VALE A PENA PROCURAR ENTENDER O SIGNIFICADO DA PALAVRA "REFUNDAÇÃO". TRATA-SE DE COLOCAR OUTROS FUNDAMENTOS PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA. ISSO NÃO SE FAZ COM SIMPLES REFORMAS. É PRECISO UMA RECRIAÇÃO, E ELA SÓ PODE SER FEITA COM A PARTICIPAÇÃO DE TODO O POVO, TORNANDO-SE CONSTITUINTE, ISTO É: SENDO DE FATO O QUE CONSTITUI, O QUE FORMA, O QUE CRIA. COMO NORMALMENTE O POVO CONTA, PARA ISSO, DE UMA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE EXCLUSIVA, ELEITA SÓ PARA A TAREFA DE ELABORAR A CONSTITUIÇÃO QUE REFUNDA O BRASIL, SERÁ PRECISO QUE ELA FUNCIONE EM CONSTANTE CONSULTA AO PRÓPRIO POVO, ALGO ABSOLUTAMENTE POSSÍVEL COM BOM USO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EXISTENTES.
ATÉ HOJE, O BRASIL SÓ FOI CONSTITUÍDO OU POR GOVERNANTES AUTORITÁRIOS E DITADORES, OU POR MEMBROS ELEITOS PARA O CONGRESSO NACIONAL. PORTANTO, POR ESPAÇOS QUE AS MANIFESTAÇÕES NÃO RECONHECEM MAIS COMO LEGÍTIMOS E DE CONFIANÇA. ESSE É UM DESAFIO QUE PRECISAMOS ASSUMIR: O DE CHEGAR A UMA PRIMEIRA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE EXCLUSIVA PARA REFUNDAR O BRASIL, E DAR ESTE PASSO DE FORMA POPULAR PARTICIPATIVA.
O sentido das manifestações não
seria a refundação do Brasil?
Leonardo Boff,Teólogo-Filósofo
O que
o povo que estava na rua no mes de junho queria, em último término, de forma
consciente ou inconsciente? Para responder me apoio em três citações
inspiradoras.
A primeira é de Darcy Ribeiro no prefácio ao meu
livro O caminhar da Igreja com os oprimidos((1998): "Nós brasileiros
surgimos de um empreendimento colonial que não tinha nenhum propósito de fundar
um povo. Queria tão-somente gerar lucros empresariais exportáveis com pródigo
desgaste de gentes”.
A segunda é de Luiz Gonzaga de Souza Lima na mais
recente e criativa interpretação do Brasil:”A refundação do Brasil: rumo à
sociedade biocentrada (São Carlos 2011):”Quando se chega ao fim, lá onde
acabam os caminhos, é porque chegou a hora de inventar outros rumos; é hora de
outra procura; é hora de o Brasil se Refundar; a Refundação é o caminho novo e,
de todos os possíveis, é aquele que mais vale a pena, já que é próprio do ser
humano não economizar sonhos e esperanças; o Brasil foi fundado como empresa. É
hora de se refundar como sociedade” (contra-capa).
A terceira é do escritor francês
François-René de Chateaubriand (1768-1848):”Nada é mais forte do que uma ideia
quando chegou o momento de sua realização”.
Minha impressão é que as
multitudinárias manifestações de rua que se fizeram sem siglas,sem
cartazes dos movimentos e dos partidos conhecidos e sem carro de som, mas
irrompendo espontaneamente, queriam dizer: estamos cansados do tipo de Brasil
que temos e herdamos: corrupto, com democracia de baixa intensidade, que faz
políticas ricas para os ricos e pobres para os pobres, no qual as grandes
maiorias não contam e pequenos grupos extremamente opulentos controlam o poder
social e político; queremos outro Brasil que esteja à altura da consciência que
desenvolvemos como cidadãos e sobre a nossa importância para o mundo, com
a biodiversidade de nossa natureza, com a criatividade de nossa cultura e como
maior patrimônio que temos que é o nosso povo, misturado, alegre, sincrético,
tolerante e místico.
Efetivamente, até hoje o Brasil foi e continua
sendo um apêndice do grande jogo econômico e político do mundo. Mesmo
politicamente libertados, continuamos sendo reconolizados, pois as potências
centrais antes colonizadoras, nos querem manter ao que sempre nos condenaram: a
ser uma grande empresa neocolonial que exporta commodities, grãos,
carnes, minérios como o mostra em detalhe Luiz Gonzaga de Souza Lima e o reafirmou
Darcy Ribeiro citado acima. Desta forma nos impedem de realizarmos nosso
projeto de nação independente e aberta ao mundo.
Diz com fina sensibilidade social Souza Lima:”Ainda
que nunca tenha existido na realidade, há um Brasil no imaginário e no sonho do
povo brasileiro. O Brasil vivido dentro de cada um é uma produção cultural. A
sociedade construiu um Brasil diferente do real histórico, o tal país do
futuro, soberano, livre, justo, forte mas sobretudo alegre e feliz”(p.235). Nos
movimentos de rua irrompeu este sonho exuberante de Brasil.
Caio Prado Júnior em sua A revolução brasileira (Brasiliense
1966) profeticamente escreveu: ”O Brasil se encontra num daqueles momentos em
que se impõem de pronto reformas e transformações capazes de reestruturarem a vida
do país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas e
as espirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são
devidamente atendidas”(p. 2). Chateaubriand confirma que esta ideia acima
exposta madurou e chegou ao momento de sua realização. Não seria sentido básico
dos reclamos dos que estavam, aos milhares, na rua? Querem um outro Brasil.
Sobre que bases se fará a Refundação do Brasil?
Souza Lima diz que é sobre aquilo que de mais fecundo e original temos: a cultura
brasileira. "É através de nossa cultura que o povo brasileiro passará a ver suas
infinitas possibilidades históricas. É como se a cultura, impulsionada por um
poderoso fluxo criativo, tivesse se constituído o suficiente para escapar dos
constrangimentos estruturais da dependência, da subordinação e dos limites
acanhados da estrutura socioeconômica e política da empresa Brasil e do Estado
que ela criou só para si. A cultura brasileira então escapa da
mediocridade da condição periférica e se propõe a si mesma com pari dignidade
em relação a todas as culturas, apresentando ao mundo seus conteúdos e
suas valências universais”(p.127).
Não há espaço aqui para detalhar esta tese
original. Remeto o leitor/a a este livro que está na linha dos grandes
intérpretes do Brasil a exemplo de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de
Hollanda, de Caio Prado Jr, de Celso Furtado e de outros. A maioria destes
clássicos intérpretes, olharam para trás e tentaram mostrar como se construiu o
Brasil que temos. Souza Lima olha para frente e tenta mostrar como
podemos refundar um Brasil na nova fase planetária, ecozoica, rumo ao que
ele chama “uma sociedade biocentrada”.
Não serão estes milhares de manifestantes, os
protagonistas antecipadores do ancestral e popular sonho brasileiro? Assim o
queira Deus e o permita a história.
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