sexta-feira, 14 de setembro de 2018

BRASIL, 1822: UMA PAÍS PARIDO PELA ESCRAVIDÃO

PARA QUE EU E TODOS OS AMIGOS E AMIGAS TENHAMOS MAIOR SEGURANÇA EM RELAÇÃO À LEITURA DOS MEANDROS QUE DERAM ORIGEM AO IMPÉRIO DO BRASIL, EM 1822, VALE A PENA A LEITURA DESTE ARTIGO DO HISTORIADOR MÁRIO MAESTRI. A PRÓPRIA "UNIDADE", MAIS TERRITORIAL QUE NACIONAL, FOI FRUTO DA ALIANÇA ENTRE OS GRANDES SENHORES DE ESCRAVOS. POR ISSO, O BRASIL FOI PARIDO PELA ESCRAVIDÃO.

VALE LEMBRAR QUE HÁ QUALIFICADA LITERATURA SOCIOPOLÍTICA CRÍTICA QUE DEMONSTRA QUE AS MUDANÇAS APARENTES DA CLASSE DOMINANTE EM NOSSO PAÍS SÃO, NA REALIDADE, MUDANÇAS EM VISTA DE MANTER TUDO IGUAL NO QUARTEL DE ABRANTES. E SEMPRE PARA IMPEDIR A LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS OU DOS TRABALHADORES "LIVRES" E A CONSTRUÇÃO REAL DE UM NAÇÃO. 

Brasil, 1822: um país parido pela escravidão
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Au­ri­verde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e ba­lança,
[...] Antes te hou­vessem roto na ba­talha,
Que ser­vires a um povo de mor­talha!...

Navio Ne­greiro
, Casto Alves

Em ja­neiro de 1821, no Rio Grande do Sul, Au­guste de Saint-Hi­laire ano­tava em seu diário que o Reino do Brasil pe­ri­gava ser "per­dido pela casa de Bra­gança" e que "suas pro­vín­cias" po­diam ex­plodir em na­ções in­de­pen­dentes, "como as colô­nias es­pa­nholas", con­si­de­rando-se a ta­manha di­fe­rença entre as mesmas. O na­tu­ra­lista francês es­crevia co­berto de ra­zões: "Sem falar do Pará e de Per­nam­buco, a ca­pi­tania de Minas e do Rio Grande, já menos dis­tan­ci­adas, di­ferem mais entre si que a França da In­gla­terra”.

Desde sua origem, em iní­cios dos anos 1500, a Amé­rica por­tu­guesa foi cons­ti­tuída por um mo­saico de re­giões semiautô­nomas, de frente para a Eu­ropa e para a África, de costas umas para as ou­tras. As di­versas colô­nias luso-bra­si­leiras ex­por­tavam sua pro­dução mi­ne­rária e agro­pas­toril e im­por­tavam os ma­nu­fa­tu­rados e ca­tivos que con­su­miam pelos grandes portos da costa - Sal­vador, Re­cife, Rio de Ja­neiro etc. Eram muito frá­geis os con­tatos entre as ca­pi­ta­nias e, mais tarde, pro­vín­cias, ine­xis­tindo o que hoje de­fi­nimos como “mer­cado na­ci­onal”. A coroa lu­si­tana tudo fazia para manter os frá­geis con­tatos entre as di­versas partes de seu do­mínio ame­ri­cano.

Nas di­versas re­giões da Amé­rica Lu­si­tana, os grandes pro­pri­e­tá­rios e co­mer­ci­antes es­cra­vistas par­ti­ci­pavam do con­trole do poder local e re­gi­onal em as­so­ci­ação su­bor­di­nada às classes do­mi­nantes me­tro­po­li­tanas, desde 1808, se­di­adas no Rio de Ja­neiro. Os pro­pri­e­tá­rios luso-bra­si­leiros sen­tiam-se mem­bros do im­pério lu­si­tano, pos­suíam laços de iden­ti­dade re­gi­onal  [“rio-gran­dense”; “mi­neiros”; “pau­listas” etc.] e des­co­nhe­ciam sen­ti­mentos ‘na­ci­o­nais’ [“bra­si­leiros”], im­pen­sá­veis e ima­te­ri­a­li­zá­veis de­vido à ine­xis­tência de en­ti­dade na­ci­onal. Ou seja, efe­tivos vín­culos, so­bre­tudo econô­micos e so­ciais, entre as di­versas pro­vín­cias.

Lisboa pelo Rio de Ja­neiro
Em 1808, a fa­mília real, o apa­rato ad­mi­nis­tra­tivo e im­por­tante parte das classes do­mi­nantes lu­si­tanas de­sem­bar­caram no Rio de Ja­neiro, sob a pro­teção da ma­rinha bri­tâ­nica, fu­gidos da in­vasão na­po­leô­nica de Por­tugal e da re­vo­lução li­beral. Com o fim ine­vi­tável do ex­clu­si­vismo co­mer­cial lu­si­tano [“aber­tura dos portos às na­ções amigas”], os in­gleses im­pu­seram taxas al­fan­de­gá­rias pri­vi­le­gi­adas que in­vi­a­bi­li­zaram qual­quer pro­dução ma­nu­fa­tu­reira nas pro­vín­cias do Brasil. Em ver­dade, era tudo que os es­cra­vistas luso-bra­si­leiros que­riam. Ou seja, im­portar ma­nu­fa­tu­rados a baixo preço.

No frigir dos ovos, a exação de Lisboa sobre as pro­vín­cias do Brasil foi subs­ti­tuída pelo tacão, não menos pe­sado, do Rio de Ja­neiro. As even­tuais mai­ores exi­gên­cias da ad­mi­nis­tração real jo­a­nina sobre as pro­vín­cias do Brasil eram com­pen­sadas por um maior aperto no tor­ni­quete que li­te­ral­mente es­ma­gava os tra­ba­lha­dores es­cra­vi­zados. Com a Corte em Lisboa ou no Rio de Ja­neiro, tudo se­guia, mais ou menos, como dantes, no velho quartel de Abrantes!

Em 1820, quando da Re­vo­lução do Porto, a bur­guesia co­mer­cial lu­si­tana mo­bi­lizou-se para por fim ao ab­so­lu­tismo e impor uma ordem li­beral e cons­ti­tu­ci­onal em Por­tugal. Exi­giram, igual­mente, a re­co­lo­ni­zação do Reino do Brasil! Nesse então, como na Amé­rica Es­pa­nhola, já ple­na­mente cons­ci­entes do ca­ráter pa­ra­si­tário da ordem ab­so­lu­tista por­tu­guesa, as classes do­mi­nantes luso-bra­si­leiras al­me­javam in­de­pen­dência res­trita aos li­mites das re­giões que con­tro­lavam. Já em 1817, os li­be­rais per­nam­bu­canos ha­viam sido mas­sa­crados quando se re­be­laram pela in­de­pen­dência da­quela pro­víncia e das que dela de­pen­diam. Não ha­viam pen­sado, por um mo­mento se­quer, na “In­de­pen­dência do Brasil”!

Um Es­tado sem Nação
O Reino do Brasil se­guia sendo en­ti­dade so­bre­tudo ad­mi­nis­tra­tiva, sem vín­culos econô­micos e so­ciais ob­je­tivos e sub­je­tivos entre as di­versas pro­vín­cias. Os laços entre o Rio Grande do Sul e o Prata eram cer­ta­mente mais forte do que os com a Bahia ou Per­nam­buco. Era grande a co­mu­nhão entre o Rio de Ja­neiro e An­gola, até 1850! A cons­trução do Es­tado-nação bra­si­leiro, como o co­nhe­cemos hoje, es­boçou-se fra­gil­mente na es­fera po­lí­tica no II Im­pério; re­cuou na Re­pú­blica Velha, de viés fe­de­ra­lista; foi so­bre­tudo pro­duto do ciclo na­ci­onal-in­dus­tri­a­lista dos anos 1930.

Em iní­cios dos anos 1820, nas pro­vín­cias do Reino do Brasil atu­avam as mesmas forças cen­trí­fugas que ex­plo­diram a Amé­rica es­pa­nhola em cons­telação de re­pú­blicas in­de­pen­dentes - Mé­xico, Ve­ne­zuela, Colômbia, Ar­gen­tina, etc. Pouco serviu àquelas re­giões terem suas classes ex­plo­ra­doras a mesma me­tró­pole, a mesma origem, a mesma língua e a mesma re­li­gião, ao igual do que ocorria com o Brasil.

No Reino do Brasil, ainda que vi­ce­jassem as mesmas ten­dên­cias dis­per­sivas que nos ter­ri­tó­rios cas­te­lhanos, as pro­vín­cias luso-bra­si­leiras emer­giram da Inde­pen­dência co­e­ridas por uma mo­nar­quia for­te­mente cen­tra­liza­dora e au­to­ri­tária. Para não poucos his­to­ri­a­dores, tal fato apre­senta-se como um ver­da­deiro mis­tério his­tó­rico ou é ex­pli­cado por ra­zões su­per­fi­ciais e in­gê­nuas - pre­sença de dom Pedro no Brasil; cla­ri­vi­dência de dom João etc.

Sau­dades do Co­lo­ni­a­lismo
Quando da crise de 1820, as classes do­mi­nantes pro­vin­ciais de­se­javam pôr fim ao go­verno ab­so­lu­tista lu­si­tano se­diado no Rio de Ja­neiro; na­ci­o­na­lizar o co­mércio nas mãos dos lu­si­tanos; re­sistir às cres­centes pres­sões abo­li­ci­o­nistas do trá­fico in­ter­na­ci­onal de tra­ba­lha­dores es­cra­vi­zados; tomar as ré­deas de suas res­pec­tivas pro­vín­cias. No Norte, Nor­deste, Centro-Sul e Sul eram for­tís­simas as ten­dên­cias re­pu­bli­canas e in­de­pen­den­tistas.

Tudo le­vava a crer que o Reino do Brasil ex­plo­diria em uma cons­te­lação de repú­blicas, como as pos­ses­sões es­pa­nholas, que se­quer man­ti­veram os laços uni­tá­rios dos an­tigos vice-rei­nados – Nova Es­panha; Nova Gra­nada; Peru; Prata. Em iní­cios dos anos 1820, a ten­dência era o sur­gi­mento de uma Re­pú­blica Rio-Gran­dense, Pau­lista, Flu­mi­nense, Mi­neira, Per­nam­bu­cana, Baiana, Amazô­nica, de di­men­sões ter­ri­to­riais im­postas pela força das armas de cada re­gião.

En­tre­tanto, um pro­blema maior an­gus­tiava os grandes pro­pri­e­tá­rios de todo o Reino do Brasil. Como re­a­lizar a in­de­pen­dência e não com­pro­meter a es­cra­vidão co­lo­nial, base [apenas mais ou menos de­ter­mi­nante] da pro­dução e da soci­e­dade de todas as pro­vín­cias. Fortes cho­ques mi­li­tares entre as classes propri­e­tá­rias pro­vin­ciais e as tropas me­tro­po­li­tanas, na luta pela in­de­pen­dência, e entre as pri­meiras, na luta pelas novas fron­teiras, en­fra­que­ce­riam a sub­missão dos ca­tivos, dos na­tivos e a ma­nu­tenção do trá­fico tran­sa­tlân­tico de tra­ba­lha­dores es­cra­vi­zados.

Manter o tacão es­cra­vista
As classes pro­pri­e­tá­rias do Reino do Brasil sa­biam que a guerra le­varia ao alista­mento e à fuga de ca­tivos, como ocor­rera du­rante a guerra anti-ho­lan­desa, em 1630-1654, e em di­versas ou­tras oca­siões. Na Amé­rica His­pâ­nica su­ble­vada, os ca­tivos eram alis­tados desde 1810. Os grandes es­cra­vistas luso-bra­si­leiros ti­nham em mente o exemplo ater­ro­ri­zador da su­ble­vação mul­ti­tu­di­nária de ca­tivos que dera a origem ao Haiti in­de­pen­dente e sem es­cra­vidão, em 1804, onde as ca­beças dos ne­greiros ha­viam sido cor­tadas aos mi­lhares, en­quanto os ca­na­viais e casas-grandes ar­diam.

Os Es­tados luso-bra­si­leiros que abo­lissem a es­cra­vidão, por não de­pen­derem es­sen­ci­al­mente da ins­ti­tuição, aco­lhe­riam ca­tivos fu­jões como tra­ba­lha­dores li­vres, como as au­to­ri­dades es­pa­nholas ha­viam feito, antes, e os novos es­tados his­pano-ame­ri­canos, na­queles mo­mentos, co­me­çavam a fazer, já que ca­rentes de mão de obra. Iso­ladas, as pe­quenas na­ções luso-bra­si­leiras de­pen­dentes da es­cra­vidão não re­sis­ti­riam ao abo­li­ci­o­nismo bri­tâ­nico do trá­fico in­ter­na­ci­onal de afri­canos es­cra­vi­zados.

O co­mer­ci­ante in­glês John Ar­mi­tage chegou ao Brasil com 21 anos em 1828. Ele es­creveu uma pers­picaz His­tória do Brasil, na qual re­gis­trou os te­mores das classes proprietárias­ luso-bra­si­leiras: "Quais­quer ten­ta­tivas pre­ma­turas para o es­ta­be­le­ci­mento da re­pú­blica te­riam sido se­guidas de uma guerra san­gui­no­lenta e du­ra­doura, na qual a parte es­crava da po­pu­lação teria pe­gado em armas, e a de­sordem e a des­truição te­riam as­so­lado a mais bela porção da Amé­rica Me­ri­di­onal”. Para manter-se a es­cra­vidão, man­teve-se a uni­dade do Reino do Brasil, trans­for­mado em Im­pério. Mu­dava-se al­gumas coisa, para que tudo se­guisse como sempre, so­bre­tudo no re­la­tivo ao braço es­cra­vi­zado.

O Brasil nasceu da Es­cra­vidão
O Es­tado mo­nár­quico, au­to­ri­tário e cen­tra­li­zador bra­si­leiro - ou seja, o Brasil uni­tário - foi par­te­jado e em­ba­lado pelos in­te­resses do co­mércio e da pro­dução es­cra­vista co­lo­nial. A In­de­pen­dência uni­tária deu-se sob a ba­tuta con­ser­va­dora dos grandes es­cra­vistas, com des­taque para os do Rio Grande do Sul, do Rio de Ja­neiro, de São Paulo, de Minas Ge­rais, da Bahia e de Per­nam­buco. Os ideá­rios re­pu­bli­canos, se­pa­ra­tistas e fe­de­ra­listas pro­vin­ciais das frá­geis “classes mé­dias” pro­fis­si­o­nais, dos pe­quenos pro­pri­e­tá­rios não es­cra­vistas etc. foram sim­ples­mente re­pri­midos.

Nos mo­mentos tensos da in­de­pen­dência, para apa­zi­guar re­pu­bli­canos, se­pa­ra­tistas, fe­de­ra­listas, foi-lhes su­ge­rida, antes do 7 de se­tembro de 1822, uma even­tual ar­qui­te­tura po­lí­tica mo­nár­quica fe­de­ra­lista e li­beral, a ser dis­cu­tida quando da As­sem­bleia Cons­ti­tuinte. Em no­vembro de 1823, o tru­cu­lento e ab­so­lu­tista Pedro I res­pondeu às rei­vin­di­ca­ções dos de­pu­tados cons­ti­tuintes pro­vin­ciais com o pri­meiro golpe mi­litar da nova nação. Então, fe­chou a As­sem­bleia Cons­ti­tuinte e mandou re­digir carta cen­tra­lista, au­to­ri­tária, de forte viés ab­so­lu­tista [poder “mo­de­rador”], que regeu o país até 1889. Em 1824, quando os li­be­rais per­nam­bu­canos se le­van­taram em armas, su­focou a re­be­lião em um banho de sangue que se­quer res­peitou a Cons­ti­tuição por ele apenas ou­tor­gada.

A in­de­pen­dência  do Brasil foi a mais con­ser­va­dora das Amé­ricas. Os grandes pro­pri­e­tá­rios es­cra­vistas das di­versas pro­vín­cias luso-bra­si­leiras rom­peram com o Es­tado e o ab­so­lu­tismo por­tu­guês e en­tro­ni­zavam o au­to­ri­tário her­deiro do reino lu­si­tano. Cor­taram as amarras com a ex-me­tró­pole e tran­si­giram com os seus in­te­resses mer­cantis e de sua casa real. Pedro I con­cedeu imensa in­de­ni­zação ao seu pai pela in­de­pen­dência do Brasil, que co­brou do Es­tado que di­rigia quando dom João morreu! Aceitou que o Im­pério do Brasil pa­gasse à In­gla­terra o em­prés­timo con­ce­dido a Por­tugal... Para com­bater a in­de­pen­dência da ex-colônia!

As grandes classes do­mi­nantes es­cra­vistas pro­vin­ciais man­ti­veram-se unidas, sob o im­pério do tacão mo­nár­quico cen­tra­li­zador, para ga­rantir, por mais de seis dé­cadas, a ex­plo­ração do tra­ba­lhador es­cra­vi­zado. Com a ex­pansão ca­fei­cul­tora, mi­lhares e mi­lhares de afri­canos e afri­canas foram de­sem­bar­cados em nossas costas, até os anos 1850. O Im­pério do Brasil foi a úl­tima nação do mundo a abolir a es­cra­vidão co­lo­nial! Mo­nar­quia, Es­tado, Igreja, Jus­tiça, grandes pro­pri­e­tá­rios, todos se uniram para manter seus pri­vi­lé­gios à custa do suor e do sangue do tra­ba­lhador es­cra­vi­zado.

Mário Ma­estri 70 é his­to­ri­ador.
Con­tato: 
ma­es­tri1789@​gmail.​com

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