sexta-feira, 30 de agosto de 2019

INCÊNDIOS NA AMAZÔNIA: "A GRILAGEM DE TERRAS É O CORAÇÃO DO PROBLEMA"




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As ima­gens e mapas dos focos de in­cêndio que do­mi­naram a Amazônia a partir do dia 10 de agosto e pro­du­ziram a apo­ca­líp­tica imagem do céu es­curo em pleno ho­rário de al­moço a mi­lhares de quilô­me­tros já são parte da his­tória bra­si­leira. Pro­testos se se­guiram em ca­pi­tais na­ci­o­nais e in­ter­na­ci­o­nais e o cons­tran­gi­mento ao go­verno segue enorme. No en­tanto, se­gundo o geó­grafo Ari­o­valdo Um­be­lino, en­tre­vis­tado pelo Cor­reio da Ci­da­dania, nin­guém, nem mesmo os am­bi­en­ta­listas, toca nas ra­zões ge­ra­doras do de­sastre.

“A res­pon­sa­bi­li­dade do atual go­verno é a de pra­ti­ca­mente zerar a fis­ca­li­zação. Os ór­gãos que de­ve­riam fazê-la estão todos re­du­zidos às pró­prias sedes, aos pró­prios lo­cais de tra­balho. A fis­ca­li­zação não vai a campo. Não de­vemos nos as­sustar. É que agora Bol­so­naro tomou a de­cisão de per­mitir a gri­lagem, o des­ma­ta­mento e tudo. Claro que de­vemos nos pre­o­cupar com os in­cên­dios, mas é pre­ciso re­forçar: o que está no co­ração de tudo é o pro­cesso de gri­lagem de terras”.

Es­tu­dioso de longa data dos pro­cessos de ocu­pação ter­ri­to­rial e dis­tri­buição de terras no país, Um­be­lino é en­fá­tico ao longo de todo a en­tre­vista em dizer que tudo se deve ao des­con­trole do acesso a terra. In­cen­ti­vados pelos go­vernos ao longo dos anos, a ocu­pação ilegal de terras e o des­ma­ta­mento com fins agro­pe­cuá­rios são as reais ex­pli­ca­ções dos in­cên­dios, ou seja, o mo­delo de de­sen­vol­vi­mento econô­mico quase unâ­nime entre todas as grandes forças po­lí­ticas.

“A questão am­bi­ental no Brasil não leva em conta a pro­pri­e­dade da terra; não se fis­ca­liza, não se ve­ri­fica se as do­cu­men­ta­ções estão certas ou er­radas. Já tem dois es­tados que fi­zeram este le­van­ta­mento. E não en­con­traram nada, não há tí­tulos, mas a ocu­pação segue, o des­ma­ta­mento au­mentou, as grandes em­presas do su­deste e centro-oeste se­guem com­prando boi criado em terra gri­lada”.

A en­tre­vista com­pleta com Ari­o­valdo Um­be­lino pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Que sín­tese você faz dos in­cên­dios da Amazônia que cho­caram o Brasil e o mundo?

Ari­o­valdo Um­be­lino: Os in­cên­dios na Amazônia têm a ver com pro­ce­di­mentos que os em­pre­sá­rios bra­si­leiros adotam, com in­ter­fe­rência di­reta no pro­cesso de ocu­pação da Amazônia. Como o pro­cesso se dá por meio de gri­lagem, é ne­ces­sário abrir pastos e der­rubar ár­vores pra com­pletar a ocu­pação.
Por­tanto, o que vemos é apenas um au­mento do des­ma­ta­mento de sempre, porque o Es­tado bra­si­leiro não fis­ca­liza e não tem esse ob­je­tivo, per­mi­tindo que o pro­cesso de gri­lagem con­tinue. Não me as­susta o au­mento dos focos de in­cên­dios, porque todo ano se re­pete. Nos meses de junho, julho, agosto e se­tembro temos, his­to­ri­ca­mente, o au­mento dos focos de in­cêndio.

Neste ano au­mentou, mas já acon­tecia nos anos an­te­ri­ores, pelo mo­tivo de não haver fis­ca­li­zação. Pior: não há um pro­cesso ri­go­roso de acesso a terra, que se faz via gri­lagem. A maior parte das terras da Amazônia está em mãos de pes­soas que não têm do­cu­mento ne­nhum a provar a pro­pri­e­dade.

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual o grau de res­pon­sa­bi­li­dade do atual go­verno? O que pensa das re­a­ções de con­tenção das chamas, de­fi­nidas pelo pre­si­dente Jair Bol­so­naro?

Ari­o­valdo Um­be­lino: A res­pon­sa­bi­li­dade do atual go­verno é a de pra­ti­ca­mente zerar a fis­ca­li­zação. Não existe fis­ca­li­zação hoje. Os ór­gãos que de­ve­riam fazê-la estão todos re­du­zidos às pró­prias sedes, aos pró­prios lo­cais de tra­balho. A fis­ca­li­zação não vai a campo.

Não de­vemos nos as­sustar. É que agora Bol­so­naro tomou a de­cisão de per­mitir a gri­lagem, o des­ma­ta­mento e tudo. O que resta às pes­soas de bom senso deste país? Pedir o im­pe­a­ch­ment do pre­si­dente da Re­pú­blica, não há outro ca­minho.

Em Al­ta­mira, tem um fiscal. Vai fazer o que? Nada. Bol­so­naro deixa rolar um pro­cesso de di­mi­nuição de fun­ci­o­ná­rios. Reuniu sol­dados da força bra­si­leira pra com­bater o in­cêndio, mas não tem ob­je­tivo de ve­ri­ficar a fundo as ra­zões do que acon­tece. No má­ximo apaga o in­cêndio.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que co­menta da atu­ação, neste caso e na soma de sua gestão, do mi­nistro Ri­cardo Salles? A que grau de­veria chegar sua res­pon­sa­bi­li­zação?

Ari­o­valdo Um­be­lino: Ele pode ser res­pon­sa­bi­li­zado pelos in­cên­dios deste ano. Mas pelos do ano pas­sado, não. A questão prin­cipal re­side no fato de que o atual go­verno per­mite; não tem bases de fis­ca­li­zação, não tem ne­nhuma po­lí­tica para a Amazônia, ex­ceto a ocu­pação por meio de gri­lagem.
Um dos focos con­cen­trados de in­cêndio é perto do Parque Na­ci­onal do Ja­manxim. É uma área toda gri­lada, do­mi­nada por fa­zen­deiros que se dizem pro­pri­e­tá­rios, pro­va­vel­mente vo­taram em Bol­so­naro e querem con­ti­nuar com sua po­lí­tica de gri­lagem de terras.

Claro que de­vemos nos pre­o­cupar com os in­cên­dios, mas é pre­ciso re­forçar: o que está no co­ração de tudo é o pro­cesso de gri­lagem de terras. O fato novo é que uma parte da fu­maça veio parar em São Paulo, a tarde ficou es­cura, isso nunca acon­teceu. As pes­soas que re­sidem em São Paulo estão vendo suas vidas afe­tadas pelas quei­madas. Mas quei­mada na Amazônia tem todo ano, em 2019 apenas au­mentou. Porque a gri­lagem de terras corre solta. É a gri­lagem de terras que tem de ser com­ba­tida e isso não se faz no Brasil.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa das re­a­ções in­ter­na­ci­o­nais em face da fa­mosa ideia do in­te­resse es­tran­geiro sobre o ter­ri­tório amazô­nico?

Ari­o­valdo Um­be­lino: Con­versa pra boi dormir. A França, que se ma­ni­festou mais for­te­mente, tem uma colônia ali, a Guiana Fran­cesa está ali do lado. Por isso o país se ma­ni­festou com mais força. E foi por meio do seu pre­si­dente, algo sem mai­ores con­sequên­cias. A im­prensa fica em cima do fato do dia. Mas a questão é o fato de abran­gência: gri­lagem de terras. Te­remos in­cên­dios no ano que vem, porque a maior parte das terras está gri­lada.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais pro­vi­dên­cias devem ser to­madas daqui em di­ante? Qual o tipo de de­bate o se­nhor gos­taria de ver ga­nhar corpo?

Ari­o­valdo Um­be­lino: É pre­ciso medir cla­ra­mente a po­sição do go­verno atual. Acre­dito que o atual go­verno tem por ob­je­tivo in­cre­mentar a gri­lagem. Tira os fun­ci­o­ná­rios e deixa o pro­cesso se in­ten­si­ficar. Todo mundo sabe que é crime, mas nin­guém toma pro­vi­dên­cias para pegar os cul­pados. Quem grila as terras? Os grandes em­pre­sá­rios, quem têm di­nheiro. Este é o prin­cipal a ser dito.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em en­tre­vista que o se­nhor deu ao Cor­reio em 2009, falou que “o fato é que o go­verno atual adotou duas po­lí­ticas claras: a pri­meira é o apoio in­te­gral ao agro­ne­gócio. A se­gunda é re­mover toda pos­si­bi­li­dade his­tó­rica que possa frear o apoio ao agro­ne­gócio. A re­forma agrária foi subs­ti­tuída pela con­trar­re­forma-agrária e a po­lí­tica am­bi­ental é subs­ti­tuída gra­da­ti­va­mente pela po­lí­tica an­ti­am­bi­ental. O Brasil faz um dis­curso no ex­te­rior, mas aqui a prá­tica é outra”. Qual o lastro re­la­tivo a go­vernos pas­sados em re­lação a esses in­cên­dios?

Ari­o­valdo Um­be­lino: É isso. Man­tenho tudo que disse há dez anos. Apenas des­taco a questão da gri­lagem de terras. O pro­blema todo é a questão da pro­pri­e­dade. Por exemplo, fiz um tra­balho para o Mi­nis­tério da Jus­tiça sobre gri­lagem, em São Félix do Xingu. Fui a campo, le­vantei tudo. Não tem uma única pro­pri­e­dade com fun­da­mento. É tudo gri­lado, tudo que está re­gis­trado no car­tório da ci­dade é grilo. Como vamos co­meçar a acabar com essa his­tória? Vão gri­lando, gri­lando... Há um grupo que so­zinho detém 700 mil hec­tares, e aí? Não é o pos­seiro, é o grande quem faz isso.

O úl­timo re­cen­se­a­mento do INCRA, em 2014, fez um le­van­ta­mento da es­tru­tura fun­diária. Chegou-se à con­clusão de que temos 5,765,000 imó­veis. Destes, 4.058.000 são imó­veis de pes­soas que de­cla­raram ser pro­pri­e­tá­rias, ainda que não tenha ocor­rido in­ves­ti­gação ne­nhuma pra aferir; 1.700.000 de­cla­raram ao INCRA que não têm tí­tulo ne­nhum. Tais “pro­pri­e­tá­rios” te­riam 110 mi­lhões de hec­tares. Destes, 42 mi­lhões de hec­tares são grandes pro­pri­e­dades; 22 mi­lhões são mé­dias pro­pri­e­dades. Uma parte é de pe­queno pro­pri­e­tário e mi­ni­fun­dista. Estes têm di­reito à pro­pri­e­dade e à re­gu­la­ri­zação. São pos­seiros. Mas con­trolam um total de 40 mi­lhões de hec­tares. Os ou­tros são todos gri­leiros pro­fis­si­o­nais, não tem outra ex­pli­cação. Eles de­claram ao INCRA que são gri­leiros. E o go­verno não faz nada.
Dos que se de­claram pro­pri­e­tá­rios, 58 mil dizem ter pro­pri­e­dade pro­du­tiva; 49 mil dizem ter im­pro­du­tivas. Ao todo são 111 mi­lhões de hec­tares, dos quais 68 mi­lhões im­pro­du­tivos. Logo che­ga­remos a 200 mi­lhões de hec­tares gri­lados. Esse é o nó.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quanto ao Có­digo Flo­restal, de 2012, você disse em 2010 que era ba­seada na falsa di­co­tomia entre pre­ser­vação e de­sen­vol­vi­mento? Há uma re­lação di­reta entre este novo có­digo e o que es­tamos vendo agora?

Ari­o­valdo Um­be­lino: Hoje temos duas re­a­li­dades: uma é a da le­gis­lação am­bi­ental, que acabou caindo na fei­tura do CAR (Ca­dastro Am­bi­ental Rural). Uma parte dos pro­pri­e­tá­rios fez o ca­dastro, que não tem o ob­je­tivo de medir a questão da dis­tri­buição de terras no Brasil. É só um ca­dastro de con­trole am­bi­ental. Estão tra­zendo o CAR como o sis­tema ofi­cial de dis­tri­buição de terras do país, o que nem é seu ob­je­tivo. Faz-se a de­cla­ração apenas com fins de con­trole am­bi­ental. O outro pro­blema é apre­sentar dados que provam a pro­pri­e­dade da terra. Quem tem tais dados é o INCRA.

No en­tanto, o ca­dastro é feito da se­guinte forma: quem se diz pro­pri­e­tário faz a de­cla­ração e assim che­gamos aos dados sis­te­ma­ti­zados pelo INCRA que aca­bamos de men­ci­onar. Pro­pri­e­dade de terras só pode ser vista ofi­ci­al­mente via INCRA, mas pode ser con­fe­rida também nos car­tó­rios. E os car­tó­rios da Amazônia estão pas­sando por um pente-fino, a fim de ver se as es­cri­turas são de fato ver­da­deiras.

Por exemplo: o es­tado do Ama­zonas pegou os do­cu­mentos dis­po­ní­veis para pro­pri­e­dades de 3000 hec­tares para cima. E já se sabe que 96% das terras são de­vo­lutas, isto é, de gri­leiros que se dizem donos. O Pará também ini­ciou o pro­cesso. O es­tado tem um total de 486.194.000 hec­tares re­gis­trados nos car­tó­rios. Como? É me­tade do Brasil! É grilo. É esse o ponto. O es­tado tem quase quatro vezes mais terra re­gis­trada do que seu ter­ri­tório real. Os car­tó­rios têm feito a gri­lagem da terra no Brasil.
Para ter am­paro, a pro­pri­e­dade da terra pre­cisa de tí­tulo emi­tido pelo go­verno trans­fe­rido a par­ti­cu­lares. Para tal, há pre­ceitos cons­ti­tu­ci­o­nais que es­ti­pulam quanto se pode trans­mitir de terras, o que no caso é 2500 hec­tares. Entre 1967 e 1988, po­diam ser trans­mi­tidos 3000 hec­tares. De 1943 a 1967, 10 mil. A rigor, nin­guém po­deria pos­suir pro­pri­e­dades mai­ores que essas.

A maior pro­pri­e­dade do Brasil está em nome de Mo­acir Eloy Cro­cetta Ba­tista, que tem re­gis­trada no INCRA uma pro­pri­e­dade de 246 mil hec­tares, em Boca do Acre. Como o cara tem 246 mil hec­tares?! A se­gunda maior é per­ten­cente à Pa­ra­nacre, que tem 195.309, em Ta­rauacá, no Acre também.
É pre­ciso que o go­verno tome a ini­ci­a­tiva de con­trolar o pro­cesso de ocu­pação da Amazônia. Os gri­leiros vão na frente, eles que metem fogo. A tá­tica de des­ma­ta­mento hoje é: pri­meiro tiram-se as “ma­deiras de lei”, isto é, os cortes per­mi­tidos; fazem os cortes ne­ces­sá­rios e, de­pois, metem fogo em todo o resto. Sempre se fez isso na Amazônia. Mas claro que o atual pre­si­dente per­mite que a gri­lagem con­tinue. Se per­mite, de­vemos pedir seu im­pe­a­ch­ment.

Cor­reio da Ci­da­dania: Por fim, como en­xerga todo o mo­mento po­lí­tico, ins­ti­tu­ci­onal e so­cial que es­tamos vi­vendo? Acre­dita que a questão am­bi­ental possa ser es­topim de re­versão do que es­tamos vi­vendo agora?

Ari­o­valdo Um­be­lino: O pre­si­dente é eleito, não vamos es­quecer. Ele é mi­litar de origem, o vice também, mas estão ambos na re­serva. Foram eleitos. Não estou pondo em dis­cussão a eleição. Eles são fruto de uma eleição e têm o di­reito de go­vernar por quatro anos. Este é o prin­cípio. O fato de serem mi­li­tares não dá a eles con­dição de falar em nome das forças ar­madas, que são outra ins­ti­tuição com seus pró­prios porta-vozes.

Pre­ci­samos tratar do prin­cipal: o pro­cesso de gri­lagem de terras. Os in­cên­dios são o re­sul­tado disso. A questão am­bi­ental no Brasil não leva em conta a pro­pri­e­dade da terra; não se fis­ca­liza, não se ve­ri­fica se as do­cu­men­ta­ções estão certas ou er­radas. Já tem dois es­tados que fi­zeram este le­van­ta­mento. E não en­con­traram nada, não há tí­tulos, mas a ocu­pação segue, o des­ma­ta­mento au­mentou, as grandes em­presas do su­deste e centro-oeste se­guem com­prando boi criado em terra gri­lada. A soja do MT também é pro­du­zida em terra gri­lada, assim como a do Ma­to­piba, toda ela em área gri­lada. A gri­lagem de terras é o grande pro­blema e está cada vez maior no Brasil.

Uma boa parte dos in­cên­dios é em Lá­brea, mu­ni­cípio do sul do Ama­zonas, área de ex­pansão agro­pe­cuária. E se olharmos a es­tru­tura fun­diária ve­remos que só tem grande pro­pri­e­dade. Como, se o go­verno não ti­tulou nada? O pro­blema é que a gri­lagem atingiu um nível tão grande que as pes­soas pa­raram de falar dela. De 2010 pra cá, os am­bi­en­ta­listas re­sol­veram parar de falar deste as­sunto. Ao fa­zerem isso, co­o­nestam o pro­cesso. Vê-se o pro­cesso e não se faz nada. A gri­lagem de terras no Brasil é o co­ração de toda esta dis­cussão.

http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13868-incendios-na-amazonia-a-grilagem-de-terras-e-o-coracao-do-problema
Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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