quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O SOL NOSSO DE TODO DIA

Foi realizado nos dias 16 e 17 de setembro, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, o Encontro Internacional Realidad energética y posibles rutas alternativas para las transiciones energéticas justas, equitativas y sustentables, organizado pelo Grupo de Trabajo de Cambio Climático y Justicia, contando com participação de representantes do MOCICC – Movimiento Cuidadano frente al Cambio Climático – do Peru, do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, do Brasil, e da Misereor, da Alemanha. Foram dois dias de trabalho intenso, com participação de mais de 40 bolivianos e 9 provenientes de outros países.

Como também a Misereor tem, entre suas prioridades, a busca de alternativas aos processos que geram mudanças climáticas, este foi um dos eixos das reflexões. Mas o tema central foi mesmo a energia, com intercomunicação sobre a matriz energética de cada país e sobre práticas de produção de energia solar e eólica descentralizada.

Hidrelétricas e geração de desequilíbrios

Por mais que as autoridades, empresas e alguns intelectuais repitam que o Brasil possui uma das mais limpas e sustentáveis matrizes energéticas, o que se percebeu é que os três países têm em comum avanços na carbonização da produção e consumo de energia. Em outras palavras, constatou-se um avanço da termeletricidade, com uso de petróleo, gás e carvão. Tanto o Peru como a Bolívia estão dando passos para aumentar a hidroeletricidade, com a construção de barramentos dos rios da região amazônica – não só como o Brasil, mas incentivados pela política e até mesmo com financiamento do BNDES, bem como com presença de grandes empresas de construção.

Como todas as entidades presentes atuam em processos educativos e de mobilização social em relação aos processos econômicos que provocam aquecimento do planeta e agravamento de mudanças climáticas, a construção de hidrelétricas na Amazônia foi tema de aprofundamento. De fato, a transformação dos grandes, médios e pequenos rios amazônicos em uma sequência de barragens, é algo absolutamente preocupante em relação aos impactos sociais e ambientais que introduzirão neste bioma. É o caso, por exemplo, do rio Tapajós, no Brasil, em que a insistência de construir a hidrelétrica de São Luiz levou à descoberta de que há outras 43 represas a serem construídas rios acima, contados seus afluentes.

Sabe-se que a construção de uma hidrelétrica, e muito mais quando ela é parte de uma sequência de barramentos que têm também a finalidade de viabilizar uma hidrovia, traz consigo uma série de investimentos econômicos. Antes mesmo de sua construção, aumenta na área a presença de madeireiras, de garimpos, com invasão de áreas de preservação e territórios indígenas, junto com um começo de especulação no preço de terras griladas. Isso significa continuidade e até viabilização acelerada do projeto predador e destruidor do bioma Amazônia.

Esse movimento do “progresso econômico” se soma ao aumento da emissão de metano e dióxido de carbono que as hidrelétricas provocam. De fato, muita floresta é destruída, e a maior parte é queimada ou deixada no tempo, e isso libera o CO2 contido nas árvores e vegetação. Muita floresta, vegetação e outros seres vivos são cobertos por água e, ao se decomporem, produzem grande quantidade de metano – jogado para a atmosfera através da água profunda que movimenta as turbinas.

Tudo somado, junto com desastres sociais, que afetam povos indígenas, ribeirinhos e até população urbana, há imensos desastres ecológicos, afetando a existência da floresta e da biodiversidade, bem como aumentando a emissão de gases de efeito estufa, reforçando tudo mais que agrava as mudanças climáticas. No caso da Amazônia, provocando desequilíbrios que afetam sua possibilidade de continuar contribuindo com o equilíbrio hídrico regional e em toda a América do Sul, de modo especial na região do Sudeste e Centro-oeste brasileiros.

Por que não contar com o sol e os ventos em cada localidade?

Este foi o tema maior do Encontro. Em todos os nossos países há melhor insolação do que as melhores regiões da Alemanha e de outros países que avançam na produção de energia solar fotovoltaica, e o fazem priorizando os telhados das casas, caminhando na direção de produzir o mais perto possível do local de consumo, evitando perdas.

Diante disso, a pergunta: por que não se conta com o sol em nossos países? Mesmo sabendo que os preços, até mesmo pela não entrada na criação de tecnologias e na produção local, ainda são um pouco mais caros do que o uso da água, a conclusão da reflexão foi que também isso é usado como justificativa para a manutenção dos monopólios que controlam a energia centralizada, que exige grandes usinas, isto é, grandes obras de engenharia, que necessitam de grandes obras de transmissão e que, finalmente, possibilitam a exploração na venda da energia como uma mercadoria cada dia mais indispensável para as pessoas, de modo especial das que vivem em cidades.

Esta constatação levou à busca de caminhos para conquistar mais esta mudança em nossos países, uma vez que ela tem a ver com a superação dos efeitos destruidores do uso das fontes fósseis e mesmo do uso da água para produzir energia.

É absolutamente necessário conquistar a mudança da matriz energética. Mas, ao mesmo tempo, é absolutamente necessário conquistar a mudança do sistema econômico centrado no crescimento sem fim e, como consequência, no aumento constante do consumo. Isso exige, ao mesmo tempo, luta política, desde o local até o planetário, mas também a libertação das pessoas da dependência e dominação dos que criam necessidades falsas para manter seus lucros. Esse sistema estressa a Terra, e a mudança da matriz energética não é suficiente para enfrentar isso. É indispensável colocar em cheque a cultura do consumismo e desperdício, como insiste papa Francisco na Laudato Si´.

O grande desafio pedagógico e político está em relacionar esses dois polos, trabalhando em favor de mudanças no modo de pensar a vida, no perfil de consumo, e, ao mesmo tempo, em favor de mudanças na prática da cidadania como poder político capaz de exigir mudanças estruturais, em que a matriz e a política energética estão enquadradas. Nessa direção, toda possibilidade de implementação de projetos-piloto de energia solar e eólica descentralizada pode e deve ser, também, oportunidade de educação libertadora. Isto significa desencadear com a comunidade participante um processo de reflexão que inclua a temática das causas e efeitos das mudanças climáticas, as potencialidades e limites do bioma em que se vive, as necessidades reais de energia e de tudo mais para uma vida digna, a consciência de uma relação amorosa e harmoniosa com a Terra, a alimentação das motivações profundas para sermos capazes de uma conversão permanente, de modo especial para resistir à cultura de adoração ao dinheiro como ídolo... e, ao mesmo tempo, a responsabilidade e a busca de formas criativas de atuação como cidadãos e cidadãs, visando a conquista da mudança da matriz energética junto, é claro, com as demais mudanças estruturais necessárias para devolver à Terra o equilíbrio que necessita para manter em ambiente favorável a vida humana e todas as formas de vida.

Buscar a energia a partir da vida concreta, sabendo que somos energia e precisamos renová-la todo o tempo, significa buscar, alimentar e celebrar a dimensão espiritual de nossa existência. E para isso, contamos com o apoio das ricas expressões religiosas dos povos originários e com a inspiração das mensagens originárias das religiões, incluídas as que têm como base a vida e as mensagens de Jesus de Nazaré. Precisamos desta força interior, desta mística, nos lembra papa Francisco, para realizarmos a “conversão ecológica”, isto é, a mudança no modo de vida e na relação com a produção e consumo da sociedade em que vivemos.


                        Ivo Poletto – do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social

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