massacre aconteceu
no final da festa, quando os índios ainda não se haviam dispersado.” “No
Camanaú desceram de helicóptero e mataram muita gente com espingarda. Agora tem
pouca gente”. Tenho certeza que os dirigentes da Eletronorte da época e o atual
coordenador do PWA da empresa Eletrobrás, sabem muito mais do que eu sobre a
violência sofrida então pelos Waimiri-Atroari durante os anos 70, para “limpar”
a área do futuro lago. Cadê a “documentação e registro da memória dos Waimiri-Atroari”, da
Eletronorte, do PWA e alardeado pelo VE.? Cadê o registro dos Waimiri-Atroari,
mortos no Massacre do Alalaú II, em novembro de 1974, onde morreram
funcionários da FUNAI, cujos cadáveres foram recolhidos pelo hoje funcionário
da Eletrobrás, José Porfirio de Carvalho, há quase 30 anos coordenador do PWA. Autor
do livro: “Waimiri-Atroari, a Historia que ainda não foi contada”, Carvalho
conta o massacre da expedição do Pe. Calleri e dos funcionários da FUNAI,
mortos pelos Waimiri-Atroari, mas não cita um nome de índio morto ou sumido
pelos invasores: os militares, a FUNAI, Mineradora Paranapanema e Eletronorte.
Das aldeias
do Baixo Abonari e do Uatumã, não restou uma só. Restaram duas no Alto Abonari,
negadas pela Eletronorte, até que por pressão internacional, foi forçada em
1987 a reconhece-las. E a primeira ação do Programa Waimiri-Atroari-PWA foi a transferência,
às pressas, dessas duas aldeias,(e não foi a demarcação da reserva, “(primeira providência
do programa)”,
como mentem astutamente, os autores do artigo do VE. Uma ação fora da lei,
porque até hoje não foram indenizados como manda a Carta Magna e a OIT.
Esta interferência
do Estado através do Exército e da FUNAI em função dos interesses empresariais
(Balbina e mineração) levou o povo Waimiri-Atroari à ruina, ao caos. À uma depopulação
drástica. Em apenas 10 anos dos 3.000 em 1972, restaram apenas 332 em 1983.
Na virada da Ditadura
um conhecedor da situação Waimiri-Atroari, Ezequias Heringer, foi chamado pelo
presidente da FUNAI, onde ocupou um cargo importante. De imediato propôs iniciar
mudanças profundas na política do órgão. E começou pela situação aflitiva dos Waimiri-Atroari.
Criou um Grupo de Estudos e Trabalho-GET, integrado por várias entidades e
experts na questão para fazerem um levantamento da situação e proporem um novo
programa de atividades. Sem preconceitos, além das pessoas da FUNAI, incluiu no
GET índios Waimiri-Atroari, professores de universidade, integrantes da
Operação Anchieta-OPAN e do CIMI. Após meio ano de atividades na área, em
reunião realizada na aldeia Yawará, o GET apresentou uma proposta abrangente. E
os índios, por sua vez, apresentaram a sua urgência maior: um programa de
alfabetização. Ate então a FUNAI em seus quase 20 anos de presença não tinha
nenhum plano neste sentido. Pior, não conseguiu reunir um vocabulário mínimo da
língua desse povo. Seus chefes eram tratados por apelidos dados pelos funcionários.
Sequer a autodenominação do povo era conhecida. A proposta do GET incluía além
da alfabetização, acompanhamento na saúde, na economia, com pesquisa
antropológica, linguística e deter os interesses que já haviam iniciado o saque
do território indígena. O trabalho começou imediatamente, iniciando pela solicitação
dos índios: a alfabetização que se valeu do método Paulo Freire, mundialmente
reconhecido.
Houve desde o inicio um
rigoroso acompanhamento de especialistas da FUNAI na área que acabaram por
recomendar a extensão do trabalho da Aldeia Yawará a todo o território
Waimiri-Atroari. Mas, sem demora, os empresários, já empenhados no saque dos
recursos da reserva, e o recém-empossado Presidente da Funai, Romero Jucá,
conhecido pelego das mineradoras, não aguentaram a mudança. Covardemente expulsaram
todos os membros do GET atuantes na área e transferiram ao arrepio da lei, a
política indigenista dos Waimiri-Atroari ao comando da empresa Eletronorte.
Todo o programa elaborado e em execução pelo GET, foi desmontado.
Ficou evidente que o
investimento na construção da BR-174 e o genocídio dos índios Waimiri-Atroari
visava o saque das riquezas naturais da região e não o beneficio do povo
amazonense e local. O objetivo era a instalação de Balbina e o saque do
Minério. Por iniciativa do Banco Mundial, foram transferidos recursos nunca
vistos em qualquer área indígena do país, recursos que servem para manter os
Waimiri-Atroari à margem do movimento indígena nacional e jogar areia nos olhos
dos índios e da sociedade para manter ocultos os crimes do passado, isolando o
povo Waimiri-Atroari das pessoas e entidades que pudessem animá-los a exigir os
seus direitos frente aos saqueadores de suas riquezas e revelar a sua historia
sob novos olhos e não sob a dos seus assassinos. Esta é a razão por que Valor
Econômico não quer a presença de entidades que criticam os projetos energéticos.
Mediante imposição dos
financiadores do projeto,
o grande volume de recursos do Banco Mundial, o povo Waimiri-Atroari tem hoje
uma estrutura própria e vive à margem do movimento indígena nacional e do
restante da sociedade. Assim vivem impedidos de contar o genocídio que o seu
povo sofreu durante a construção da BR-174, Balbina e a instalação da Mineração
Taboca. Desde 1981 o minério mais cobiçado do mundo desfila pela BR-174, sem
controle algum da SEFAZ.
Não seria dali que sai
o suborno que paga reportagens tendenciosas e mentirosas, como esta do Instituto Acende
Brasil no V. Econômico?
Sem nenhuma
alusão ou critica ao seu programa, alardeia o fato do crescimento demográfico
da população Waimiri-Atroari, como grande feito e resultado da politica
empresarial, procurando esconder outros grandes problemas que vem impondo ao
povo Waimiri-Atroari, como a doutrinação ou catequese econômica mediante a qual
a cultura deste povo está se transformando paulatinamente em mercadoria,
vendida em lojas, sob o controle da Empresa e não dos índios, nas cidades circunvizinhas,
Manaus, Presidente Figueiredo e Novo Airão.
Quando propala
o aumento populacional como resultado de iniciativas do PWA, esquece de referir
que esta recuperação, já estava em curso quando o PWA iniciou e com um índice
anual superior ao que se verificou durante a politica empresarial. Como prova
pesquisa do professor Marcio Silva da USP.
Há que se
referir ainda que o povo Waimiri-Atroari, talvez exatamente devido ao seu
crescimento populacional recente e à morte violenta de suas principais lideranças
durante o processo de instalação empresarial e da BR-174, enfrenta hoje sérios
problemas de consaguinidade ou genéticos, que exigiriam mais do que qualquer
outro povo, a presença de especialistas como previa o programa do GET, alijado
da área pelos dirigentes do PWA da Eletronorte.
Para uma
empresa acostumada a resolver tudo de cima para baixo, tudo parece muito
simples quando se tem milhões de dólares para gastar. De fato, o primeiro
problema que estes empresários resolveram com o dinheiro, foi isolar os
Waimiri-Atroari do movimento indígena nacional e afastar as “indesejáveis” ONGs.
Após a retirada dos membros do GET, nenhuma revelação sobre sua historia
recente aconteceu. Todo o professor, funcionário ou jornalista que ouse se
aproximar desse povo com a criatividade que sua profissão exige esbarra com os
dirigentes do PWA. Assim o povo WA vive hoje uma situação de isolamento. Isolamento
que chega ao ridículo. Na semana passada o meu filho Luiz, passando pela Reserva
na BR-174, encontrou dois Waimiri-Atroari na saída da reserva, no Jundiá. Um
deles dizia-se funcionário do PWA. Ofereceu
um exemplar do livro: A DITADURA MILITAR E O GENOCIDIO DO POVO WAIMIRI-ATROARI,
de autoria do Comitê pela Memoria, Verdade e Justiça do Amazonas, cujo primeiro
capitulo é fruto da primeira experiência de alfabetização vivida por eles. Embora
ambos se mostrassem muito interessados no livro disseram que não podiam
recebe-lo porque os dirigentes do PWA não o permitiam.
Com receio de
que os Waimiri-Atroari se conscientizassem e que a sociedade brasileira tome
conhecimento do que aconteceu a esse povo durante o planejamento e construção
de Balbina, da BR-174 e da instalação da Mineração Taboca, os responsáveis por
estes empreendimentos até hoje fazem questão de “cuidar” desses índios,
mantendo-os afastados de entidades e organizações que possam conscientizá-los
sobre os seus direitos constitucionais quanto à exploração de energia e
minérios no município e na reserva indígena. A ânsia desses empresários de se
afirmarem como os únicos a “cuidar” bem desse povo, mantendo até a FUNAI
afastada, visa evitar que a sociedade tenha acesso à História dos
Waimiri-Atroari, onde houve participação direta de suas empresas nos crimes de
ontem e de hoje.
Toda a vez que o Governo cria um grande
projeto na Amazônia em terras indígenas, o índio é visto como “empecilho” e
como tal, afastado do caminho. E a FUNAI sempre colaborou nesta ação do
Governo. Da BR-174, Mineração Taboca e hidrelétrica de Balbina em terras
Waimiri-Atroari, aos tempos de Belo Monte em terras Kayapó, e hoje das
tentativas de construção de mais um desses Monumentos a Insanidade Humana, em
São Luiz do Tapajós, a atitude dos empresários não mudou e jamais mudará.
Casa da Cultura do Urubuí/Amazonas, 20
de setembro de 2016,
Egydio Schwade
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