Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase
Sociólogo, diretor do Ibase
Consumado o duro golpe, o jeito é olhar para frente para não sucumbir. O que menos cabe neste momento é temer o governo. Ele é, por definição, um presidente biônico, com uma agenda sem a legitimidade do voto. Por isto, estamos diante de um governo que, com propostas e atos, mais que tudo evidencia a crise do nosso processo de democratização. Ele aponta para a velha ordem antidemocrática do domínio pelos “donos”, na lei ou na marra, e o progresso baseado na exploração e exclusão social, com a sistemática destruição dos territórios e recursos naturais. Esbarramos na resiliência das nossas estruturas sociais retrógradas, nada democráticas, onde o privilégio é confundido com direito de cidadania. Cabe reinventar-nos como sujeitos cidadãos e cidadãs, pôr as mãos à obra na grande tarefa de refazer a democracia.
Da atitude de temer não precisamos, mas temos que nos preparar para enfrentar os muitos estragos que estão a caminho. Trata-se de um governo que veio para barrar um contraditório processo político, ainda incipiente, de emancipação social da grande maioria até aqui condenada à miséria e exclusão. Faltaram reformas estruturantes de um novo Brasil. Uma verdade precisa ser dita aqui: quando tivemos oportunidade com os governos do PT, deixamos de fazer transformações fundamentais em termos distributivos da riqueza – reforma agrária, reforma urbana, reforma tributária etc. -, que poderiam ter mudado as condições históricas essenciais para o avanço virtuoso da democracia. Agora vamos penar por tais erros de estratégia do “lulismo” de reformismo fraco, como bem definiu André Singer.
O que passou, passou. O importante é olhar para frente, desde aqui e agora. A primeira e mais urgente tarefa é construir trincheiras de resistência para barrar o desmanche, conquistas de direitos constitucionais agora postas em questão. No nosso Congresso Nacional, onde se sobressaem federações de interesses particulares e não a diversidade do que somos como cidadania, tudo pode acontecer, até o nada! É o Congresso mais ilegítimo e mais corrompido de todo o processo de redemocratização recente. Mas ele tem o poder legal, até para cassar Dilma e não condenar o Cunha, como alguns sinais apontam.
Trincheiras de cidadania tem sentido quando a gente acredita ser possível mudar. Uma tarefa inadiável é voltar a sonhar com outro Brasil, com outra sociedade, com outro mundo. O governo Temer é uma espécie de gerentão a serviço da globalização neoliberal, das grandes corporações econômicas e financeiras, mais rentistas do que produtivistas que, aqui entre nós e no mundo todo, dominam. Cabe a nós mostrar o quanto este governo é controlado por interesses nada brasileiros, em última análise contra uma sociedade de bem consigo mesma e sua base natural. Para isto precisamos sonhar os mais belos sonhos, analisar e argumentar, disputar projetos e agendas. Enfim, precisamos mostrar outro modo de viver e agir, entre nós mesmos e no mundo.
A obra de reconstrução da democracia é, literalmente, de “tijolo com tijolo”. Precisamos reconhecer que os grandes projetos estão em crise, os sujeitos coletivos portadores estão em crise, os espaços de disputa política democrática sofrem grandes transformações (com as novas TICs) e trazem novos desafios como as redes sociais, os partidos e todas as formas de representação da política estão em crise e precisam se reinventar. Diante de tal quadro, o risco é de paralisia na espera de algo que pode nunca vir. Por mais dura que seja a conjuntura, a partir de nossa trincheiras cidadãs, avaliemos todas as brechas do agir, todos os espaços.
Em termos mais claros, precisamos levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Sem desanimar. Vai ser difícil, mas não impossível. Juntemos as capacidades e energias para que o impossível torne-se possível. Os tempos difíceis que temos pela frente não são apenas de destruição, pois podem representar oportunidades de rupturas e de busca de novos caminhos.
O mais importante é ter presente que uma tarefa inadiável é construir um novo imaginário inspirador, mobilizador e agregador, transformando grupos concretos em sujeitos de um projeto comum. Na minha visão, isto será facilitado se pusermos os bens comuns e os direitos de cidadania no centro de tudo, como referência sine qua non, sempre nos guiando pelos grandes princípios e valores éticos de democracia substantiva e radical: a liberdade, a igualdade, a diversidade, a solidariedade e a participação. Trata-se de uma revolução cultural, uma elaboração coletiva de projeto mobilizador sobre um Brasil voltado ao bem viver e à sustentabilidade socioambiental, sem exclusão de ninguém. Bens comuns e direitos de cidadania ou são para todas e todos ou simplesmente não existem. Por isto, colocá-los no centro da nossa tarefa de reconstrução democrática de uma sociedade do bem viver implica em nos libertar da lógica perversa imposta pelo domínio do mercado e da acumulação privada de riquezas, que destroem e concentram. Mais cuidado, mais convivência, mais compartilhamento nos territórios em que vivemos e menos busca desenfreada do sucesso individual do ter mais e mais bens de consumo.
Para ser inspirador e mobilizador, o projeto de reconstrução precisa colar na densa diversidade do que somos, nossas identidades coletivas, sonhos e desejos, nossas realizações. A força criativa capaz de dar um novo dinamismo para a democracia pode brotar do modo como nos organizamos nos territórios de cidadania, nossos bens comuns imediatos de vida, de Sul a Norte, de Oeste a Leste, da base enfim. As emergências e insurgências da cidadania nos territórios concretos conectadas podem ganhar força de onda irresistível, definindo caminhos e rumos da ação democrática transformadora. No processo podemos ganhar organização, capacidade de participação e incidência política e conquistar novos direitos e novas políticas.
São apenas elementos que aponto aqui, pois um projeto mesmo só poderá ser uma elaboração coletiva. O fato é que é urgente nos erguermos, olharmos para frente e traçar um caminho. Estamos, sim, feridos, desarvorados e divididos como forças políticas democráticas de esquerda radical. Temos que superar o quanto antes tal quadro difícil. As eleições municipais nesta hora são uma confusão a mais, da qual pouco poderemos tirar de estratégico para um processo mais longo de reconstrução. Caminhos se fazem ao andar. As possibilidades dependem de circunstâncias que não controlamos. Mas nossa vontade política determinada e ousada, para extrair as possibilidades das ocasiões que surgem, a abertura do nosso caminho no rumo de um nova onda democratizadora poderá significar longos anos de retrocessos políticos em nosso país.
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