estou retornando de trabalhos realizados na Região Serrana do Rio de Janeiro - a reunião da Comissão Provisória do MONADES (Movimento Nacional de Afetados por Desastres Socioambientais) e o Seminário em que foi publicado o documento que segue. Retorno com sentimentos de profunda admiração pela capacidade de superação da população da região, uma das mais afetadas por eventos climáticos extremos do Brasil. Ser capaz de não deixar-se imobilizar com a morte constatada de mais de 900 pessoas, sempre amigas, parentes, vizinhas, em cada uma das comunidades afetadas, já é ser testemunha de resitência e de esperança que remetem à consagração absoluta da vida presente na ressurreição de Jesus de Nazaré. Por este motivo, volto mais humanizado e agradecido ao povo destas belíssimas montanhas, infelizmente agredidas e descuidadas por seres humanos.
Por outro lado, mais uma vez retorno com sentimento de indignação em relação à péssima presença e atuação do Estado brasileiro. Vocês poderão compartilhar comigo esse sentimento ao ler o documento elaborado pelos participantes do Seminário e entregue a gestores públicos que representaram órgãos do Governo Federal, estadual e municipal.
Quero ainda compartilhar a alegria dos membros da Comissão do MONADES, tanto nos dias da reunião, muito produtiva, como na sua prática de co-promotores do Seminário. Aos poucos, como tudo que é vivo, este movimento social vai se consolidando, e com ele, a voz dos milhares de Afetados por desastres sociambientais em todo o país.
Dediquem um tempo à leitura do documento do Seminário, pois é oportunidade para perceber a realidade da vida, a reflexão e a prática da cidadania dos participantes, reunidos em Teresópolis nos dias 26 e 27 de abril.
SEMINÁRIO SOBRE IMPACTOS DOS
DESASTRES SOCIOAMBEINTAIS NO RIO DE JANEIRO
INTERLOCUÇÃO DOS
PARTICIPANTES DO SEMINÁRIO COM REPRESENTANTES DO GOVERNO FEDERAL, ESTADUAL E
MUNICIPAL
As entidades
promotoras e todos os participantes do Seminário apresentam às autoridades
governamentais presentes, e através deles, a todas as instâncias de governo, um
resumo da realidade constatada e da análise crítica do que ocorre na Região
Serrana e em outras regiões do estado do Rio de Janeiro e, a partir desses
dados e em vista da superação dos problemas e desafios, algumas propostas de
políticas e de ações por parte dos municípios, do estado e do governo federal.
Nosso objetivo é contribuir, como cidadãos e cidadãs, com a responsabilidade
das instituições do Estado Brasileiro.
Os
participantes assumem o compromisso de manterem-se articulados para atuar com
mais eficácia junto aos afetados por desastres socioambientais, promovendo a
autoestima, reforçando a organização e o protagonismo das pessoas, famílias e
comunidades afetadas, e lutando, junto com elas, para que haja efetivas
políticas públicas que reconheçam, promovam e garantam seus direitos. Sem
substituir o Estado, decidem melhorar cada dia mais seu serviço aos
empobrecidos, promovendo todas as dimensões da vida humana através da acolhida,
do diálogo, do apoio psicológico, do estímulo para a prática da cidadania na
busca e construção de novas formas de viver, junto com as pessoas e com o
ambiente vital da Terra.
1. REALIDADE DA VIDA E DO MEIO AMBIENTE
É triste constatar que há famílias de atingidos desde a década de 1980
que ainda estão sem casa, e que outras estão com Aluguel Social nos municípios
desde 2008, e continuam sem perspectivas de quando terão casas para morar.
As pessoas estão cansadas de preencher cadastros sem que nada de novo
aconteça; fica claro para elas que não há articulação entre repartições e órgãos
públicos municipais, estaduais, federais, pois não repassam os dados uns aos
outros.
Não há em toda a região política pública fundiária e habitacional, gerando
insegurança geral, de modo especial quando se cria um ambiente em que se
anuncia desocupações de áreas sem garantias de realocação.
A extinção da política
habitacional há trinta anos, aliada à política imediatista e do uso de
regularização de ocupações irregulares com fins eleitoreiros, contribuiu para
se chegar à situação que agravou os efeitos sociais e ambientais dos desastres.
Na região rural, constatam-se graves problemas em relação às indenizações:
muito abaixo do valor para a terra e benfeitorias dos que são proprietários, e quase
inexistente para as posses e bens dos posseiros.
A falta de mapeamento de risco e revisão dos planos diretores dos
municípios tendo presente a nova realidade das mudanças climáticas deixa a
região em ambiente de insegurança permanente e dificulta ações efetivas no
enfrentamento dos problemas.
O projeto de construtoras e empreiteiras de construir um conjunto
habitacional de prédios em uma única área, juntando famílias de áreas urbanas e
rurais, sem respeito aos parentescos, vizinhanças, cultura, contraria o Decreto
do Governo do Estado no sentido de que deveriam ser respeitadas as áreas e o
grupo social nos casos de reassentamento e é rejeitado pelos atingidos por
desastres socioambientais por ser uma afronta a seus direitos e ser uma nova
forma de discriminação social.
Para as famílias das áreas camponesas, a transferência para
apartamentos do conjunto habitacional é inaceitável, desnorteador, pois não têm
empregos urbanos e desejam continuar trabalhando na agricultura.
Não tem fundamento a afirmação de que não haveria terrenos em boas
condições para reassentamentos descentralizados; a oferta das imobiliárias
prova o contrário; na verdade, seria possível um número maior de assentamentos
com menor número e maior qualidade de vida.
É geral a falta de acesso às informações sobre o que é decidido em
relação às pessoas, sobre os processos de desapropriação, sobre os direitos dos
atingidos, e a classificação da situação é feita de cima para baixo, com autoritarismo,
sem que a população tenha amplo acesso aos processos administrativos.
É escandaloso que das mais de 74 pontes necessárias, apenas uma ponte tenha
sido construída.
A infraestrutura de estradas, pontes, retirada de entulhos, contenção
de encostas, reflorestamentos, saneamento, transporte continuam num abandono
geral.
A população não entende e não aceita os absurdos processos de desassoreamento
dos rios, alguns deles abandonados pouco depois de começados.
As famílias estão cansadas por causa do longo tempo de abandono, agravado
por cobranças em relação ao que foi perdido: documentos, cartão de crédito, carros
e outros bens financiados...
A indefinição do que acontecerá com as pessoas e comunidades, e a falta
de um plano bem estruturado do que será realizado, deixa as pessoas
desorientadas e até mesmo as instâncias públicas batem cabeça e são
ineficientes.
Não há apoio psicológico e assistência à saúde de todas as pessoas
afetadas, e no caso das crianças, falta apoio e segurança para seu processo
escolar.
Constata-se falta de transparência em relação aos recursos públicos
destinados aos atingidos e afetados: criam-se expectativas, mas nada é feito.
Onde estão os recursos liberados? Não existe participação da sociedade no
controle dos recursos públicos.
Constata-se incompetência administrativa dos municípios para dar conta
do que é necessário fazer para garantir os direitos dos afetados.
Em relação aos projetos exigidos para acessar recursos públicos,
constata-se que há exigências burocráticas que tornam praticamente impossível seu
acesso pelos afetados por desastres.
2. CAUSAS DAS SITUAÇÕES CONSTATADAS
O agravamento das precipitações pluviométricas em toda a Região Serrana
do RJ tem como causa o aquecimento global provocado pela emissão de gases de
efeito estufa em todo o planeta, processo em que o Brasil também contribui
através de diferentes atividades econômicas e especialmente com a derrubada e
queima de florestas, que se agravará, com certeza, se for aplicado o chamado
novo Código Florestal, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional. A
situação de desequilíbrio ambiental provocado por ações humanas só se agravará
se o desenvolvimento continuar centrado e a serviço da economia comandada por
grupos econômicos que só buscam mais e mais lucros, sem levar em conta a vida
de todas as pessoas, de todos os seres vivos e da própria vida da Terra.
A falta de uma política habitacional que garanta o direito à moradia
aos empobrecidos, bem como a falta de ação pública de proteção das Áreas de
Proteção Permanente, resultou na construção de moradias e iniciativas agrícolas
e de turismo em beiras de rios e em encostas, agravando os efeitos das
enchentes e aumentando os riscos de desastres sociais.
Tudo indica que está em andamento a prática de “indústria dos desastres
socioambientais”, pois estão sendo usados como oportunidades para negócios
privados e para desvios e má gestão dos recursos também por órgãos públicos.
A falta de ação conjunta das instâncias de governo está na raiz do
emperramento e da falta de atendimento e garantia dos direitos sociais e
ambientais nas áreas de desastres socioambientais.
As divisões e desaforos partidários têm tudo a ver com a inexistência
de políticas públicas efetivas e com a construção de justificativas pela
ausência do Estado junto à população que teve perda total em desastres.
A falta de políticas e de investimento em prevenção confirma a falta de
empenho na busca de soluções definitivas do que provoca desastres – e quando
algo é feito, só se considera as áreas urbanas, e não as áreas rurais, e é feito
sem participação popular, sem valorizar o que o povo sabe e pode fazer.
A burocratização, a falta de interligação entre as áreas de gestão
governamental, que aparece, por exemplo, na incapacidade de uso comum dos dados
e informações colhidos, encarece as iniciativas, torna ineficiente sua atuação
e leva a sociedade ao descrédito em relação ao poder público.
A ineficiência e baixa qualidade dos serviços públicos estão ligados,
entre outras causas, à falta de formação e capacitação dos funcionários das
prefeituras.
O incentivo a ocupações desordenadas impede iniciativas econômicas e
geração de oportunidades de trabalho em toda a região.
A significativa produção agrícola sofre pela indefinição fundiária e
deixa na insegurança os produtores, especialmente os que não têm título de
propriedade.
A educação escolar é descolada da realidade e não incorpora a educação
para a defesa civil num contexto de mudanças climáticas.
Há um descolamento e até contraposição entre Estado e cidadania, gerando
desconfianças e descrédito e impedindo efetivas ações conjuntas.
3. PROPOSTAS
Tendo presente a realidade da Região Serrana e demais regiões do estado
do Rio de Janeiro, os participantes do presente Seminário apresentam aos
responsáveis pelas políticas públicas as propostas que seguem.
1. É preciso que as políticas de prevenção e de enfrentamento dos
efeitos sociais e ambientais dos desastres socioambientais sejam articulados
com a Política Nacional de Mudanças Climáticas, visando implementar mudanças
que impeçam ou minimizem os desastres e para garantir que os direitos dos
atingidos sejam garantidos imediatamente e com iniciativas que contribuam para
a recuperação das áreas degradadas por desastres.
2. Em vista disso, é absolutamente inaceitável que entre em vigor o
chamado “novo código florestal” aprovado pelo Congresso Nacional, e o presente
Seminário reforça a proposta dos movimentos sociais em favor do veto da
presidente Dilma ou da convocação de um Referendo Popular, para que a cidadania
decida se aceita ou não o que foi decidido pelo Congresso.
3. É absolutamente prioritário definir uma política habitacional
específica para os atingidos por desastres socioambientais, com os seguintes
critérios: sejam construídas casas, e não prédios de microapartamentos; sejam
construídas em núcleos descentralizados, que respeitem as práticas e relações
culturais, que colaborem para manter a estrutura social que existia; sejam
construídas em locais próximos aos meios de vida que as pessoas tinham. Quando
uma comunidade aceitar a construção de apartamentos, que o seu tamanho seja
definido pela população e que sejam considerados critérios acima referidos.
4. Que a política habitacional tenha a mesma prioridade dada à política
ambiental, e seja bem relacionada com ela. Nesse sentido, é preciso rever e
reelaborar, com participação real da população, o zoneamento urbano e rural e o
planejamento da ocupação do território de cada município.
5. Que seja elaborado um plano de metas de curto, médio e longo prazo
para concretização desta política habitacional, garantindo o direito à
habitação de todas as famílias e pessoas afetadas por desastres
socioambientais. Que o aluguel social não seja usado como desculpa para atrasar
a construção das moradias; pelo contrário, que as habitações sejam construídas
no menor prazo possível para evitar gastos com aluguel social.
6. Que os programas de construção de casas para os atingidos por
desastres não seja vinculado ao Minha Casa Minha Vida, pois eles têm direito garantido
pela Constituição à moradia sem assumir dívidas.
7. Que seja definida uma política de ações preventivas, com estratégias
de urbanização de áreas carentes, intervenção nas áreas de risco, com troca de
casa por casa e de terra por terra quando a realocação for necessária.
8. Que sejam definidas metas de curto e médio prazo para a recuperação
de pontes, estradas, desassoreamento de rios, contenção de encostas,
recuperação das matas ciliares, reflorestamento de encostas. E que haja mais
alternativas de transporte para a população rural.
9. Que as políticas públicas e projetos sejam sempre elaborados,
implementados, avaliados e fiscalizados com participação popular e com controle
social na gestão dos recursos. E é preciso garantir que os recursos liberados
não retornem sem sua aplicação nos objetivos a que se destinam. Nesse sentido,
que haja efetiva corresponsabilidade governamental na execução dos projetos
aprovados e no uso dos recursos a eles destinados.
10. Para viabilizar a participação cidadã, que sejam implementadas
ações que garantam acesso da população a todas as informações que dizem
respeito à sua vida.
11. Que seja construída comunitariamente uma política de educação
ambiental crítica que leve os moradores da região a entender os fenômenos das
mudanças climáticas e suas consequências na região para se pensar estratégias
de prevenção e de adaptação.
12. Que seja fortalecida a rede de cuidados em todos os locais através
da articulação e responsabilização psicossocial, levando-se em consideração a
necessidade de aumento de profissionais de saúde comunitária frente ao aumento
da demanda de vítimas de desastres socioambientais.
Teresópolis, 27 de
junho de 2012.
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