Quem são os chineses de olho na Amazônia?
Piero Locatelli | 15/02/16
A derrocada de empresas brasileiras com a Lava Jato, a desvalorização do
real e o crédito caro no Brasil abriram espaço para que empresas chinesas
galgassem uma participação maior no país. Aproveitando esse contexto, a China
Three Gorges se prepara para fazer uma oferta no leilão da usina de São Luiz do
Tapajós. Com 6.133 megawatts de potência máxima instalada, custo estimado
em R$ 23 bilhões e o licenciamento ambiental mais polêmico desde Belo Monte, a
maior hidrelétrica planejada pelo Governo Federal para as próximas décadas pode
ser construída por uma empresa chinesa que carrega um lastro de violações de
direitos humanos.
O preparo de uma “oferta competitiva” pela hidrelétrica está no
relatório anual da empresa. O presidente da China Three Gorges Brasil, Li
Yinsheng, afirma que a decisão apenas será tomada após ter conhecimento das
condições de oferta do leilão. “A CTG [China Three Gorges ] escolheu o Brasil
como um país prioritário em sua estratégia de expansão internacional. A empresa
está olhando todas as oportunidades no país”, escreveu o executivo por e-mail.
O interesse das empresas chinesas no setor elétrico brasileiro é
confirmado por Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio e Indústria
Brasil China, que auxilia empresas chinesas interessadas em investir no Brasil.
“Com ou sem Lava Jato, a China investe aqui por várias razões: ocupar mercado,
ter lucro, exportar sua capacidade excedente e assegurar recursos estratégicos,
e por razões geopolíticas internacionais,” diz Tang. Entre os projetos auxiliados
por ele, estão o de uma hidrelétrica, um parque eólico e o a participação em
duas termelétricas. Ele alega que não pode dizer quais são essas empresas,
devido ao sigilo mantido pela Câmara.
Antes de entender os interesses dessas empresas no Brasil, é necessário
entender por que o setor hidrelétrico chinês está atravessando as fronteiras do
país, diz Stephanie Jensen-Cormier, diretora da ONG International Rivers em
Beijing. A China, segundo ela, tem mais de metade das grandes hidrelétricas do
mundo, mais do que o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá combinados. Por isso,
agora suas empresas precisam expandir para fora do país. “As empresas estatais
chinesas ficaram muito sofisticadas e competitivas na construção de grandes
projetos hidrelétricos. Elas estão envolvidas em mais de 330 projetos em 85
países. A maioria deles é no sudeste asiático, mas o número está crescendo,”
diz Stephanie.
Interesses
amazônicos
A construção de usinas no Tapajós pode estar articulada com outros
interesses chineses na região. A energia de baixo custo poderia ajudar o
estabelecimento de projetos de mineração, outro setor de interesse dos
chineses, segundo o livro Brasil “Made in China”, da socióloga Camila Moreno. A
autora aponta que o Tapajós abriga reservas minerais cada vez mais procuradas
pelo país asiático. “Nos últimos anos, houve uma disparada na descoberta de
novos garimpos, e atualmente a região é a grande promessa de fronteira para
exploração de diamantes.”
Associadas à construção de eclusas, a série de usinas poderia, ainda,
baratear o escoamento da soja brasileira comprada pelos chineses. A hidrovia
Tapajós-Teles Pires ligaria as plantações de soja do Mato Grosso por via
fluvial até o rio Amazonas, que por sua vez desemboca no porto internacional de
Belém, no oceano Atlântico. O novo projeto também poderia ser complementado com
o canal da Nicarágua, que a China trabalha para abrir naquele país , ligando os
oceanos Atlântico e Pacífico e encurtando a rota da soja brasileira até a Ásia.
Além da integração pelos rios da região, a China também avança com
outros corredores de exportação por terra. As estatais chinesas Cheng Dong
International e China Harbour tem o projeto de interligar o Suriname a
Manaus, incluindo um porto de águas profundas, uma rodovia e uma ferrovia,
reduzindo a necessidade de navegação fluvial. A autora afirma que esses
investimentos sinalizam a entrada definitiva da China na região Amazônica.
O presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil China afirma que
os investimentos de hidrelétricas, hidrovias e mineração na região não
necessariamente estão interligados. Charles Tang diz que, na maioria dos casos,
as empresas investem somente devido ao bom retorno de um projeto. Mas isso não
excluiria a cooperação e parcerias estratégicas entre elas, já que todas têm o
mesmo dono: o governo chinês.
Expansão
chinesa
A Three Gorges já é a sexta maior operadora de energia no Brasil, com
6,89 megawatts de capacidade instalada, o suficiente para abastecer o Estado de
Pernambuco. Sua expansão no Brasil deu um salto em novembro de 2015,
quando ganhou a concessão das hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, que
pertenciam à paulista Companhia Energética de São Paulo. A empresa chinesa
pagou o valor mínimo da outorga, R$ 13,8 bilhões.
A expansão no Brasil foi rápida. A Three Gorges entrou no país em
2011, e de maneira indireta. Foi quando a chinesa comprou a participação do
governo português na Energias de Portugal (EDP), tornando-se a sua maior
acionista, com 21,35% empresa. Assim, a Three Gorges herdou as obras de sete
usinas hidrelétricas no Brasil.
Sua presença foi fortalecida em 2014, durante visita do presidente
chinês Xi Jinping ao Brasil. Na ocasião, a empresa chinesa assinou um acordo
cooperação-técnica com Eletrobras Furnas, empresa de economia mista e de
capital aberto cujo controle acionário pertence ao governo do Brasil.
Foi quando se anunciou o interesse das duas empresas na hidrelétrica de
São Luiz do Tapajós. Questionada, Furnas se limita a afirmar que o acordo prevê
a construção da hidrelétrica de São Manoel (700 megawatts), que fica no rio
Teles Pires, na divisa entre Pará e Mato Grosso. Em nota, a empresa brasileira
declara que o acordo prevê “o desenvolvimento de novos projetos hidrelétricos
no Brasil, bem como a cooperação técnica e a troca de tecnologias.” A
empresa afirma ainda que “está prevista a possibilidade da participação
de Furnas em novos empreendimentos de fontes alternativas de energia,
sobretudo eólicas, no Brasil e na China.”
A Repórter Brasil pediu detalhes da cooperação entre as duas empresas e
o acesso à íntegra do acordo, mas a empresa alegou que, por se tratar de
informações empresariais, essa é uma “exceção prevista” na lei de acesso à
informação.
Após o acordo com Furnas, a Three Gorges adquiriu em 2015 três empresas
que pertenciam a Triunfo Participações e Investimentos, em um negócio que
envolveu R$ 1,72 bilhão. Entre elas, estão as que operam a usina hidrelétrica
de Salto(116 megawatts), em Goiás, e a usina hidrelétrica de Garibaldi (192
megawatts), em Santa Catarina.
A empresa opera ainda em cinco parques eólicos (328 megawatts), sendo
que dois deles ainda estão em construção. Além disso, a Three Gorges também é
responsável por cinquenta por cento da usina de Santo Antônio do Jari (373,4
megawatts) e Cachoeira Caldeirão (219,0 megawatts), ambas no Amapá
Em poucos anos, a Three Gorges tomou a frente de outra estatal chinesa
no Brasil, a State Grid, que é a maior empresa do setor elétrico no mundo. A
State Grid já havia feito uma expansão semelhante . Poucos anos depois de sua
chegada, em 2010, adquiriu empresas que operavam no Brasil e a concessão de
diferentes linhas de transmissão.
O maior salto aconteceu quando a State Grid venceu o leilão para
construir o linhão de Belo Monte, a maior linha de transmissão do país. Parte
da obra será feita pela chinesa junto às brasileiras Furnas e Eletronorte. Já a
segunda parte da linha será feita com exclusividade pela chinesa. Para
construir essas obras, a empresa conta com o dinheiro do próprio governo
brasileiro. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) pode financiar até 70%
da obra, sendo parte dela com a Taxa de Juros de Longo Prazo, crédito subsidiado
pelo governo com valor abaixo do mercado.
Histórico de
violações
A Three Gorges chegou ao Brasil quase vinte anos após ter sido fundada
para a construção da maior hidrelétrica do mundo, a usina de Três Gargantas, no
Rio Yangtze, na China. A hidrelétrica só foi inaugurada no final da década
passada após mais de quinze anos de obras. Hoje a empresa tem negócios em mais
de 40 países, com 89 obras em andamento, segundo seu relatório mais recente,
referente a 2014.
Ainda na década de 90, entidades de direitos humanos já apontavam
problemas nas atividades da Three Gorges. Em relatório de 1995, a Human Rights
Watch afirmava que a obra era uma vitrine para a abertura e reforma da China, e
“um modelo de como a falta de transparência e debate, processos de decisão
autoritários e condições de trabalho injustas podem manchar um empreendimento
ambicioso”.
Duas décadas depois, a companhia continua a ter problemas parecidos. A
empresa cometeu violações de direitos humanos na construção da hidrelétrica de
Murum, na Malásia, segundo relatório da ONG International Rivers, que
acompanhou a obra em 2013. Segundo a organização, a população das vilas
afetadas pela obra nunca foi visitada ou atendida em encontros com algum
representante da empresa.
Esse histórico é especialmente preocupante para o Brasil, já que uma das
maiores polêmicas em torno do licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós é
justamente a violação dos direitos dos povos locais. O Ministério Público
Federal do Pará já entrou com ações para pedir a suspensão do processo enquanto
essas comunidades não forem consultadas sobre a obra, como determina a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é
signatário.
Questões trabalhistas envolvendo imigrantes também são um problema da
empresa chinesa quando atuando na Malásia, segundo o relatório. Esse é outro
elemento preocupante na Amazônia, onde as obras de grandes usinas atraem
haitianos, africanos e migrantes de todo o Brasil.
Na construção da usina chinesa na Malásia, trabalhadores indonésios
reclamaram que seus passaportes foram retidos e as condições eram diferentes
daquelas acordadas. Os indonésios também afirmaram que precisavam comprar seus
próprios capacetes e botas de borracha, e que não possuíam seguro contra
acidentes. Além disso, o atendimento médico no local não era gratuito.
Em e-mail enviado à reportagem, a Three Gorges afirma que, “além de suas
políticas internas, a CTG segue todas as leis dos países em que atua. A empresa
tem como premissa global o respeito às comunidades do entorno de suas usinas e
o compromisso com o desenvolvimento das regiões onde atua.”
“Se o governo Apesar desse histórico de violações, a diretora da ONG na China diz que a empresa tem normas superiores a outras empresas do país. “A China Three Gorges está ativa no Mercado internacional há mais de nove anos. Eles fazem projetos com padrões sociais e ambientais levemente melhores do que outras companhias chinesas.”
“Se o governo Apesar desse histórico de violações, a diretora da ONG na China diz que a empresa tem normas superiores a outras empresas do país. “A China Three Gorges está ativa no Mercado internacional há mais de nove anos. Eles fazem projetos com padrões sociais e ambientais levemente melhores do que outras companhias chinesas.”
Segundo Stephanie, os brasileiros deveriam prestar atenção ao seu
próprio governo e às empresas que vão se associar à Three Gorges. “Se o governo
colocar um padrão alto, a Three Gorges vai fazer esforços para cumprir esse
padrão mesmo que não seja fácil. Se o governo colocar padrões baixos, a
companhia pode tentar se aproveitar dessa situação”, diz Stephanie. “Da mesma
forma, parceiros locais têm grande impacto na performance da companhia em relação
às leis e regulações locais”.
Ela usa como exemplo a construção da usina hidrelétrica Coca Codo
Sinclair, no Equador, pela chinesa Sinohydro. Em um estudo comparativo
entre sete usinas construídas por empresas chinesas estudadas pela
International Rivers, esse foi o caso em que menos ocorreram violações de
direitos. Isso teria acontecido graças às fortes leis locais, aplicadas de
maneira adequada.
Regras não cumpridas
Regras não cumpridas
Além das leis dos países que recebem os investimentos, outro fator de
regulação importante são as regras dos financiadores. Diretora do China-Latin
America Sustainable Investment Initiative (CLASII), centro de estudos baseado
em Washington, Paulina Garzón diz que, em tese, as regras dos bancos chineses
são boas. “Em teoria, o ordenamento jurídico ambiental é muito bom. Ele tem
aspectos mais avançados do que outros bancos.”
Paulina cita como exemplo o Exim Bank, banco chinês de desenvolvimento
voltado à promoção da importação e da exportação, possível financiador de
futuras obras no Brasil. O banco exige um estudo de impacto de todos os
investimentos feitos com o seu crédito, além de manter um registro do histórico
de impactos socioambientais dos seus credores.
.
.
A aplicação das normas, porém, pode ser bem diferente do que está no
papel. “O problema com as regras chinesas é que não há obrigações, não há muita
informação disponível, não há comunicação com as comunidades para você saber o
que está acontecendo”, diz ela, lamentando que o contato dos afetados com os
órgãos e empresas chinesas é muito difícil.
Mesmo diante dessas restrições, ela ressalta que pressionar pelo
cumprimento das regras para financiamentos chineses é uma ferramenta para que
as empresas mantenham um bom padrão ao lado da ênfase nas regras dos próprios
países.
Sem o cumprimento de todas as regras, chinesas e locais, comunidades na América Latina entraram em mais conflitos com empresas chinesas em 2015, segundo relatório elaborado por Garzón. Na Nicarágua, protestos pediram a revogação da concessão da construção do canal chinês. Na Argentina, foram questionados os acordos feitos com a China para a criação de bases de pesquisa na Patagônia e a construção de canais na província de Entre Rios. Já no Peru, os protestos contra a mineradora chinesa MMG levaram a morte de quatro pessoas. Por fim, movimentos indígenas têm questionado as atividades da Ecuacorrientes, também chinesa, na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Sem o cumprimento de todas as regras, chinesas e locais, comunidades na América Latina entraram em mais conflitos com empresas chinesas em 2015, segundo relatório elaborado por Garzón. Na Nicarágua, protestos pediram a revogação da concessão da construção do canal chinês. Na Argentina, foram questionados os acordos feitos com a China para a criação de bases de pesquisa na Patagônia e a construção de canais na província de Entre Rios. Já no Peru, os protestos contra a mineradora chinesa MMG levaram a morte de quatro pessoas. Por fim, movimentos indígenas têm questionado as atividades da Ecuacorrientes, também chinesa, na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O Tapajós pode ser mais um episódio nessa disputa. O Estudo de Impactos
Ambientais, feito pela Eletrobras e outras empresas nacionais e internacionais,
foi apresentado ao Ibama em agosto de 2014 e considerado inconsistente.
Entidades de direitos humanos criticam o projeto e seus estudos, apontando
diversos riscos não previstos, como o alagamento terras indígenas e a perda de
peixes, essencial para a vida de ribeirinhos e indígenas na região.
O Ibama solicitou que o grupo refaça os estudos, mas o ministro de Minas
e Energia, Eduardo Braga, afirmou que a licença ambiental deve ser liberada
ainda nos primeiros seis meses desse ano. Já o leilão deve ocorrer no semestre
seguinte. A pressa do governo parece ser mais um fator para agravar os
conflitos na região.
O licenciamento apressado da usina pode intensificar a colisão entre os
interesses da construtora e os das comunidades locais, repetindo assim o que já
aconteceu em outros lugares do Brasil e da América Latina. Considerando que os
povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia já têm dificuldade de
acessar os seus direitos quando impactadas por consórcios nacionais, como é o
caso da usina de Belo Monte, o histórico socioambiental da Three Gorges é um
grave alerta para o modo como serão conduzidas as grandes mudanças projetadas
para o Tapajós.
http://reporterbrasil.org.br/2016/02/quem-sao-os-chineses-de-olho-na-amazonia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário