POR ISSO, JUNTO COM TODO O APOIO POSSÍVEL ÀS SUAS LUTAS, CABE-NOS APRENDER COM ELES E MOBILIZAR-NOS PARA EVITAR QUE OUTROS DIREITOS DE TODO O POVO BRASILEIRO, COMO OS TRABALHISTAS, AMEAÇADOS DE MORTE PELO PROJETO DE LEI DA TERCEIRIZAÇÃO, SEJAM IMPOSTOS À NAÇÃO POR UMA MINORIA QUE SE ENCONTRA NO CONGRESSO NACIONAL COMO FRUTO DA CORRUPÇÃO ELEITORAL, DO DOMÍNIO DA RIQUEZA E DO DINHEIRO SOBRE A REPRESENTAÇÃO POPULAR.
Por quem os índios lutam
Encerrado ontem, Abril Indígena de 2015 não defendeu apenas povos originários. Lançou chamado: é hora de proteger direitos conquistados na Constituição de 1988 — e ameaçados pela ofensiva conservadora
Por João Mitia Antunha Barbosa | Imagem: Jornalistas Livres
A Constituição Federal de 88 já completou 26 anos, e é tempo de fazer uma breve reflexão para interrogar se a alcunha “Constituição Cidadã” ainda se sustenta.
O processo constituinte abriu espaço para significativas inovações em relação às Constituições Federais anteriores – notadamente no campo social, cultural e ambiental –, sedimentando ou inserindo no ordenamento jurídico brasileiro o que certos juristas passaram a chamar de “novos direitos”. Como bem apontou recentemente a professora Manuela Carneiro da Cunha, a CF de 88 teve o mérito de, pela primeira vez, celebrar “a diversidade como um valor a ser preservado”, (….) “indicando que o país queria novos rumos. O Brasil aspirava a ser fraterno e justo.”
Análises recentes sobre os 25 anos de Carta avaliam, no entanto, que a “Constituição Cidadã” apresenta resultados bastante modestos no que se refere à garantia de fato dos direitos de diversos “grupos minoritários”. Isso se torna evidente quando apontamos o foco para os povos indígenas.
De acordo com diversas associações indígenas e indigenistas, dos mais de mil territórios indígenas (TIs) existentes no país apenas cerca de um terço encontra-se regularizado. Os outros dois terços estão em alguma fase do processo de demarcação ou sequer tiveram seu procedimento demarcatório iniciado. Destaquemos ainda que, das TIs demarcadas, mais de 98% encontram-se na Amazônia brasileira. O restante, isto é, menos de 2%, dividem-se pelas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e porção sul do Centro-Oeste (estado do Mato Grosso do Sul).
Vale notar que da população indígena brasileira – que, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010, soma 896.917 pessoas –, cerca de 433.363 pessoas vivem nos estados da Amazônia Legal e 463.554 nos demais estados. Trocando em miúdos, a justaposição desses dados nos indica que a população indígena que vive nos estados do Sul, Sudeste, Nordeste e Mato Grosso do Sul representa mais da metade da população indígena brasileira total, ocupando, porém, menos de 2% das Terras Indígenas atualmente demarcadas.
Essa desproporção manifesta um contraste flagrante no que se refere à situação fundiária dos Povos Indígenas e revela o drama humanitário ao qual estão submetidos diversos deles (dentre os quais os Guaranis e os Terenas do Estado do Mato Grosso do Sul), perpetuando injustiças, preconceitos, violência e a falta de direitos fundamentais e de cidadania, acumulados ao longo de todo o processo de colonização do Brasil. Onde estaria, nesta medida, a valorização da diversidade e a justiça social preconizadas pela constituição cidadã?
Não bastasse um quadro político e legal tradicionalmente já bastante inquietante para os direitos indígenas, assistimos agora a uma nova e feroz investida de grupos extremamente conservadores de nossa fauna política, muitos deles ideologicamente apegados à estrutura fundiária arcaica do país e economicamente vinculados ao agronegócio. A dita bancada ruralista, composta por mais de 200 deputados e senadores, é responsável por inúmeros projetos que tramitam atualmente no Congresso Nacional Brasileiro. Citemos apenas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, que tem o intuito de alterar a constituição para restringir ou aniquilar direitos – sobretudo territoriais – conquistados pelos povos indígenas e reconhecidos pelo Estado brasileiro após séculos de intensas batalhas em diversos planos. Reconhecidos, pois se tratam de direitos preexistentes à formação do próprio Estado. Estamos falando de direitos territoriais de povos e nações que, anteriormente à criação do estado nacional brasileiro, já possuíam elos com esta terra que hoje habitamos. Esse direito, juridicamente denominado de “indigenato”, foi reconhecido, e não criado pela CF 88.
Para deixar claro: o direito de ocupação das terras indígenas, assegurado em nossa Constituição, é um direito originário e, neste sentido, as demarcações são apenas o reconhecimento, a garantia fática, de um direito pré-existente sobre tais territórios. O Professor Dalmo Dallari é taxativo neste sentido, dirimindo qualquer dúvida que pudesse existir sobre a pertinência da PEC 215. Ele afirma categoricamente que a proposta é flagrantemente inconstitucional, uma vez que demarcações e homologações de Terras Indígenas são atribuições exclusivas do Poder Executivo, pois se tratam de procedimentos de natureza administrativa.
Em entrevista à Carta Capital, o antropólogo e fundador do Instituto Socioambiental, Beto Ricardo, afirma que “ao transferir uma competência executiva para o legislativo, a bancada ruralista pretende paralisar os processos ou retalhar territórios com base em critérios políticos, o que é flagrantemente inconstitucional”, e acrescenta que “os índios entendem que o texto constitucional vigente constitui um pacto entre o Estado brasileiro e os seus povos. Mudar esse texto, de forma expedita, nebulosa e unilateral, representaria o rompimento desse pacto. É algo inaceitável”.
Neste mesmo sentido, na avaliação de diversas organizações indígenas essas reformas legais constituem um verdadeiro atentado, pois, na prática, implicarão no fim de novas demarcações. O risco não está apenas em situações futuras, ele é absolutamente atual! Como já foi dito, muitos territórios indígenas, por diversos fatores, encontram-se ainda em alguma fase do processo de demarcação ou aguardam na fila para ter seu processo iniciado e ficariam com sua homologação na dependência do Congresso Nacional. As lideranças indígenas mobilizadas esse mês de abril no Acampamento TerraLivre – ATL são unânimes ao afirmar: “como contamos nos dedos quantos congressistas defendem a causa indígena, com certeza nenhuma terra será demarcada”.
Como justificar, portanto, esse tipo de investida, considerando que a sociedade brasileira – com o intuito de enfrentar passivos históricos inadiáveis, como os direitos culturais e territoriais dos povos indígenas ou daqueles traficados desde a África – determinou soberanamente a elevação e o assentamento de determinados valores político-sociais à categoria constitucional?
Vale destacar,no entanto, que o movimento indígena (com seus aliados) representa um tipo de movimento social bastante singular. Além da aguerrida resistência que lhe é particular, é capaz de se organizar com imenso dinamismo tanto no universo digital quanto pelos meios (digamos) analógicos. Iniciativas pulverizadas nas mídias digitais, assim como ações diretas de enfrentamento e resistência face aos desafios legais e políticos atualmente impostos são prova da enorme capacidade de resistência e resiliência dos povos indígenas no Brasil. Além disso, possuem capilaridade por toda a extensão do território brasileiro. Isso demonstra a posição estratégica em que se encontram e a condição estratégica que deveria ser reconhecida. Estes povos são atores de sua história, são donos de seus territórios, nunca foram e nunca serão presa fácil! Engana-se quem imagina que esse país poderá existir sem eles…
Retornando à nossa indagação inicial. Fica patente que a energia despendida pela bancada ruralista – configuração política contemporânea de uma elite secularmente encarregada do massacre a indígenas, negros e camponeses – na tentativa inconstitucional de transferir ao poder legislativo a atribuição de demarcar as Terras Indígenas ou de transformar em regra as exceções ao direito de usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios representa, em última análise, não apenas um ataque às populações diretamente afetadas, mas à sociedade como um todo. Contando com uma suposta ingenuidade política do povo brasileiro, setores econômicos e bancadas políticas insistem em tentar arrogar poder e competência que, constitucionalmente, não lhes foram atribuídos pela sociedade brasileira.
A nosso ver, essa tentativa coloca em xeque não apenas os direitos específicos de “populações minoritárias”, mas um projeto de sociedade. E este projeto de sociedade foi o que impulsionou a redemocratização do país, o que gerou a Constituinte e deu vida à nossa atual Constituição. Ou seja, existem direitos – e os direitos indígenas estão entre eles – sobre os quais não se pode admitir retrocesso, pois são a essência e o motivo de ser da nossa democracia.
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