Foi
realizado nos dias 16 e 17 de setembro, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, o
Encontro Internacional Realidad energética y posibles rutas
alternativas para las transiciones energéticas justas, equitativas y
sustentables,
organizado pelo Grupo de Trabajo de Cambio Climático y Justicia, contando com
participação de representantes do MOCICC – Movimiento Cuidadano frente al
Cambio Climático – do Peru, do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, do
Brasil, e da Misereor, da Alemanha. Foram dois dias de trabalho intenso, com participação
de mais de 40 bolivianos e 9 provenientes de outros países.
Como também a Misereor tem, entre suas prioridades, a busca
de alternativas aos processos que geram mudanças climáticas, este foi um dos
eixos das reflexões. Mas o tema central foi mesmo a energia, com
intercomunicação sobre a matriz energética de cada país e sobre práticas de
produção de energia solar e eólica descentralizada.
Hidrelétricas e geração de desequilíbrios
Por mais que as autoridades, empresas e alguns intelectuais
repitam que o Brasil possui uma das mais limpas e sustentáveis matrizes
energéticas, o que se percebeu é que os três países têm em comum avanços na
carbonização da produção e consumo de energia. Em outras palavras, constatou-se
um avanço da termeletricidade, com uso de petróleo, gás e carvão. Tanto o Peru
como a Bolívia estão dando passos para aumentar a hidroeletricidade, com a construção
de barramentos dos rios da região amazônica – não só como o Brasil, mas
incentivados pela política e até mesmo com financiamento do BNDES, bem como com
presença de grandes empresas de construção.
Como todas as entidades presentes atuam em processos
educativos e de mobilização social em relação aos processos econômicos que
provocam aquecimento do planeta e agravamento de mudanças climáticas, a
construção de hidrelétricas na Amazônia foi tema de aprofundamento. De fato, a
transformação dos grandes, médios e pequenos rios amazônicos em uma sequência
de barragens, é algo absolutamente preocupante em relação aos impactos sociais
e ambientais que introduzirão neste bioma. É o caso, por exemplo, do rio
Tapajós, no Brasil, em que a insistência de construir a hidrelétrica de São Luiz
levou à descoberta de que há outras 43 represas a serem construídas rios acima,
contados seus afluentes.
Sabe-se que a construção de uma hidrelétrica, e muito mais
quando ela é parte de uma sequência de barramentos que têm também a finalidade
de viabilizar uma hidrovia, traz consigo uma série de investimentos econômicos.
Antes mesmo de sua construção, aumenta na área a presença de madeireiras, de
garimpos, com invasão de áreas de preservação e territórios indígenas, junto
com um começo de especulação no preço de terras griladas. Isso significa
continuidade e até viabilização acelerada do projeto predador e destruidor do
bioma Amazônia.
Esse movimento do “progresso econômico” se soma ao aumento
da emissão de metano e dióxido de carbono que as hidrelétricas provocam. De
fato, muita floresta é destruída, e a maior parte é queimada ou deixada no tempo,
e isso libera o CO2 contido nas árvores e vegetação. Muita floresta, vegetação
e outros seres vivos são cobertos por água e, ao se decomporem, produzem grande
quantidade de metano – jogado para a atmosfera através da água profunda que
movimenta as turbinas.
Tudo somado, junto com desastres sociais, que afetam povos
indígenas, ribeirinhos e até população urbana, há imensos desastres ecológicos,
afetando a existência da floresta e da biodiversidade, bem como aumentando a
emissão de gases de efeito estufa, reforçando tudo mais que agrava as mudanças
climáticas. No caso da Amazônia, provocando desequilíbrios que afetam sua
possibilidade de continuar contribuindo com o equilíbrio hídrico regional e em
toda a América do Sul, de modo especial na região do Sudeste e Centro-oeste
brasileiros.
Por que não contar com o sol e os ventos em cada localidade?
Este foi o tema maior do Encontro. Em todos os nossos países
há melhor insolação do que as melhores regiões da Alemanha e de outros países
que avançam na produção de energia solar fotovoltaica, e o fazem priorizando os
telhados das casas, caminhando na direção de produzir o mais perto possível do
local de consumo, evitando perdas.
Diante disso, a pergunta: por que não se conta com o sol em
nossos países? Mesmo sabendo que os preços, até mesmo pela não entrada na criação
de tecnologias e na produção local, ainda são um pouco mais caros do que o uso
da água, a conclusão da reflexão foi que também isso é usado como justificativa
para a manutenção dos monopólios que controlam a energia centralizada, que
exige grandes usinas, isto é, grandes obras de engenharia, que necessitam de
grandes obras de transmissão e que, finalmente, possibilitam a exploração na
venda da energia como uma mercadoria cada dia mais indispensável para as
pessoas, de modo especial das que vivem em cidades.
Esta constatação levou à busca de caminhos para conquistar
mais esta mudança em nossos países, uma vez que ela tem a ver com a superação
dos efeitos destruidores do uso das fontes fósseis e mesmo do uso da água para
produzir energia.
É absolutamente necessário conquistar a mudança da matriz
energética. Mas, ao mesmo tempo, é absolutamente necessário conquistar a
mudança do sistema econômico centrado no crescimento sem fim e, como
consequência, no aumento constante do consumo. Isso exige, ao mesmo tempo, luta
política, desde o local até o planetário, mas também a libertação das pessoas
da dependência e dominação dos que criam necessidades falsas para manter seus
lucros. Esse sistema estressa a Terra, e a mudança da matriz energética não é
suficiente para enfrentar isso. É indispensável colocar em cheque a cultura do
consumismo e desperdício, como insiste papa Francisco na Laudato Si´.
O grande desafio pedagógico e político está em relacionar
esses dois polos, trabalhando em favor de mudanças no modo de pensar a vida, no
perfil de consumo, e, ao mesmo tempo, em favor de mudanças na prática da
cidadania como poder político capaz de exigir mudanças estruturais, em que a
matriz e a política energética estão enquadradas. Nessa direção, toda
possibilidade de implementação de projetos-piloto de energia solar e eólica
descentralizada pode e deve ser, também, oportunidade de educação libertadora. Isto
significa desencadear com a comunidade participante um processo de reflexão que
inclua a temática das causas e efeitos das mudanças climáticas, as potencialidades
e limites do bioma em que se vive, as necessidades reais de energia e de tudo
mais para uma vida digna, a consciência de uma relação amorosa e harmoniosa com
a Terra, a alimentação das motivações profundas para sermos capazes de uma
conversão permanente, de modo especial para resistir à cultura de adoração ao
dinheiro como ídolo... e, ao mesmo tempo, a responsabilidade e a busca de
formas criativas de atuação como cidadãos e cidadãs, visando a conquista da
mudança da matriz energética junto, é claro, com as demais mudanças estruturais
necessárias para devolver à Terra o equilíbrio que necessita para manter em
ambiente favorável a vida humana e todas as formas de vida.
Buscar a energia a partir da vida concreta, sabendo que
somos energia e precisamos renová-la todo o tempo, significa buscar, alimentar
e celebrar a dimensão espiritual de nossa existência. E para isso, contamos com
o apoio das ricas expressões religiosas dos povos originários e com a inspiração
das mensagens originárias das religiões, incluídas as que têm como base a vida
e as mensagens de Jesus de Nazaré. Precisamos desta força interior, desta
mística, nos lembra papa Francisco, para realizarmos a “conversão ecológica”,
isto é, a mudança no modo de vida e na relação com a produção e consumo da
sociedade em que vivemos.
Ivo
Poletto – do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
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