- Gabriel Brito, da Redação
- ORREIO DA CIDADANIA - 30/08/2019
As
imagens e mapas dos focos de incêndio que dominaram a Amazônia a
partir do dia 10 de agosto e produziram a apocalíptica imagem do
céu escuro em pleno horário de almoço a milhares de quilômetros já
são parte da história brasileira. Protestos se seguiram em
capitais nacionais e internacionais e o constrangimento ao
governo segue enorme. No entanto, segundo o geógrafo Ariovaldo
Umbelino, entrevistado pelo Correio da Cidadania, ninguém, nem
mesmo os ambientalistas, toca nas razões geradoras do desastre.
“A
responsabilidade do atual governo é a de praticamente zerar a
fiscalização. Os órgãos que deveriam fazê-la estão todos
reduzidos às próprias sedes, aos próprios locais de trabalho. A
fiscalização não vai a campo. Não devemos nos assustar. É que agora
Bolsonaro tomou a decisão de permitir a grilagem, o
desmatamento e tudo. Claro que devemos nos preocupar com os
incêndios, mas é preciso reforçar: o que está no coração de tudo é o
processo de grilagem de terras”.
Estudioso
de longa data dos processos de ocupação territorial e
distribuição de terras no país, Umbelino é enfático ao longo de
todo a entrevista em dizer que tudo se deve ao descontrole do acesso
a terra. Incentivados pelos governos ao longo dos anos, a ocupação
ilegal de terras e o desmatamento com fins agropecuários são as
reais explicações dos incêndios, ou seja, o modelo de
desenvolvimento econômico quase unânime entre todas as grandes
forças políticas.
“A questão ambiental no
Brasil não leva em conta a propriedade da terra; não se fiscaliza,
não se verifica se as documentações estão certas ou erradas. Já
tem dois estados que fizeram este levantamento. E não encontraram
nada, não há títulos, mas a ocupação segue, o desmatamento
aumentou, as grandes empresas do sudeste e centro-oeste seguem
comprando boi criado em terra grilada”.
A entrevista completa com Ariovaldo Umbelino pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Que síntese você faz dos incêndios da Amazônia que chocaram o Brasil e o mundo?
Ariovaldo Umbelino:
Os incêndios na Amazônia têm a ver com procedimentos que os
empresários brasileiros adotam, com interferência direta no
processo de ocupação da Amazônia. Como o processo se dá por meio de
grilagem, é necessário abrir pastos e derrubar árvores pra
completar a ocupação.
Portanto, o que vemos é
apenas um aumento do desmatamento de sempre, porque o Estado
brasileiro não fiscaliza e não tem esse objetivo, permitindo que
o processo de grilagem continue. Não me assusta o aumento dos
focos de incêndios, porque todo ano se repete. Nos meses de junho,
julho, agosto e setembro temos, historicamente, o aumento dos
focos de incêndio.
Neste ano aumentou, mas já
acontecia nos anos anteriores, pelo motivo de não haver
fiscalização. Pior: não há um processo rigoroso de acesso a terra,
que se faz via grilagem. A maior parte das terras da Amazônia está em
mãos de pessoas que não têm documento nenhum a provar a
propriedade.
Correio da Cidadania:
Qual o grau de responsabilidade do atual governo? O que pensa das
reações de contenção das chamas, definidas pelo presidente Jair
Bolsonaro?
Ariovaldo Umbelino:
A responsabilidade do atual governo é a de praticamente zerar a
fiscalização. Não existe fiscalização hoje. Os órgãos que
deveriam fazê-la estão todos reduzidos às próprias sedes, aos
próprios locais de trabalho. A fiscalização não vai a campo.
Não
devemos nos assustar. É que agora Bolsonaro tomou a decisão de
permitir a grilagem, o desmatamento e tudo. O que resta às pessoas
de bom senso deste país? Pedir o impeachment do presidente da
República, não há outro caminho.
Em
Altamira, tem um fiscal. Vai fazer o que? Nada. Bolsonaro deixa
rolar um processo de diminuição de funcionários. Reuniu soldados
da força brasileira pra combater o incêndio, mas não tem objetivo
de verificar a fundo as razões do que acontece. No máximo apaga o
incêndio.
Correio da Cidadania: O
que comenta da atuação, neste caso e na soma de sua gestão, do
ministro Ricardo Salles? A que grau deveria chegar sua
responsabilização?
Ariovaldo Umbelino:
Ele pode ser responsabilizado pelos incêndios deste ano. Mas
pelos do ano passado, não. A questão principal reside no fato de que o
atual governo permite; não tem bases de fiscalização, não tem
nenhuma política para a Amazônia, exceto a ocupação por meio de
grilagem.
Um dos focos concentrados de
incêndio é perto do Parque Nacional do Jamanxim. É uma área toda
grilada, dominada por fazendeiros que se dizem proprietários,
provavelmente votaram em Bolsonaro e querem continuar com sua
política de grilagem de terras.
Claro que
devemos nos preocupar com os incêndios, mas é preciso reforçar: o
que está no coração de tudo é o processo de grilagem de terras. O
fato novo é que uma parte da fumaça veio parar em São Paulo, a tarde
ficou escura, isso nunca aconteceu. As pessoas que residem em São
Paulo estão vendo suas vidas afetadas pelas queimadas. Mas queimada
na Amazônia tem todo ano, em 2019 apenas aumentou. Porque a grilagem
de terras corre solta. É a grilagem de terras que tem de ser
combatida e isso não se faz no Brasil.
Correio
da Cidadania: O que pensa das reações internacionais em face
da famosa ideia do interesse estrangeiro sobre o território
amazônico?
Ariovaldo Umbelino:
Conversa pra boi dormir. A França, que se manifestou mais
fortemente, tem uma colônia ali, a Guiana Francesa está ali do lado.
Por isso o país se manifestou com mais força. E foi por meio do seu
presidente, algo sem maiores consequências. A imprensa fica em
cima do fato do dia. Mas a questão é o fato de abrangência: grilagem
de terras. Teremos incêndios no ano que vem, porque a maior parte das
terras está grilada.
Correio da
Cidadania: Quais providências devem ser tomadas daqui em diante?
Qual o tipo de debate o senhor gostaria de ver ganhar corpo?
Ariovaldo Umbelino:
É preciso medir claramente a posição do governo atual. Acredito
que o atual governo tem por objetivo incrementar a grilagem. Tira
os funcionários e deixa o processo se intensificar. Todo mundo
sabe que é crime, mas ninguém toma providências para pegar os
culpados. Quem grila as terras? Os grandes empresários, quem têm
dinheiro. Este é o principal a ser dito.
Correio
da Cidadania: Em entrevista que o senhor deu ao Correio em 2009,
falou que “o fato é que o governo atual adotou duas políticas claras:
a primeira é o apoio integral ao agronegócio. A segunda é
remover toda possibilidade histórica que possa frear o apoio ao
agronegócio. A reforma agrária foi substituída pela
contrarreforma-agrária e a política ambiental é substituída
gradativamente pela política antiambiental. O Brasil faz um
discurso no exterior, mas aqui a prática é outra”. Qual o lastro
relativo a governos passados em relação a esses incêndios?
Ariovaldo Umbelino:
É isso. Mantenho tudo que disse há dez anos. Apenas destaco a questão
da grilagem de terras. O problema todo é a questão da propriedade.
Por exemplo, fiz um trabalho para o Ministério da Justiça sobre
grilagem, em São Félix do Xingu. Fui a campo, levantei tudo. Não tem
uma única propriedade com fundamento. É tudo grilado, tudo que
está registrado no cartório da cidade é grilo. Como vamos começar a
acabar com essa história? Vão grilando, grilando... Há um grupo que
sozinho detém 700 mil hectares, e aí? Não é o posseiro, é o grande
quem faz isso.
O último recenseamento do
INCRA, em 2014, fez um levantamento da estrutura fundiária.
Chegou-se à conclusão de que temos 5,765,000 imóveis. Destes,
4.058.000 são imóveis de pessoas que declararam ser
proprietárias, ainda que não tenha ocorrido investigação
nenhuma pra aferir; 1.700.000 declararam ao INCRA que não têm título
nenhum. Tais “proprietários” teriam 110 milhões de hectares.
Destes, 42 milhões de hectares são grandes propriedades; 22
milhões são médias propriedades. Uma parte é de pequeno
proprietário e minifundista. Estes têm direito à propriedade e
à regularização. São posseiros. Mas controlam um total de 40
milhões de hectares. Os outros são todos grileiros
profissionais, não tem outra explicação. Eles declaram ao INCRA
que são grileiros. E o governo não faz nada.
Dos
que se declaram proprietários, 58 mil dizem ter propriedade
produtiva; 49 mil dizem ter improdutivas. Ao todo são 111 milhões
de hectares, dos quais 68 milhões improdutivos. Logo chegaremos a
200 milhões de hectares grilados. Esse é o nó.
Correio
da Cidadania: Quanto ao Código Florestal, de 2012, você disse em
2010 que era baseada na falsa dicotomia entre preservação e
desenvolvimento? Há uma relação direta entre este novo código e o
que estamos vendo agora?
Ariovaldo Umbelino:
Hoje temos duas realidades: uma é a da legislação ambiental, que
acabou caindo na feitura do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Uma
parte dos proprietários fez o cadastro, que não tem o objetivo de
medir a questão da distribuição de terras no Brasil. É só um
cadastro de controle ambiental. Estão trazendo o CAR como o
sistema oficial de distribuição de terras do país, o que nem é seu
objetivo. Faz-se a declaração apenas com fins de controle
ambiental. O outro problema é apresentar dados que provam a
propriedade da terra. Quem tem tais dados é o INCRA.
No
entanto, o cadastro é feito da seguinte forma: quem se diz
proprietário faz a declaração e assim chegamos aos dados
sistematizados pelo INCRA que acabamos de mencionar.
Propriedade de terras só pode ser vista oficialmente via INCRA,
mas pode ser conferida também nos cartórios. E os cartórios da
Amazônia estão passando por um pente-fino, a fim de ver se as
escrituras são de fato verdadeiras.
Por
exemplo: o estado do Amazonas pegou os documentos disponíveis
para propriedades de 3000 hectares para cima. E já se sabe que 96%
das terras são devolutas, isto é, de grileiros que se dizem donos. O
Pará também iniciou o processo. O estado tem um total de 486.194.000
hectares registrados nos cartórios. Como? É metade do Brasil! É
grilo. É esse o ponto. O estado tem quase quatro vezes mais terra
registrada do que seu território real. Os cartórios têm feito a
grilagem da terra no Brasil.
Para ter amparo, a
propriedade da terra precisa de título emitido pelo governo
transferido a particulares. Para tal, há preceitos
constitucionais que estipulam quanto se pode transmitir de
terras, o que no caso é 2500 hectares. Entre 1967 e 1988, podiam ser
transmitidos 3000 hectares. De 1943 a 1967, 10 mil. A rigor, ninguém
poderia possuir propriedades maiores que essas.
A
maior propriedade do Brasil está em nome de Moacir Eloy Crocetta
Batista, que tem registrada no INCRA uma propriedade de 246 mil
hectares, em Boca do Acre. Como o cara tem 246 mil hectares?! A
segunda maior é pertencente à Paranacre, que tem 195.309, em
Tarauacá, no Acre também.
É preciso que o
governo tome a iniciativa de controlar o processo de ocupação da
Amazônia. Os grileiros vão na frente, eles que metem fogo. A tática de
desmatamento hoje é: primeiro tiram-se as “madeiras de lei”, isto
é, os cortes permitidos; fazem os cortes necessários e, depois,
metem fogo em todo o resto. Sempre se fez isso na Amazônia. Mas claro
que o atual presidente permite que a grilagem continue. Se
permite, devemos pedir seu impeachment.
Correio
da Cidadania: Por fim, como enxerga todo o momento político,
institucional e social que estamos vivendo? Acredita que a
questão ambiental possa ser estopim de reversão do que estamos
vivendo agora?
Ariovaldo Umbelino:
O presidente é eleito, não vamos esquecer. Ele é militar de origem,
o vice também, mas estão ambos na reserva. Foram eleitos. Não estou
pondo em discussão a eleição. Eles são fruto de uma eleição e têm o
direito de governar por quatro anos. Este é o princípio. O fato de
serem militares não dá a eles condição de falar em nome das forças
armadas, que são outra instituição com seus próprios porta-vozes.
Precisamos
tratar do principal: o processo de grilagem de terras. Os
incêndios são o resultado disso. A questão ambiental no Brasil não
leva em conta a propriedade da terra; não se fiscaliza, não se
verifica se as documentações estão certas ou erradas. Já tem dois
estados que fizeram este levantamento. E não encontraram nada,
não há títulos, mas a ocupação segue, o desmatamento aumentou, as
grandes empresas do sudeste e centro-oeste seguem comprando boi
criado em terra grilada. A soja do MT também é produzida em terra
grilada, assim como a do Matopiba, toda ela em área grilada. A
grilagem de terras é o grande problema e está cada vez maior no
Brasil.
Uma boa parte dos incêndios é em
Lábrea, município do sul do Amazonas, área de expansão
agropecuária. E se olharmos a estrutura fundiária veremos que só
tem grande propriedade. Como, se o governo não titulou nada? O
problema é que a grilagem atingiu um nível tão grande que as pessoas
pararam de falar dela. De 2010 pra cá, os ambientalistas
resolveram parar de falar deste assunto. Ao fazerem isso,
coonestam o processo. Vê-se o processo e não se faz nada. A
grilagem de terras no Brasil é o coração de toda esta discussão.
http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13868-incendios-na-amazonia-a-grilagem-de-terras-e-o-coracao-do-problema
Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.
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