QUANDO APRENDEREMOS A SER REALMENTE HUMANOS?
Documentário mostra laços da Palestina brasileira com palestinos que vivem sob ocupação militar
Caco Schmitt (produtor) e Omar de Barros Filho, roteirista e diretor do documentário “A Palestina Brasileira”. (Foto: Marco Weissheimer/Sul21)
Por Marco Weissheimer, no Sul21
O Rio Grande do Sul é o Estado que abriga a maior comunidade palestina do Brasil. Esta informação surpreendeu o cineasta e jornalista Omar L. de Barros Filho que viu nela uma história a ser contada. Nascia ali o projeto do documentário “A Palestina Brasileira”, filmado no Rio Grande do Sul e no Oriente Médio, que teve sua estreia nacional no Canal Curta, no dia 12 de janeiro. “Para mim foi uma revelação saber que o Rio Grande do Sul era o Estado com a maior comunidade palestina do país. Nós estamos acostumados com as comunidades de origem libanesa, síria e de outros países árabes. A comunidade palestina me surpreendeu pela sua discrição. Estamos falando de uma população entre 30 e 50 mil pessoas morando aqui no Estado”, assinala Omar de Barros Filho, roteirista e diretor do documentário.
O que marcou a fundação deste movimento de migração para o Brasil foi a partilha da Palestina em 1947 e a fundação do Estado de Israel. Ao longo das últimas décadas, a comunidade palestina foi se constituindo em Porto Alegre, na Região Metropolitana e em cidades das regiões de fronteira com o Uruguai e a Argentina. O projeto de realizar um documentário para contar a história dessa comunidade foi aprovado em uma seleção do canal Curta, apoiada pelo Fundo Setorial do Audiovisual. Aprovado o projeto, Omar de Barros Filho juntou-se à produtora CenaUm e deu início ao trabalho de pré-produção. O primeiro passo foi identificar os personagens, cuja história serviria como fio condutor da narrativa.
“Decidimos narrar a história de seis famílias que antes viviam na região da Cisjordânia, hoje ocupada por Israel. Além disso, definimos que, para cada família escolhida aqui no sul Brasil, teríamos um prolongamento dela na Palestina. Cinco delas vieram para o Brasil a partir da década de 1950 e uma, mais recente, que fugiu da Palestina para o Iraque em função de ataques israelenses, lá enfrentando uma nova situação de guerra, quando os Estados Unidos invadiram aquele país. Essa família ficou quatro anos em um campo de refugiados, no meio do deserto, na fronteira do Iraque com a Jordânia. De lá foram embarcados em um avião da ONU, trazidos para o Brasil e acabaram aqui em Porto Alegre. Como essa família não tem mais raízes dentro da Palestina, fizemos um contraponto delas com famílias que vivem refugiadas dentro da própria Palestina. Essas pessoas têm o mesmo direito que tem qualquer palestino, ou seja, nenhum”, relata o diretor.
A partir dessa ideia, o documentário conta a história dessas famílias de palestinos brasileiros, como elas alimentam suas raízes e os laços que mantêm com parentes e amigos que ficaram para trás, vivendo hoje sob uma ocupação militar. “O filme não mostra simplesmente como vivem os palestinos no Rio Grande do Sul, mas sim como vivem relacionados com a sua terra de origem que foram forçados a abandonar”, explica Omar de Barros Filho. A obra também pretende contribuir com o debate mundial sobre o deslocamento forçado de grandes populações que se movem entre continentes, em busca de proteção contra ondas de fome, desastres ambientais, guerras e atentados contra os direitos humanos.
Produtor do documentário, o jornalista Caco Scmhitt conta que foram encontradas diferentes situações envolvendo as famílias de palestinos brasileiros. “Temos situações onde o pai veio para cá, trabalhou alguns anos e chamou o filho. Este ficou aqui e teve um filho que foi estudar na Palestina. Eles mandam os filhos estudar na Palestina para manter a cultura, a religiosidade e o idioma. Muitos deles voltam. Alguns ficam por lá. Temos outro caso em que o pai morreu e a mãe voltou para a Palestina levando o filho. Quando ele fez dezessete anos, decidiu voltar para o Brasil. Acho que o documentário conseguiu captar muito bem essa relação entre as famílias aqui e lá”.
Essa proposta de roteiro, diz Omar de Barros Filho, permitiu dar ao filme um tempo cinematográfico muito ágil. “A cada apresentação de um personagem aqui no Brasil, você tem imediatamente a continuação da história dele lá na Palestina. Isso nos possibilitou mostrar também a realidade atual da Palestina. Aqui, de modo geral, as famílias já estão bem colocadas e com as vidas organizadas após algumas décadas de imigração. Temos aí um contraste com a situação de padecimento que vivem todos os palestinos, sem exceção, na sua terra de origem. A milenar cultura palestina, que é violada todos os dias, ainda se mantém íntegra, na medida do possível, em um contexto de permanente desafio à sobrevivência que eles enfrentam diariamente”, comenta o cineasta.
O desafio de filmar na Palestina
As filmagens na Palestina ocorreram entre o final de outubro e o início de novembro de 2016. Ao todo, a equipe do documentário ficou 15 dias em território palestino. “Foi difícil”, resume Caco Schmitt. “A entrada foi difícil e a circulação lá dentro também. A Cisjordânia é um Estado que não é Estado. O Exército israelense controla tudo. Por onde você anda, o exército israelense está presente. Há inúmeros check-points controlando a circulação, há batidas durante a noite, quando pessoas são presas e levadas embora. É uma situação muito complicada trabalhar lá. Viver nem se fala. Nós ficamos duas semanas lá e sentimos essa pressão a cada dia. É um Estado ocupado militarmente. Não há liberdade de locomoção, tem toque de recolher. Os palestinos vivem sob ocupação militar há 50 anos. É muito complicado”.
Na década de 1980, Omar de Barros Filho foi correspondente na América Latina e acompanhou guerras na Guatemala, El Salvador e Nicarágua, entre outros conflitos. Ele diz que, nem nos piores momentos destes conflitos, ele presenciou uma situação como a que é vivida hoje pelo povo palestino. “A cada local para onde pretendíamos levar a nossa equipe éramos barrados em check-points que perguntavam e investigavam o que estávamos fazendo ali. Depois que nos tornamos figuras freqüentes nas estradas da região, acabamos nos tornando alvo do mais sofisticado sistema de vigilância que existe no planeta hoje. Além dos muros que se estendem por todo o território palestino, eles também têm sistemas de vigilância eletrônicos, drones, balões com câmeras. A cada 15 quilômetros tem um balão equipados com câmeras. Nem um centímetro do território está a descoberto. Não existe ponto cedo para todo esse aparato de vigilância. Sem falar dos informantes que estão circulando por ali”.
Numa determinada madrugada, já nos dias finais de trabalho, conta ainda o diretor, o hotel onde a equipe estava hospedada, em Ramallah, a capital administrativa da Autoridade Palestina, foi invadido por uma tropa de soldados israelenses. “Eram cerca de 40 soldados armados até os dentes, acompanhados de cães. Eles arrombaram os nossos quartos, quebraram o hotel inteiro, usando inclusive marretas e moto-serras para abrir as paredes e ver se tinha alguma coisa escondida. Eles quebraram inclusive o forro do meu apartamento. Eu perguntei, em inglês, o que estava acontecendo e o oficial que pegou meu passaporte e minha carteira de jornalista internacional ficou rindo da minha cara. Ficamos cerca de três horas, em plena madrugada, sentados no lobby do hotel, juntamente com os funcionários. Nos filmaram, fotografaram e interrogaram. Depois jogaram algumas bombas na rua e foram embora, deixando o hotel em ruínas”, relata Omar de Barros Filho.
Prevendo que pudesse acontecer algo do gênero, a equipe passou os arquivos das gravações para um dos personagens do documentário que saiu da Palestina pela Jordânia. O episódio da invasão do hotel ilustrou plenamente o risco que corriam lá e teve um desdobramento. No retorno ao Brasil, no aeroporto de Tel Aviv, após terem passado por diversos check-points e revistas, uma das câmeras da produtora foi apreendida. “A câmera foi simplesmente sequestrada. Disseram que como não podiam desmanchá-la, poderia ter uma bomba dentro. Nunca mais nos entregaram. Fizemos todas as gestões para reavê-la, acionando inclusive o Itamaraty, mas não adiantou”, conta Caco Schmitt.
“A triste realidade”, conclui Omar de Barros Filho, “é que temos um Estado colonial em pleno século XXI, que implantou um regime de apartheid que guarda muita semelhança com o apartheid sul-africano, de triste memória. Esse Estado, armado até os dentes, oprime e explora política e economicamente uma população. Os efeitos disso são devastadores na vida cotidiana de cada palestino. Israel é dona do espaço aéreo, dos mares, dos rios, das águas subterrâneas, da moeda, do Estado, das armas, de tudo. Os mais de 10 mil cidadãos brasileiros que vivem hoje na Palestina, segundo nos disse um diplomata do Itamaraty, constituem a única população brasileira no mundo que vive hoje sob um regime militar”.
A Palestina brasileira acompanha o dia-a-dia dessa realidade de opressão na Palestina. “Essa Palestina não é a comunidade que mora aqui no Rio Grande do Sul, em Foz de Iguaçu, em São Paulo ou em outra região. Também não é definida pelos brasileiros que moram lá. Ela é, na verdade, a ligação dos palestinos que estão aqui com os que estão lá. É uma ligação orgânica. Eles acompanham direto tudo o que está acontecendo na Palestina. Estão muito bem informados sobre o que acontece lá e tem uma rede internacional muito grande. Fiquei muito impressionado com isso”, conclui Caco Schmitt.
O NORTÃO
SUL21
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