NÃO É ISSO QUE ESTÁ ACONTECENDO NESTE ANO?
IHU - Terça, 01 de abril de 2014
Para ganhador
de prêmio Nobel, cheias no Norte e secas no Sudeste estão conectadas
Você sabia que um cientista ganhador do Prêmio Nobel mora
e ensina no Brasil? Talvez pense que ele é paparicado e ouvido em todas as
questões relativas a seu campo de pesquisas. Pois saiba que não, muito pelo
contrário. O Nobel radicado no Brasil é tratado
como uma batata quente pelo establishment porque, há cerca de 40 anos radicado
na Amazônia, é uma voz que clama no deserto (verde),
alertando para a rápida destruição da floresta e suas graves consequências.
A reportagem é de Leão Serva, publicada pelo portal UOL,
30-03-2014.
Philip Fearnside, 66, cientista especializado em
climatologia baseado em Manaus, vem há
décadas advertindo sobre o risco crescente de catástrofes climáticas, em
estudos sempre recebidos com frieza pelas autoridades brasileiras e com
ciclotimia pela imprensa local.
Sentado ao fundo de sua sala no campus do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa, em Manaus,Fearnside parece
encoberto por um dilúvio de livros, pastas e documentos soltos que abarrotam as
estantes até o teto fazendo-o parecer pequeno, apesar de seus mais de 1,95m de
altura. Ele me manda entrar ainda de costas para a porta e, quando se volta
para me cumprimentar, o efeito de enchente é aumentado por seu imenso bigode,
que faz lembrar o de Friedrich Nietzsche (ele diz que o autor de "Assim Falou Zaratustra" não o inspirou).
Daquela sala que parece uma biblioteca babélica, Fearnside dispara os estudos que fizeram dele um
dos dois cientistas mais citados do mundo em termos de aquecimento global,
segundo levantamento da Thomson-ISI, que
mede produção científica. A consistência de suas pesquisas o levou para o IPCC, o painel de cientistas de todo o mundo reunidos pelaONU para estudar os efeitos das mudanças
climáticas no planeta. Nos próximos dias, o IPCC divulgará mais um relatório de acompanhamento
dos impactos dessas mudanças. Foi no painel que Fearnside ganhou
o Nobel da Paz em 2007, ao lado dos outros
cientistas do IPCC, pelo trabalho do grupo ao
alertar sobre os riscos do aquecimento global.
Foi quase por acaso que Fearnside, ainda um
jovem pesquisador de 26 anos, veio fazer no Brasil a
pesquisa para seu doutorado, em 1974. No mestrado, que ele defendeu na
Universidade de Michigan, tinha estudado a capacidade do ambiente do Rajastão, na Índia, suportar a
ocupação humana que se intensificava com a construção de barragens para
irrigação e produção de eletricidade.
Queria continuar a estudar aquela região também no doutorado, na mesma
universidade. Tinha feito um grande investimento para aprender hindi, morara
alguns anos em uma pequena vila daquela região, onde acumulara dados e
contatos. Mas depois de iniciada a guerra entre a Índia e o vizinho Paquistão, este último apoiado pelos EstadosUnidos, o cientista americano se tornou persona
non grata no país.
Decidiu então vir para o Brasil, estudar como
a floresta amazônica suporta a ocupação humana.
Depois de dois anos, defendeu a tese nos EUA em 1978, já
completamente apaixonado pelo país. Uma palestra no Inpa levou mais tarde a uma oferta de emprego, e
ficou.
Em 36 anos, cresceu e frutificou: casou com uma pesquisadora brasileira
que também estuda assuntos amazônicos, teve duas filhas, escreveu cerca de
1.800 ensaios, entre livros, conferências e outros itens (dos quais 492 são
artigos científicos e capítulos de livros), participou da formação de dezenas
de pesquisadores. Hoje, apesar do forte sotaque, o cientista está profundamente
aclimatado ao país, podendo passar por brasileiro em um território de tantas
línguas e sotaques como é a Amazônia.
Batata
Quente
Foi durante a pesquisa do doutorado, em 1976, que produziu a primeira "batata quente": ao estudar assentamentos decolonização do Incra, encontrou no
escritório do órgão mapas que mostravam os alagamentos que seriam provocados às
margens do rio Xingu por uma série de barragens que vinham
sendo planejadas pela ditadura para viabilizar na região um conjunto de usinas hidrelétricas, entre as quais uma ironicamente
chamada Kararaô, que agora é construída com o nome de Belo Monte.
Ao divulgar o projeto de inundação de vastas áreas do Xingu, contribuiu no início do movimento que ao
final dos anos 1980, no governo Sarney,
juntou contra as barragens índios, ecologistas, políticos democratas e gente da
sociedade civil do mundo todo, como o músico Sting. Diante da
resistência, o presidente Collor arquivou os
planos, que ogoverno Lula decidiu desarquivar.
Até hoje, Fearnside segue confrontando o
discurso oficial sobre o tema: desde que a então ministra Dilma Rousseffreciclou o plano dos militares, alegando
que o projeto agora seria de uma única hidrelétrica junto à chamada "Volta
Grande" do Xingu, o pesquisador vem afirmando
que nenhum governante, por mais autoritário e maluco, faria uma obra de tal
custo (hoje em torno de R$ 40 bilhões) para deixar 11 mil megawatts de turbinas
paradas durante quatro meses por ano, em função do regime de chuvas da região.
Ele sempre diz que o governo em breve anunciará outras barragens. De
fato, Belo Monte nem começa a tomar forma e já se fala
na necessidade de represas rio acima para acumularem água e garantir o
funcionamento da hidrelétrica.
Fearnside está há 45
anos alertando para o chamado "efeito estufa".
Isso foi em seu primeiro emprego, no Parque Nacional dos Glaciares,
em Montana, Estados Unidos, onde ele dava palestras aos turistas sobre as
grandes geleiras da região, na fronteira com o Canadá.
Ali, passou a incluir nas aulas referências ao aumento da temperatura do
planeta, que levaria ao derretimento do gelo no alto das montanhas em algumas
décadas. Seu discurso parecia inverossímil, mas as palestras do jovem de 21
anos ainda não completaram meio século e as geleiras de Montana estão
desaparecendo: hoje os estudiosos dizem que elas só vão durar mais dez anos.
Bola
de Cristal
Desde a primeira previsão, outras tantas se sucederam. Na Amazônia, ainda nos anos 1980, Fearnside escreveu que se nada fosse feito, a floresta como sistema climático iria desaparecer em 50 anos.
Passaram-se 25, o desmatamento continuou e vários fenômenos associados também.
O principal deles é a redução da umidade naquela área, porque o desmatamento
faz com que a água das chuvas não seja retida. O ar se torna mais seco: na
época da estiagem, meados do ano, a umidade relativa em Manaus já chega a cair abaixo de 20%, como nos
desertos. Outra consequência dodesmatamento é que a água das chuvas escorre
diretamente para a calha dos rios, provocando enchentes maiores.
Uma terceira consequência do desmatamento em grande escala da região,
que Fearnside detalhou em 2004, mostra que menos água
da Amazônia seria transportada pelos ventos para o
Sudeste durante a temporada de chuvas, o que reduziria a água das chuvas de
verão nos reservatórios de São Paulo.
Bingo! Este ano, o Rio Madeira, principal afluente do Amazonas, vive a maior cheia em décadas e a água
invade as margens deixando milhares de pessoas sob enchente. Ao mesmo tempo,
reservatórios de São Paulo se encontram nos níveis mais baixos da história
depois do mais seco dos verões, deixando milhões sem água. "O pior é que
essa água só é transportada para São Paulo no
verão, no resto do ano, o transporte cai. Se não encher os reservatórios na
temporada de chuvas, só no ano seguinte", explica.
Pergunto se ele não se assusta diante dos estudos que indicam a besta do Apocalipse ambiental chegando a galope: "Não
sei se a palavra é essa. O importante é tomar decisões antes dos grandes
desastres, não depois".
Insisto: você já viu um sistema econômico se
autocorrigir para evitar uma catástrofe? Ele
responde com otimismo: "Oburaco de ozônio é
um exemplo de mudança. O protocolo de Montreal reverteu
o problema. Está certo que foi mais fácil, pois as empresas que vendiam o CFC passaram a fornecer novos compostos que o
substituíram". Já oaquecimento global afeta várias das maiores empresas
do mundo, como as petroleiras e as cadeias produtivas relacionadas.
Ao se despedir, procura transmitir sua determinação otimista: "O
importante é não ser fatalista. A declaração de que o mundo vai acabar não é
construtiva. Se você pensa que tudo está perdido, não faz nada e a profecia se
realiza". Não consigo deixar de pensar: "Assim falou Fearnside".
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