quinta-feira, 28 de julho de 2016

FOLHA DE SÃO PAULO: FRAUDE JORNALÍSTICA

VALE A PENA LER ESTE ARTIGO PARA TER A PROVA DE QUE NOSSOS "MEIOS PRIVADOS DE COMUNICAÇÃO" INFORMAM O QUE QUEREM, OCULTANDO DADOS E MENTINDO, MESMO QUANDO A PESQUISA É DA PRÓPRIA EMPRESA. 

QUANDO NOS LIVRAREMOS DA DOMINAÇÃO OLIGÁRQUICA DA INFORMAÇÃO? QUANDO TEREMOS MEIOS REALMENTE PÚBLICOS DE COMUNICAÇÃO? O MAIOR RISCO DE NÃO TERMOS UM CONTRAPONTO PÚBLICO É EXATAMENTE O QUE FEZ A FOLHA: USA E ABUSA DA SELEÇÃO E DA MENTIRA EM FAVOR DE SUAS PREFERÊNCIAS POLÍTICAS.

A fraude jornalística da "Folha" é ainda pior:
surgem novas evidências

Na quarta-feira (20), a Intercept publicou um artigo documentando a incrível “fraude jornalística” cometida pelo maior jornal do país, Folha de São Paulo, contendo uma interpretação extremamente distorcida das respostas dos eleitores à pesquisa sobre a crise política atual. Mais especificamente, a Folha – em uma manchete que chocou grande parte do país – alegava que 50% dos brasileiros desejavam que o presidente interino, e extremamente impopular, Michel Temer, concluísse o mandato de Dilma e continuasse como presidente até 2018, enquanto apenas 3% do eleitorado era favorável a novas eleições, e apenas 4% desejava que Dilma e Temer renunciassem. Isso estava em flagrante desacordo com pesquisas anteriores que mostravam expressivas maiorias em oposição a Temer e favoráveis a novas eleições. Conforme escrevemos, os dados da pesquisa – somente publicados dois dias depois pelo instituto de pesquisa da Folha – estavam longe de confirmar tais alegações.

A reportagem é publicada por The Intercept, 21-07-2016. A tradução é de Inácio Vieira e publicada por Rede Brasil Atual – RBA.

Depois da publicação de nosso artigo, foram encontrados ainda mais indícios – através de um trabalho colaborativo incrível de verdadeiros detetives da era digital – que revelam a gravidade da abordagem da Folha, incluindo a descoberta de um legítimo “smoking gun” comprovando que a situação era muito pior do que achávamos quando publicamos nosso artigo ontem. É importante não deixar o aspecto estatístico e metodológico encubra a importância desse episódio.
Semanas antes da conclusão do conflito político mais virulento dos últimos anos – a votação final do impeachment de Dilma no Senado Federal – a Folha, maior e mais importante jornal do país, não apenas distorceu, mas efetivamente escondeu, dados cruciais da pesquisa que negam em gênero, número e grau a matéria original. Esses dados demonstram que a grande maioria dos brasileiros desejam a renúncia de Michel Temer, e não que o “presidente interino” permaneça no cargo, como informado pelo jornal. Colocado de forma simples, esse é um dos casos de irresponsabilidade jornalística mais graves que se pode imaginar.
A desconstrução completa da matéria da Folha começou quando Brad Brooks, Correspondente Chefe da Reuters no Brasil, observou uma enorme discrepância: enquanto a Folha anunciava em sua capa que apenas 3% dos brasileiros queriam novas eleições e que 50% queria a permanência de Temer, o instituto de pesquisa do jornal, Datafolha, havia publicado um comunicado à imprensa com os dados da pesquisa anunciando que 60% dos brasileiros queriam novas eleições. Observe essa impressionante contradição:
Como isso é possível? Nós entramos em contato com o Datafolha imediatamente para esclarecer a dúvida, mas como grande parte dos veículos de comunicação já havia lido nosso artigo e o assunto havia se tornado uma controvérsia nacional, o instituto se recusou a se manifestar. Eles simplesmente não queriam nos explicar a natureza da discrepância.
Mas essa revelação levou a outro mistério: nos dados e perguntas complementares publicados pelo Datafolha, não havia nenhuma informação mostrando que 60% dos brasileiros eram favoráveis a novas eleições, como dizia um dos enunciados da pesquisa do instituto. Parecia evidente que o Datafolha havia publicado apenas algumas das perguntas feitas aos entrevistados. Apesar das perguntas estarem numeradas, o documento contava apenas com as perguntas 7-10, 12-13 e 21. Isso não é necessariamente incomum ou incorreto (jornais tendem a omitir perguntas sobre tópicos menos relevantes ao publicar uma reportagem), mas era estranho que nenhuma das perguntas publicadas pelo Datafolha confirmasse ou tivesse relação com a afirmação do enunciado da pesquisa. De onde, então, saiu essa informação – 60% – que contradiz a reportagem de primeira página da Folha?

A resposta veio através do excelente esforço investigativo de Fernando Brito do site Tijolaço. Primeiro, a equipe do site observou que o endereço URL do documento do Datafolha com os dados e perguntas complementares à pesquisa que foi publicado na segunda-feira – documento citado em nosso artigo original mostrando que a manchete da Folha era falsa – terminava em “v2”, ou seja, era a segunda versão do documento publicado pelo Datafolha. A equipe procurou a versão original, mas não foi possível encontrá-la no site do instituto. Eles começaram a tentar adivinhar o endereço URL da versão original, até que acertaram. Embora a versão original tivesse sido retirada do ar pelo Datafolha, ainda se encontrava nos servidores do instituto, e ao acertar o endereço URL correto o Tijolaço teve acesso ao documento.
O que foi encontrado na versão original do documento – aparentemente retirada do ar de forma discreta pelo Datafolha– é de tirar o fôlego. Ficou comprovado que a matéria da Folha era uma fraude jornalística completa. A pergunta 14, encontrada na versão original, dizia:
“Uma situação em que poderia haver novas eleições presidenciais no Brasil seria em caso de renúncia de Dilma Rousseff e Michel Temer a seus cargos. Você é a favor ou contra Michel Temer e Dilma Rousseff renunciarem para a convocação de novas eleições para a Presidência da República ainda neste ano?”

Os dados não publicados pelo Datafolha mostram que 62% dos brasileiros são favoráveis à renúncia de Dilma e Temer, e à realização de novas eleições, enquanto 30% são contrários a essa solução. Isso significa que, ao contrário da afirmação da Folha de que apenas 3% querem novas eleições e 50% dos brasileiros querem a permanência de Temer como presidente até 2018 – ao menos 62% dos brasileiros, uma ampla maioria, querem a renúncia imediata de Temer.
A situação é ainda pior para a Folha (e Temer): a porcentagem de eleitores que deseja a renúncia imediata de Temer é certamente muito maior do que esses 62%. A pergunta colocada pelo Datafolha era se os entrevistados eram favoráveis à renúncia de Temer /e Dilma/. Muitos dos que responderam “não” – conforme demonstrado pelos detalhes dos dados – são apoiadores do PT e/ou querem Lula como presidente em 2018, o que significa responderam que “não” porque querem que Dilma retorne, e não porque querem a permanência de Temer. Portanto – conforme concluído pelo Ibope em abril – apenas uma minoria dos eleitores querem Temer como presidente: exatamente o oposto da informação” publicada pela Folha.
Essa não foi a única informação ausente que o Tijolaço descobriu quando encontrou a primeira versão dos dados publicados. Como explicam de maneira detalhada, havia dois parágrafos inteiros escritos pelo DataFolha resumindo os dados das respostas que também foram removidos da segunda versão publicada, inclusive a seguinte frase: “a maioria (62%) declarou ser a favor de uma nova votação para o cargo de presidente”
A equipe também descobriu uma pergunta não revelada – a pergunta 11 – que é provavelmente a mais favorável a Dilma e foi completamente omitida pela Folha. O DataFolha perguntou:
“Na sua opinião, o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff está seguindo a regras democráticas e a Constituição ou está desrespeitando as regras democráticas e a Constituição?”
Apenas 49% disseram que o impeachment cumpre as regras democráticas e respeita a Constituição, enquanto 37% disseram que não. Como a Folha pode omitir este dado tão surpreendente e importante quando, supostamente, quer descrever a visão dos eleitores sobre o impeachment?
Ontem, a Folha publicou uma “notícia” sobre o que chamou de “controvérsia” provocada por nosso artigo. O jornal se esquiva e, em muitos casos ignora a maioria destas questões importantes.
O artigo confirma que, ao contrário de sua afirmação anterior de que apenas 3% dos brasileiros querem novas eleições, “a porcentagem de favoráveis a novas eleições, no entanto, sobe para 62% nas respostas estimuladas, ou seja, quando o instituto pergunta explicitamente”. E incluiu as duas perguntas que havia mantido em segredo: uma demonstrando que a maioria quer a saída de Temer, e outra mostrando uma expressiva minoria que vê o impeachment como uma violação da democracia (a Folha deixou de mencionar que estes novos dados, na verdade, haviam sido publicados anteriormente pelo Tijolaço).
No entanto, o jornal insistiu que não havia nada de errado em esconder esses dados. Publicaram uma citação do próprio editor executivo, Sérgio Dávila, argumentando que é “prerrogativa da Redação escolher o que acha jornalisticamente mais relevante no momento em que decide publicar a pesquisa”. Dávila insistiu que “o resultado da questão sobre a dupla renúncia de Dilma e Temer não nos pareceu especialmente noticioso, por praticamente repetir a tendência de pesquisa anterior e pela mudança no atual cenário político, em que essa possibilidade não é mais levada em conta.”
Não se pode subestimar a desonestidade dessa resposta e quanto o editor executivo da Folha conta com a ingenuidade de seus leitores. O maior absurdo da reportagem da Folha foi dizer que o país deseja a permanência de Temer como presidente até 2018 e apenas uma pequena porcentagem quer novas eleições. Mas, ao mesmo tempo em que publicava isso, a Folha tinha em mãos os dados que provam que essas afirmações eram 100% falsas, mostrando que, na realidade, o oposto era verdadeiro. A grande maioria dos brasileiros querem que Temer saia do poder, e não que o interino permaneça como presidente. E uma expressiva maioria, não uma parcela ínfima, quer novas eleições.
 
Nenhuma das desculpas de Dávila resiste sequer ao menor questionamento. Se é jornalisticamente irrelevante saber a porcentagem de brasileiros favoráveis a novas eleições, por que a Folha encomendou a pergunta? Se essa pergunta sobre novas eleições é irrelevante, por que esse dado foi não apenas incluído, mas proeminentemente destacado pelo Datafolha no título do relatório original? Por que, se esse dado é irrelevante, o Datafolha o publicou originalmente e depois o retirou do ar em nova versão que excluía essa informação? E como esse dado pode ser considerado jornalisticamente irrelevante pela Folha quando ele contradiz diretamente as afirmações alardeadas na capa do jornal e, em seguida, reproduzidas pelos maiores jornais do país?
Outros meios de comunicação também consideraram esses dados relevantes. Ontem à noite, a edição brasileira do El País publicou um artigo de destaque com a manchete: “62% apoiam novas eleições, diz dado que Datafolha publica agora”. O El País aborda o ocorrido tanto como um escândalo jornalístico, quanto político, descrevendo como a Folha escondeu esses dados até serem encontrados em consequência de nosso artigo. O jornal também publicou outra matéria citando especialistas que corroboraram as posições de nossos entrevistados, criticando veementemente a Folha pelo uso impróprio dos dados da pesquisa.
Fica extremamente óbvio o que realmente aconteceu: a Folha de São Paulo fez alegações falsas sobre as questões políticas relevantes do país e, além disso, sabiam que eram falsas quando as publicou. A Folha tinha em mãos os dados que comprovam a falsidade das alegações, mas optou por efetivamente escondê-las de seus leitores. Ou melhor, alguém decidiu por tentar retirá-los da Internet.
O mais surpreendente é que todo esse esforço foi feito para negar o desejo de democracia: fazendo o país acreditar que a maioria dos brasileiros apoiam a figura política que tomou o poder de forma antidemocrática e que não há necessidade de realizarem-se novas eleições, quando a verdade é que a maioria do país quer a renúncia do “presidente interino” e a realização de novas eleições para escolha de um presidente legítimo.
Conforme dissemos ontem, é impossível estabelecer se a Folha agiu de forma proposital com o intuito de enganar seus leitores ou com extrema incompetência e negligência jornalísticas – embora as evidências sugerindo aquela possibilidade sejam mais abundantes hoje que ontem. Motivos à parte, é indiscutível que a Folha essencialmente enganou seus leitores no que diz respeito a questões políticas cruciais e escondeu provas fundamentais apenas publicadas após serem pegos em flagrante.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558031-a-fraude-jornalistica-da-qfolhaq-e-ainda-pior-surgem-novas-evidencias
Acesso em: 27 jul. 2016

sábado, 23 de julho de 2016

CONSELHO NACIONAL DAS CIDADES: NÃO À PRIVATIZAÇÃO

É CLARO, EMPRESAS DESEJAM MAIS LUCROS, E POR ISSO PROCURARÃO VENDER MAIS E/OU COM PREÇOS MAIS ALTOS ÁGUA, ENERGIA, SERVIÇOS DE ESGOTAMENTO, TRANSPORTE... QUANDO A SITUAÇÃO DO PLANETA E DA HUMANIDADE EXIGEM QUE SE DIMINUA AO MÁXIMO O CONSUMO DESSES BENS DE PRIMEIRA NECESSIDADE PARA A VIDA. É CONTRADIÇÃO ABSURDA E EXTREMAMENTE PERIGOSA, POIS TEM A VER COM A DEGENERAÇÃO AMBIENTAL E DA VIDA HUMANA, ESPECIALMENTE DOS POBRES.

O Conselho Nacional das Cidades aprovou nos dias 20 e 21 de julho da 49ª reunião do Conselho Nacional das Cidades, moção em defesa dos serviços públicos de saneamento e contrária a qualquer forma de privatização no setor. Os movimentos populares e sindical e grande parte dos demais setores que integram o Conselho reafirmaram  sua posição que só o fortalecimento da gestão  publica do saneamento com controle social pode alcançar a universalização do acesso.

Diz um trecho da nota: “Eliminando a lógica de maximização do lucro, imperativa no setor privado, a gestão pública do saneamento leva com frequência à melhoria da qualidade dos serviços, contribuindo para o fortalecimento da responsabilidade e da transparência, graças aos mecanismos de controle social. Sob essa perspectiva, o Conselho das Cidades é contrário a qualquer tentativa de ampliar a privatização ou a concessão do setor de saneamento básico no Brasil”.


Edson Aparecido da Silva
Coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental 

VALE: MINERAÇÃO COM MORTE SOCIOAMBIENTAL

Nota da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale para o Dia Global contra a mega mineração – 2016

AmpulhetaEm 22 de julho de 2009, a partir de ações de resistência contra o projeto da companhia canadense “New Gold Inc.” em San Luis, Potosi, México, foi lançado um dia internacional de luta contra a mega mineração. Desde então, há um chamado anual para que pessoas, organizações e movimentos evidenciem os múltiplos impactos sociais e ambientais da atividade mineral nas diferentes partes do mundo.
Nós, da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, atuamos desde 2010 denunciando violações sistemáticas de direitos humanos provocadas pela mineração, em especial pela Vale S.A., e os impactos que a empresa causa sobre as comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, camponesas, trabalhadores/as e de populações urbanas empobrecidas em diferentes partes do Brasil e do mundo.
A Vale S.A., privatizada em 1997, é um ícone do modelo expropriador da mineração. É uma empresa transnacional, presente em mais de 30 países e segue uma política de Estado alicerçada na exploração de matéria-prima com vistas à exportação. Seu padrão de atuação (1) intensifica a espoliação das populações nativas, com a perda dos seus territórios e a desagregação das comunidades; (2) resulta emdesmatamento, destruição da fauna e de sítios arqueológicos,poluição e contaminação de terras e rios, gerando  danos à saúde; (3)superexplora trabalhadores/as e criminaliza os grupos que ousam enfrentar as grandes corporações.  
A Vale, que surgiu às margens do rio Doce, foi responsável pelo maior desastre socioambiental da história do Brasil. Em 05 de novembro de 2015, houve o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, da mineradora Samarco, controlada pela Vale. Dezenove pessoas morreram, inúmeras famílias ficaram desalojadas, comunidades foram destruídas e assinou-se o atestado de óbito de uma das mais importantes bacias hidrográficas do Brasil: a bacia do rio Doce.
A contaminação do rio deixou as populações sem qualquer perspectiva de continuar a viver dignamente. Municípios ficaram sem abastecimento de água e, restabelecido o fornecimento, há dúvidas sobre a qualidade da água disponibilizada. Nada obstante, desde o ocorrido, a Vale vem se furtando de sua responsabilidade nesse crime, assim como se furta de sua responsabilidade para com os trabalhadores/as e comunidades desde Santa Cruz (RJ) a Piquiá (MA), desde Mendoza (Argentina) a Tete (Moçambique) e Perak (Malásia).
Mesmo frente a magnitude do crime da Samarco/Vale/BHP o estado brasileiro segue conivente com o modus operandi das empresas mineradoras violando direitos ao aprovar a barragem da Vale, Maravilhas III, em Minas Gerais, com capacidade três vezes maior do que a de Fundão.
Diante disso, nós, da Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, apontamos que:
(1)  a Vale não ocupa o papel de mera acionista da Samarco, tal como declara publicamente, não podendo esquivar-se das obrigações de indenizar as famílias e reparar os danos que vem causando;
(2) Existe um modus operandi de violação sistemáticas de direitos pela Vale que também está presente no crime da Samarco/ Vale/ BHP;
(3)  A exploração e usos dos bens comuns deve passar impreterivelmente pelo controle social;
(4)  As comunidades devem ter o direito de dizer “não” à exploração mineral em seus territórios;
(5)  O interesse minerário não deve se sobrepor a outros interesses sociais como a reforma agrária, o direito ao acesso a terra, a saúde, a moradia digna, o direito de ir e vir, entre outros.
Existem valores no mundo que não estão a venda!!

sexta-feira, 22 de julho de 2016

HORTAS URBANAS PRODUZEM PERTO DE 20% DOS ALIMENTOS

Hortas urbanas, muito mais que moda hipster


Por Aruna Dutt, da IPS/Envolverde
A Habitat III, conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicada às cidades, vai explorar as possibilidades da agricultura urbana como solução para garantir a segurança alimentar. Mas em Nova York teve um impacto muito maior. Nas cidades de todo o mundo são registrados níveis históricos de desigualdade. Mesmo em Nova York, coração do mundo rico, muitos setores não têm garantida sua segurança alimentar.
Na Habitat III, que acontecerá de 17 a 20 de outubro, em Quito, capital do Equador, será a primeira vez em 20 anos que a comunidade internacional se reunirá para analisar as consequências da urbanização e pensar em uma nova estratégia global, a Nova Agenda Urbana.
Em Nova York, o preço dos alimentos aumentou 59% desde 2000, ao contrário do salário médio dos trabalhadores adultos, que só aumentou 17%. Cerca de 42% das famílias não têm renda suficiente para cobrir suas necessidades de alimentação, moradia, vestimenta, transporte e saúde, mas superam a quantia necessária para poder receber assistência estatal.
Em 2015, foi criado o plano OneNYC, vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que pretende tirar cerca de 800 mil pessoas da pobreza em uma década. “O OneNYC tem grandes expectativas e se esforça muito para atender a igualdade no sistema de alimentação e na gestão de desperdícios, garantindo que cada vez mais cidadãos tenham acesso a alimentos saudáveis e bons”, explicou à IPS Michael Hurwitz, diretor do mercado verde GrowNYC e que trabalha no OneNYC.
Hurwitz acrescentou que,“em uma cidade como Nova York, a agricultura urbana pode ter vários papéis: além de alimentar sua população, educa, oferece espaços seguros e ajuda a compensar o orçamento destinado à alimentação”. A agricultura urbana desempenha um papel significativo na alimentação da população das cidades em todo o mundo.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 800 milhões de pessoas cultivam verduras e frutas ou criam animais nas cidades, produzindo o que, segundo o Instituto Worldwatch, representa a assombrosa proporção de 15% a 20% da produção mundial de alimentos. Isso ocorre em lugares do mundo onde a agricultura urbana ou periurbana representa de 50% a 70% do consumo de verduras da cidade.
Na África, estima-se que cerca de 40% das populações urbanas se dedicam à agricultura. Quem vive nas cidades há muito tempo, ou quem chegou há pouco, planta porque tem forme, sabe como cultivar, além de o valor da terra ser baixo e os fertilizantes baratos. Mas nos Estados Unidos, a agricultura urbana provavelmente tenha maior impacto sobre a segurança alimentar em lugares que, de certa forma, são mais parecidos com o Sul global, isto é, cidades onde a renda média é baixa e há uma grande necessidade de alimentos acessíveis.
Hurwitz observou o poder transformador da agricultura quando foi trabalhador social em Redhook, no Brooklyn, bairro onde a renda de 40% dos moradores era inferior a US$ 10 mil por ano. Nesse lugar, trabalhou em uma horta comunitária com adolescentes de 16 e 17 anos, em um programa vinculado ao sistema judicial. Os jovens levavam o que colhiam para suas casas ou vendiam em mercados, restaurantes locais e outros estabelecimentos.
“Nossos jovens se tornaram agentes de mudança em suas comunidades. Ninguém queria trabalhar com muitos dos adolescentes com os quais trabalhamos, mas, quando se converteram na principal fonte de alimentos saudáveis em seu bairro no mercado de produtos orgânicos, seus colegas, e os adultos, se deram conta de que, na realidade, estavam gerando uma mudança na comunidade”, acrescentou Hurwitz.
O sistema foi ampliado por meio da GrowNYC, uma organização não governamental que funciona no escritório do prefeito de Nova York, Bill de Blasio, e trabalha com seis mil jovens por ano e oferece material para que o pessoal docente trabalhe com eles na aula. Seu programa Grow to Learn (Cultivar para Aprender) está encarregado de todas a hortas escolares da cidade. Além disso, administra um projeto de mini empréstimos e oferece assistência técnica e capacitação para os professores sobre o cuidado com as hortas.
No Bronx Sul, o mais pobre dos 435 distritos congressuais dos Estados Unidos em 2010, vivem 52 mil nova-iorquinos com renda bem baixa, 42 mil dos quais abaixo da linha de pobreza, e é conhecido como “deserto alimentar”. Quando a GrowNYC foi a esse bairro pela primeira vez, um policial alertou seu pessoal: “Não queiram entrar, porque não é seguro”, recordou Hurwitz. “Mas em dois meses uma área difícil se converteu em uma esquina grandiosa, de maravilhosa atividade porque havia jovens vendendo alimentos aos seus vizinhos”.
Há anos o programa Learn it, Grow it, Eat it (Aprenda, Cultive, Coma), da GrowNYC, trabalha com escolas no Bronx Sul, ajudando a formar líderes ambientais, contou Hurwitz. A iniciativa cuida de um dos postos agrícolas de jovens da organização, capacitando-os em administração e agricultura para que possam gerenciar seus próprios postos de venda. “Vimos muitos começarem em nosso mercado e passarem a ser administradores do programa”, acrescentou.
Em Nova York não se trata só de produzir uma quantidade padronizada de alimentos para as comunidades necessitadas, mas de refletir a diversidade cultural. “Em nosso programa temos quem cultive produtos por cerca de US$ 240 mil por hectare em Staten Island”, a ilha diante de Manhattan, pontuou Huwirtz. Os mexicanos plantam cultivos tradicionais para alimentar sua comunidade. Se não fosse isso, não teriam acesso aos alimentos com os quais estão acostumados.
Surgiram os grandes operadores de estufas e estas ficaram em moda. Mas o cultivo de uma variedade limitada de verduras de grande qualidade não bastará para alimentar as populações urbanas. “Preferiria que se destinassem US$ 2 milhões para a preservação de plantações rurais a fim de alimentar as cidades”, opinou Hurwitz. “Dessa forma seria possível levar alimento às cidades, garantir que todos tivessem acesso a ele e assegurar que as propriedades continuem sendo viáveis”, acrescentou.
Os prognósticos indicam que a população das cidades duplicará nos próximos 30 anos, segundo o Atlas de Expansão Urbana. “A segurança alimentar relacionada com a urbanização é um dos grandes temas que atrairão a atenção dos participantes da Habitat III”, destacou Juan Close, diretor da ONU Habitat.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

BELO MONTE: "CASA É ONDE NÃO TEM FOME"




Casa é onde não tem fome

A história da família de ribeirinhos que, depois de expulsa por Belo Monte, nunca consegue chegar



Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras LILO CLARETO/ACERVO PESSOAL

Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, não consegue chegar em casa. Desde que ele e sua família foram expulsos de sua ilha pela hidrelétrica deBelo Monte, Otávio já está na terceira casa. Mas não consegue chegar. Porque para ele aquela terceira ainda não é uma casa. Como não era a primeira nem era a segunda. Sem casa, Otávio não tem mundo. Sem mundo, um homem não tem onde pisar. Os conhecidos avisam: você já viu, seu Otávio está encolhendo. E ele está, porque é isso o que acontece com os homens sem mundo.
O que é uma casa é a pergunta que atravessa a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no Estado do Pará. A pergunta que não foi feita no cadastro nem em momento algum. É a pergunta que diz quem aquela pessoa é. E onde ela precisa viver para ser o que é. Quando é o empreendedor, o novo nome do colonizador na Amazônia, que determina o que é uma casa, com base no seu mundo e nas suas referências, em geral forjadas na realidade bem diversa do centro-sul do Brasil, a violência se instala. E vidas são aniquiladas.
Acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naquele momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma casa de madeira alugada numa periferia violenta de Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade” de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos conjuntos habitacionais padronizados que a Norte Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mais velhos permaneceram na casa padronizada, um deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os filhos mais jovens transferiram-se para uma casa doada por um grupo de austríacos que se comoveu com as tribulações do pescador sem rio e sem letras.

Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome – mas a fome não se deixa escrever

Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na semana passada, havia também uma cebola pequena. Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se escreve. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a escritora brasileira que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.
Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que sente quando chega a passar até dois dias sem comer: “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista, mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”, ela continua. É outra pista, mas ainda não é a fome por escrito. Jamais será. A fome é algo tão avassalador que irredutível às palavras. Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei na segunda casa, a do RUC, em 2015, era o dia do seu aniversário. E não havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.
Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem fome, é só teto.
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de 30 anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas do Xingu. Viver talvez não seja a palavra exata. Eles pertenciam à ilha de Maria. É inversa essa questão da posse. E não apenas por questões da lei. Mas porque é a ilha que se apossa das pessoas, que lhes conforma o corpo e a existência, que lhes desenha a arquitetura do tempo. Na ilha, Otávio, Maria e seus filhos sabiam. Quando expulsos para a “rua”, nome que os ribeirinhos agroextrativistas de várias regiões amazônicas dão à “cidade”, são esvaziados de saber. Assim, essas casas, na “rua”, serão de certo modo sempre “rua” – e não casa.
Otávio das Chagas explica: “Pra roçar uma juquira, pra trabalhar de roça, pra toda coisa de mato, eu sou profissional. Peixe, eu sou profissional também. Mas pras coisas da rua, a gente não sabe. Meus menino ainda sabe ler, mas é só uma coisinha. Não tem vida pra nós aqui”. Maria completa: “Aqui na rua é tudo no dinheiro. Se não tem dinheiro, não come. Até a água é paga, todo mês 120 real”.

Para quem teve sua ilha afogada, viu sua memória virar água, restou apenas o território do próprio corpo, onde perseguem cicatrizes para provar que existem

Quando são expulsos da ilha a qual pertencem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho. Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os mortos ali enterrados para dar conta do que foram, mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus filhos perderam a materialidade do que viveram, a memória física do que eram, do que são. Tudo o que dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles apontar as cicatrizes que documentam uma vida no único território que lhes restou: o do próprio corpo.
Desde então, eles pisam “na rua”, mas não encontram o chão. Essa experiência desestruturante é de difícil compreensão para aqueles que sempre têm para onde voltar. É penosa de entender mesmo quando se quer entender. Mas quando os colonizadores sequer percebem que é necessário compreender, caso dos protagonistas da hidrelétrica, seja como governo, seja como empresa, resta só a violência. E ela vai matando aos poucos.
Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o dedo papéis que não era capaz de ler. Seus filhos assinaram por ele papéis que não eram capazes de ler. Receberam 12.994,02 reais como indenização. Sua casa não foi considerada uma casa. Não cabia no conceito de casa do empreendedor. Quando a “remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e dos baixões, assim como das terras rurais, foi determinada, não havia defensoria pública na região. O Governo de Dilma Rousseff abandonou a população do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior obra do setor elétrico do país, à mercê dos advogados da Norte Energia, uma violação de direitos que manchará para sempre a biografia da presidente hoje afastada. Otávio e sua família foram jogados num dos bairros mais violentos da periferia de Altamira, onde pagavam um aluguel que, junto com a doença de uma das filhas, comeu o dinheiro em meses. A casa alugada foi a primeira não-casa.


A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. LILO CLARETO/ACERVO PESSOAL


Otávio das Chagas não entende uma casa que ele mesmo não bota em pé: “Eu não sei trabalhar de pedreiro. Mas eu sei fazer uma casa nossa. A senhora sabe o que é uma casa coberta de cavaco? Aquelas eu sei fazer”. E descreve em detalhes como se constrói “uma casa boa e bem-feita”, como a que tinha na ilha e que não foi reconhecida como casa pelo empreendedor. Esta casa, que a cada cheia do rio ele precisava reconstruir, assim foi descrita em despacho da Norte Energia: “estrutura rudimentar de madeira com cobertura de palha”. Para compreender o que é uma casa, em toda a sua inteireza, é necessário escutar os ribeirinhos com mais atenção: a casa não é uma “estrutura”, apenas, mas algo mais extenso no qual é abarcado todo o seu entorno, as árvores, a roça, a mata, o rio. A casa é fora e dentro – é um amplo e um tudo.

Casa é fora e dentro, é um amplo e um tudo, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a alegria

Maria explica: “Lá na ilha a gente tinha tudo, a gente tinha fruteira, a gente tinha peixe, a gente tinha caça, a gente tinha roça, a gente tinha remédio do mato, a gente tinha água, a gente tinha vizinho, a gente tinha sombra, a gente brincava, no sábado vinha gente de todo lado, os homem jogava futebol, as mulher tratava o peixe, assava e brincava. Lá na ilha a gente tinha fartura. Aqui, nós compra banana e qualquer pouquinho é um preço doido. Lá nós tinha tanta banana que jogava pros bicho”. A casa não é apenas uma “estrutura rudimentar de madeira com cobertura de palha”, como descrita pelo etnocentrismo do empreendedor. O conceito de casa é estendido. Casa é onde não se passa fome, é onde se faz laços que garantam a sobrevivência e também a alegria.
Com a chegada bem tardia da Defensoria Pública da União à cidade de Altamira, no início de 2015, Otávio das Chagas recebeu uma das casas padronizadas, construídas pelo empreendedor sem qualquer respeito ao conceito de casa daquela população. As unidades padronizadas poderiam estar em qualquer lugar, na Amazônia ou na serra gaúcha. São genéricas. As vítimas de “remoção compulsória” foram lá jogadas sem nenhuma preocupação em manter as relações de vizinhança e os laços comunitários, essenciais para a sobrevivência e para a preservação de uma memória comum. Esse cuidado que não houve poderia ter desempenhado um papel essencial ao reconhecimento mútuo num momento tão desestabilizador para as famílias atingidas.
Nesta casa genérica, onde a família não cabia inteira, apenas se amontoava, nesta casa “abafada”, Otávio das Chagas me pediu um dia para desenhar um mapa do Brasil, para mostrar de onde eu vinha. Onde era a minha ilha, meu pertencimento. Desenhei um mapa mal desenhado. E percebi que ele continuava perdido. Mesmo que eu desenhasse mil mapas perfeitos, ele seguiria perdido, porque sua ilha já não estava nele. Sua ilha afogada já não existia no Brasil.


A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram LILO CLARETO/ACERVO PESSOAL


Naquele momento, as crianças menores não frequentavam a escola, porque tinham medo de ônibus. Elas só conheciam canoa. Quando viviam na ilha, um barco passava para entregá-las à professora. Enquanto sofriam de fome naquela casa genérica, um carro de som passava anunciando aos berros que Belo Monte “é energia limpa e sustentável”. Há uma perversão no uso das palavras. Para muitos, as hidrelétricas na Amazônia ainda são “energia limpa e sustentável”. Para estes, as vidas que o processo engole não contam. Nunca contaram. É sempre fácil pedir o sacrifício dos outros.

Assaltados na terceira casa, Otávio das Chagas e sua família vivem agora trancados e com medo

Na terceira casa, Otávio das Chagas, Maria e seus filhos quase perderam a vida. Os sentidos do viver, o reconhecimento de um saber sobre a floresta, a valorização de um conhecimento do rio, a possibilidade de sobreviver pelas próprias mãos já tinham sido destruídos pela violência do processo de Belo Monte. Mas, em 2 de julho, eles se sentavam à porta da casa, um hábito da ilha que ainda mantinham, quando homens armados a invadiram.
Otávio conta: “Era seis hora da tarde. Porque nós moremo toda vida assim no mato e é a morada que eu me acostumo. Eu não me acostumo com a morada num lugar desse. Aí, quando é seis hora da tarde nós senta ali na frente da casa na morada no mato. Não tem perigo nenhum. Mas aqui, num lugar desse...”. Botaram um revólver na cabeça de Edilardo, o filho de 24 anos. Marisa, de 10, correu e foi pega por outro. O assaltante colocou um facão nas costas da menina. Naquele dia, Marisa estava doente, com febre. E de repente tinha também um facão ameaçando cortá-la.


A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016 LILO CLARETO/ACERVO PESSOAL


Havia pouco para roubar na casa quase nua. Levaram celulares muito simples e um “devedezinho” que Otávio tinha comprado a prestações no Armazém Paraíba, no período em que os filhos mais velhos tiveram um emprego temporário. Era a única diversão das crianças na cidade, que nele assistiam a filmes piratas. Marisa tinha um da Barbie, Adriano, das Tartarugas Ninjas e doMenino Lobo. Levaram também o pagamento do mês de trabalho de Maria como doméstica na casa de outra mulher.
Maria lava e limpa dia após dia para ganhar 400 reais no final do mês. É a primeira vez em 62 anos de vida que ela trabalha na casa de uma outra. Não é simples para Maria, uma mulher do rio, que costumava passar os dias cuidando da própria casa expandida. Mas é o salário de Maria que tem botado na mesa a pouca comida que os mantém vivos. Os assaltantes levaram tudo. Quando encontrei a família, alguns dias depois, Maria tinha conseguido com a patroa um adiantamento de apenas 10 reais. Seguidas vezes ela faz a limpeza toda sem ter comido nada desde o dia anterior.
Aos 63 anos de vida ribeirinha, Otávio das Chagas não compreende a lógica da violência urbana a qual é agora submetido: “É porque eu sou uma pessoa que, graças a Deus, sempre fiz meus negócio direito. Eu não ando mexendo com ninguém. Eu achei que o cara não tinha coragem de entrar dentro de uma casa minha pra fazer uma coisa dessa. Eu não dou atenção pra certas coisa. Se uma pessoa chega na minha porta, e eu não conheço ela nem nada, eu trato ela bem. Eu ouvia falar, assim, mas eu mesmo não conhecia essas coisa, não. No mato eu ando só em qualquer lugar”. E Maria acrescenta: “A gente só via essas coisa na televisão”. E Otávio retoma: “Toda vida eu falo isso e todos que conhecem nós pode dizer: o que nós não temo coragem de fazer é pegar as coisa de ninguém. Graças a Deus que para isso todo mundo tem confiança em nós. Por que é que eu não tinha medo de ser assaltado? Porque eu não pego nada de ninguém. Eu pensei que faziam o mesmo comigo. Mas não é desse jeito”.

Depois de ter sido arrancado da sua ilha, Edilardo foi contratado para fazer o mesmo com macacos e preguiças. De vítima virou algoz

Edilardo, que passou o assalto com um revólver na cabeça, tem pesadelos recorrentes em que a arma é disparada pelo assaltante e ele morre. Parece ter menos do que os seus 24 anos no corpo, parece ter mais na tristeza dos olhos. “Aqui na rua eu não me sinto muita coisa, não”, diz. “Sem estudo eu sou pouco.” O último emprego que teve o lançou numa fronteira cruel. Para conseguir trabalhar, Edilardo cravou na alma os arames farpados da contradição. Assim como os irmãos, ele foi contratado por uma terceirizada da Norte Energia para fazer a “remoção” dos animais nas ilhas. No dia em que teve que expulsar os bichos da Ilha de Maria, a sua, ele chorou. Edilardo havia sido convertido de expulso em expulsador. De vítima em algoz. Na perversidade pragmática do trabalho, a vida violada viola. E os olhos de Edilardo ganharam uma dor nova:
“Tudo o que nós tinha feito a água tinha acabado. Planta acabou tudo. Tudo queimado. Nós passava lá e via tudo destruído. Era muito muito muito. É muito triste ver uma coisa daquela acabada assim. No primeiro dia que nós fomos pra lá não vou mentir. Chorei mesmo. Chorei de verdade. Comecemo a pegar bichinho de lá, e os macaco começaram a gritar demais. Não vou mentir, teve uns que morreu. Morreu porque ia pegar e caía na água. Cortava a árvore de motosserra, com eles nos galho, tinha muito que morria afogado. Os paus caía tudo em cima, afogava. Teve deles que a gente salvava, tinha muitos que morria. Era muita judiação. Preguiça também, muitas morria. Paca, queixada, cotia... Tinha bicho que tentava atravessar a nado, mas tava fraco, tava com fome. Não conseguia. Pra pegar, não vou mentir, a gente quase enforcava eles, porque com fome e medo, eles mordia. Se não pegasse assim, nós não conseguia botar na caixa de madeira pra entregar pros biólogo. Eles soltava os bicho lá do outro lado, mas acho que lá, fraco do jeito que tava, os bicho morria também. Chorei no primeiro dia. Eu ainda não tinha visto como tinha ficado. Depois que vi, chorei. Ver um negócio daquele jeito e saber que não volta mais de jeito nenhum fica muito difícil”.
Maria interrompe: “Nós passa lá na nossa ilha e só tem uns pedaço de pau no meio da água. Dá vontade de abraçar um pedaço de pau e ficar agarrada ali a vida toda”.
Edilardo conclui: “O que aconteceu com nós é tipo o mundo ter acabado. Assim, ter virado a página”.
Tão logo eu parto, no final da tarde, eles fecham a casa que não é casa. Trancam-se num calor que ultrapassa os 30 graus à noite. Logo depois, dois homens batem. Pedem um cigarro. Eles não fumam. Pedem água. Eles não dão. Dentro de casa, eles temem ser alvejados. “Do jeito que nós é unido, se mata um acaba a família”, diz Edilardo. A casa é cada vez menos casa, cada vez mais toca. Assim como os bichos eram acuados para a única parte da ilha ainda não devastada, com fome e com medo, para que se tornasse mais fácil capturá-los, também eles estão ali. Encurralados, só que “na rua”. Jogados num outro canto, onde fracos e com fome também não conseguem viver, assaltados pelos mais fortes e mais bem adaptados ao cotidiano de violência e precariedades de uma cidade em que o esgoto escorre a céu aberto.


Encurralado: Edilardo foi feito refém em um assalto à casa, revólver na cabeça, e agora tem pesadelos recorrentes de que é assassinadoELIANE BRUM


Otávio das Chagas olha para as mãos e se envergonha: “Estão ficando fininhas”. No mundo que ele conhece e que o reconhece, homem de mãos finas é homem que não trabalha. Otávio se envergonha mais. Ele sofre porque “na rua” ninguém precisa do que ele sabe fazer, ninguém quer saber o que ele sabe. Está doente. Me mostra dois exames em que os indicadores revelam uma próstata bem alterada, mas não consegue médico para interpretá-los. Quando a dor é muita, ele compra uma caixa de 10 comprimidos de Finasterida, “pra ir passando”.
Quase todo dia ele caminha com suas dores e com sua fome por quase uma hora, debaixo do sol amazônico, para visitar Antonia Melo na organização Xingu Vivo Para Sempre. Antonia é a maior liderança popular da região. Para Otávio, ela é o único ponto de referência em território desconhecido e hostil. Antonia perdeu sua própria casa, destruída por Belo Monte numa sequência de cenas que lembram um terremoto. Mas, para Otávio das Chagas, Antonia é uma casa. Ele vai lá para ser visto, para saber que existe. Otávio se reconhece nos olhos de Antonia e então empreende o caminho de volta. Sempre que se afasta dela, parece ficar mais longe de si mesmo. Empreende sua viagem sem retorno com suas dores e com sua fome, mas um pouco menos partido.

Quem pode dizer quem é aquele que é?

Otávio das Chagas tentou, mas, como tem acontecido com tantos, não foi reconhecido como ribeirinho. Nem com direito a ser reassentado junto ao reservatório da usina. É a Norte Energia quem diz quem ele é, quem tantos são. Não a vida, não a história, não a memória, não o conhecimento produzido sobre o tema nas melhores universidades do Brasil. Mas o empreendedor. Mas quem pode dizer quem é aquele que é?
Otávio, o homem que parece encolher, resiste. Anuncia que voltará para o rio de qualquer modo porque viver é preciso. E ele só sabe viver se navegar. Nas águas do Xingu. “Eu não sei andar de carro, eu não sei andar de moto, eu não sei andar de bicicleta, não vou lhe mentir. Mas de canoa eu sou profissional, todo mundo me conhece como profissional do rio”. Como a ilha morreu afogada, Otávio promete se plantar numa beira do rio e ficar. Desta vez, usará as unhas para fincar na terra se for preciso. “Aqui, tudo é de acordo pra ir pro mato mais eu de novo”.
Otávio das Chagas está vivo porque ainda não desistiu de encontrar o caminho de casa.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum