DA ANÁLISE CRÍTICA QUE SE VAI FAZENDO DA PRÁTICA DOS PARTIDOS NO BRASIL, DA FRUSTRAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS, DAS MOBILIZAÇÕES DE RUA COM NOVAS FORMAS DE FAZER POLÍTICA, CERTAMENTE VEM NASCENDO A NECESSIDADE DE DEBATERMOS, TAMBÉM NO BRASIL, QUE PASSOS NOVOS DEVEREMOS DAR E QUE NOVAS MEDIAÇÕES DEVEREMOS CRIAR. AS NOVAS PRÁTICAS DE PARTIDOS MOVIMENTO PODEM ENRIQUECER ESSE DEBATE.
POR
OUTRAS PALAVRAS – ON 22/10/2014 CATEGORIAS: ALTERNATIVAS, BRASIL, POLÍTICAS, PÓS-CAPITALISMO, UNCATEGORIZED
“O Podemos emprega intensamente a
internet para debate e tomada de decisões. Iniciada em 15 de setembro, uma
Assembleia Cidadã definirá coletivamente três documentos essenciais do
movimento
Por que podem ser
úteis, ao Brasil, as experiências de partidos-movimento – que
querem mudar o sistema político e têm apoio popular crescente
Por Antonio
Martins | Colaborou Graziela Marcheti | Imagem: Alfred Eisenstaedt
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MAIS: Leia os demais textos desta série, sobre eleições 2014 e cenário brasileiro:
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> Em busca de um novo
horizonte histórico
> Terá chegado a hora de um Podemos?
> Por um programa de mudanças profundas
> Contra o retrocesso, o “voto Duvivier”
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Entre as causas
centrais para o surgimento de uma onda conservadora no Brasil está, certamente,
a ausência de uma alternativa que aponte e reaja à crise do sistema político a
partir da oposição ao capitalismo. O leque de opções que expressa a rejeição
reacionária ao declínio da velha democracia é vasto. Vai da prepotência de um
Jair Bolsonaro ou um Lasier Martins à postura insossa (“picolé de chuchu”) de
Geraldo Alckmin, que pratica em São Paulo uma espécie de “governo invisível”,
cujas decisões são sempre apresentadas pela mídia como “técnicas” ou
“naturais”. Mas não há expressão orgânica ou simbólica do pensamento
pós-capitalista. A esquerda clássica (PT e PCdoB, especialmente) é vista como
integrada ao sistema. A ultraesquerda mantém-se apegada ao doutrinarismo e por
isso é incapaz de comunicar-se além de pequenos círculos e crescer. Quem se
opõe ao sistema a partir de valores como o compartilhamento, a distribuição das
riquezas, uma nova relação entre ser humano e natureza; ou quem deseja
construir formas de democracia que superem a ideia de representação encontra,
no cenário das propostas visíveis… um vazio.
Esta ausência tende
a se aprofundar – não por perversidade dos políticos, mas pelas condições
concretas que limitam sua ação. Até que se construa uma grande Reforma
Política, a esquerda institucional estará obrigada a seguir e
reproduzir, cada vez mais intensamente, as regras atuais do jogo. Disputar
eleições requer muito dinheiro (só a campanha Dilma à Presidência em 2014
previu arrecadar, oficialmente, R$ 300 milhões). Recursos fáceis vêm de grandes
empresas – que exigem, dos políticos, fidelidade a seus interesses.
Milhares de
brasileiros continuarão, enquanto isso, a enxergar a política como algo
diferente. Eles a praticarão numa infinidade de atitudes, quase todas
descoladas da vida institucional. Algumas poderão ser chamadas de ingênuas –
cultivar uma horta comunitária numa praça que o poder público abandonou, contar
histórias para crianças internadas, suavizando a desumanidade do sistema
hospitalar. Outras terão repercussão muito maior. O embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, secretário-geral do Itamaraty no governo Lula, gostava de reconhecer
que a campanha dos movimentos sociais contra a ALCA, articulada no Fórum Social
Mundial de 2002, foi decisiva para que o Ministério das Relações Exteriores e a
Presidência ajudassem a desmontar o projeto de “integração” subordinada da
América Latina tramado por Washington. O Marco Civil da Internet só surgiu
depois que ativistas digitais, mobilizados por iniciativa do professor Sérgio
Amadeu, decidiram combater um projeto de lei de controle e vigilância da rede –
que era endossado pelos senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Aloísio
Mercadante (PT-SP).
Como criar
condições que permitam, àqueles que se reconhecem numa nova cultura política,
projetar-se além dos grupos de afinidade aos quais já estão ligados – articulando-se,
trocando experiências, planejando ações conjuntas? Como tornar visível esta
alternativa, mostrar que ela não é apenas um estado efêmero de crítica, mas uma
opção real diante da crise da velha política e da necessidade de reinventar a
democracia?
Durante algum
tempo, esta questão pareceu insolúvel. Para alguns – os que se reconhecem no
anarquismo do século XIX, por exemplo – qualquer participação em estruturas de
poder do Estado deformava os movimentos sociais e devia ser rejeitada. Para
outros – ligados à tradição marxista – os partidos tradicionais de esquerda
continuavam a ser a referência, na política institucional. A ação essencial dos
movimentos sociais deveria ser a de mobilizar suas bases cada vez mais
intensamente, a ponto de pressionar estes partidos a assumir posições
pós-capitalistas — ou, ao menos, posturas claras a favor das lutas por direitos
sociais e políticas avançadas.
O atolamento da democracia e a emergência de novas dinâmicas
É provável que o
tema seja recolocado em pauta, após as eleições deste ano, por pelo menos dois
fatores. Primeiro, a onda de lutas iniciada em Junho de 2013 sacudiu o panorama
da mobilização social e da própria esquerda no Brasil. Há uma nova geração de
ativistas que se sente muito menos ligada às lutas que marcaram as décadas
anteriores: vitória sobre a ditadura, enfrentamento das políticas neoliberais
e, mais tarde, luta para eleger e manter os governos de esquerda moderada. Há
uma necessidade evidente de diálogo entre esta nova geração e a anterior – mas
ele não poderá ser feito no interior das velhas estruturas.
Os esforços de
Marina Silva para organizar seu partido revelam que ela sentiu este movimento.
Mas talvez tenha sido vítima de sua própria força e ambição. Ao colocar como
objetivo central a disputa da Presidência, embalada pelos 20 milhões de votos
da candidata em 2010, a Rede foi obrigada a mergulhar, prematura e muito
profundamente, na lógica das instituições; a aceitar adesões e estabelecer
alianças que a impediram de definir um programa coerente; a ceder ao cupulismo que criticou. A adesão a Aécio
Neves, no segundo turno, afasta ainda mais a candidata do que pregava e pode
desqualificá-la como defensora da “nova política” – mas não eliminará da sociedade
este desejo, compartilhado por milhares de ativistas.
Um segundo fator
são experiências internacionais. O esvaziamento da democracia é um fenômeno
mundial. Iniciativas para enfrentá-lo têm surgido em diversos países – em
especial na Europa, onde a crise da representação é mais antiga e mais
profunda. Algumas esgotam-se rapidamente, por uma combinação de vazio
programático e dependência de um personagem carismático. É o caso do Movimento
Cinco Estrelas(MVS), articulado na Itália pelo comediante Beppe
Grillo. Nas eleições parlamentares de 2013, o partido converteu-se na segunda
maior força institucional, ao eleger 104 deputados e 58 senadores – quase todos
cidadãos sem nenhuma experiência política anterior. Mas este imenso acúmulo tem
sido desperdiçado pela recusa do MVS a se posicionar sobre qualquer assunto
nacional importante e por sua tendência a fazer da crise da política um tema
único.
Na Grécia e na
Espanha, parecem estar despontando alternativas mais maduras, que provavelmente
dialogam melhor com as lacunas brasileiras. O Syriza, na Grécia, e oPodemos, na Espanha, são algo novo: uma
espécie de partidos-movimento. Reivindicam as lutas pela igualdade e justiça
social que marcaram a esquerda nos séculos XIX e XX. Porém, rejeitam o
verticalismo e realçam a potência das redes – inclusive como possível caminho
para formas de articulação social que superem a ação centralizadora hoje
exercida pelo Estado.
Ambos muito
recentes, Syriza (2004) e Podemos (janeiro de 2014) têm origens
distintas. O Syriza formou-se a partir de uma frente de pequenas organizações
políticas (seu nome é a sigla, em grego, de Coalizão da Esquerda Radical), que
se formou após a cisão do Partido Comunista, na virada do século. Soube
abrir-se a movimentos que se reconheciam na nova cultura política dos Fórum
Sociais Mundiais e que enfrentaram, nas ruas, as políticas de eliminação de
direitos sociais (“austeridade”…) impostas à Grécia a partir de 2008. O Podemos
nasceu a partir da experiência dos Indignados espanhóis e teve
ascensão ainda mais rápida. Apareceu quando um grupo de ativistas,
intelectuais, artistas, jornalistas e sindicalistas heterodoxos lançou, farto
da surdez do sistema institucional aos protestos de rua, um documento
intitulado Converter a Indignação em Mudança Política. Houve
sabedoria para promover o ato. Evitou-se envolver apenas ativistas de base. A
reunião de personalidades conhecidas em torno do manifesto deu-lhe a projeção
inicial de que precisava. Embora ambos tenham perfil intelectual distinto, Pablo Iglesias, a principal referência do
Podemos, era já uma figura emergente no jornalismo e na TV, alguém com inserção
midiática semelhante a um Gregório Duvivier, no Brasil…
Além de enorme
popularidade, os dois partidos-movimento compartilham ao menos três características
comuns, que podem interessar aos que querem abrir um novo horizonte utópico no
Brasil.
Primeira, eles
rejeitam a forma de organização tradicional que partidos políticos e Estado
compartilham: especialmente, estrutura vertical, hierarquia rígida,
promiscuidade entre poder econômico e política.
O Podemos, por
exemplo, emprega intensamente a internet para debate e tomada de decisões.
Quatro meses após constituído, o partido-movimento escolheu, via web, seus
candidatos para as eleições ao Parlamento Europeu. Agora, vive um processo
ainda mais crucial. Iniciada em 15 de setembro, uma Assembleia
Cidadã definirá coletivamente, até 15 de novembro, três
documentos essenciais do grupo: um político (definição de
estratégia pra o próximo período); um organizativo (construção
de uma estrutura baseada em Círculos de cidadãos e formas de articulá-los); e
um ético (expressando os compromissos que devem ser assumidos
por seus membros, responsáveis internos e representantes eleitos). Há amplo
espaço de participação em todas as etapas do processo.
O Podemos também rechaça
doações de empresas – embora a legislação espanhola (assim como a brasileira)
as veja como legítimas. A reduzidíssima estrutura e as despesas do
partido-movimento são custeadas, item por item, por um sistema de doações autônomasem rede (crowdfunding).
No momento, buscam-se 80.514 euros para custear a Assembleia Cidadã. Cada
tópico de gasto está descrito em detalhes.
A segunda
característica comum ao Podemos e Syriza é que, embora disputem eleições,
fazem-no a partir da denúncia do sistema político e da exigência de sua reforma
radical. Ambos falam “sequestro da democracia” pela oligarquia financeira e
pelos partidos tradicionais. O Podemos propõe, na Espanha, uma Assembleia
Constituinte. Esta opção por não se ausentar da vida
institucional, mas ao mesmo tempo apontar sua miséria e buscar sua
transformação, permite que os dois grupos atraiam o voto de protesto contra o
sistema político. É algo essencial na Europa, onde também a direita
antidemocrática e neofascista tenta apresentar-se como “alternativa”
autoritária à crise da política. Ao mesmo tempo, a atitude converte cada
eleição num plebiscito: uma vitória do Podemos ou do Syriza expressaria, quase
de modo automático, a descrença da maioria nas atuais instituições.
E a esta atitude de
permanente tensão contra a decadência do sistema político, Podemos e Syriza acrescentam
– terceira característica comum – um tipo peculiar de programa. Não fazem a
pregação ideológica dos partidos de extrema esquerda. Porém, sua postura de
superação do capitalismo é nítida (outra diferença essencial com a Rede de
Marina Silva) e está expressa em pontos programáticos extremamente simples, mas
de enorme apelo popular. A bandeira central do Syriza é a reversão das
políticas de “austeridade” que eliminaram direitos sociais e sucatearam
serviços públicos, para permitir que o país continuasse engordando, por meio de
pagamento de juros, a oligarquia financeira. O Podemos defende o mesmo e quer,
ainda mais especificamente, proteger do despejo dezenas de milhares de pessoas
que, desempregadas ou subempregadas, tornaram-se inadimplentes com o crédito
imobiliário.
Em outros tempos,
esta combinação de democracia interna ampla, denúncia do sistema político e
programa pós-capitalista ficaria restrita a pequenos círculos. No novo cenário,
Syriza e Podemos são fenômenos de popularidade. Até a revista The
Economist, que se opõe frontalmente ao programa do Syriza, reconhece que Alexis Tsipras é o
candidato favorito a tornar-se o próximo primeiro-ministro da Grécia, em
eleições que ocorrerão até junho de 2016. Tsipras,
de apenas 39 anos, parece possuir uma qualidade às vezes rara entre expoentes
da esquerda: a determinação e coragem de tornar seu projeto real, de submetê-lo
ao teste da realidade, de não deixar que se esvaia em utopia apenas onírica.
Cria fatos novos em sequência, na Grécia e no exterior. No início de outubro,
veio à América do Sul, onde se encontrou com os presidentes José
Mujica (Uruguai), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). Afirmou que
as experiências destes países, e de outros na região, confirmam: “pode-se
governar com os povos, enfrentando os privilegiados”. Em meados de setembro,
ele, que assume o ateísmo, encontrara-se com o Papa Francisco, no
Vaticano. Não fez, ao final da visita, as declarações insossas de praxe.
“Partimos de pontos de vista diferentes”, disse, “mas nos reunimos para tratar
de valores humanos comuns”. E, depois de tratar Francisco como o “Papa dos Pobres”,
acrescentou: “É preciso criar uma aliança ecumênica contra a pobreza, as
desigualdades e a lógica de que os mercados e o lucro estão acima das
sociedades.”
Nas primeiras eleições que disputou
(ao Parlamento Europeu), o Podemos obteve 7,98% dos votos. Já então, assumiu a
condição de principal referência de esquerda, superando a tradicional Izquierda Unida (IU), uma coalizão
tradicional de organizações marxistas. Continuou crescendo. Agora, apenas dez
meses depois de formado, as últimas pesquisas de opinião dão-lhe 21% das
preferências dos eleitores nas eleições para o Parlamento. É o mesmo patamar do
PSOE (ex-social-democrata, existente há 135 anos) e apenas um pouco abaixo do PP
(de direita, no poder). As mesmas sondagens sugerem que o Podemos está em
condições muito favoráveis para disputar as prefeituras de algumas das
principais cidades espanholas, em maio próximo. Sua eventual vitória em Madri
ou Barcelona (onde o Podemos articula-se com um grupo muito semelhante – o Guanyen(“Ganhemos”)
– produziria um primeiro abalo na velha política espanhola.
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