II ENCONTRO INTERNACIONAL DE MOVIMENTOS SOCIAIS
Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, de 7 a 9 de julho de 2015
A reflexão foi centrada em torno dos três eixos: Terra,
Trabalho e Moradia.
TERRA
Absolutamente mal distribuída; ou apropriada
autoritariamente por quem tem poder econômico, e, por isso, produzindo uma
concentração em grandes propriedades correspondendo à concentração da riqueza
em todo o planeta. Toma a forma de escândalo, sinalizando que há profunda
divisão no seio da espécie humana: em torno de 52 empresas controlam a riqueza
material e financeira. Entre elas, estão as que encabeçam e concentram o
sistema de agroindústria, mais conhecido como agronegócio. São grandes
laboratórios, de onde saem as sementes transgênicas e todos os insumos, na
verdade, venenos, que chegam até as pessoas depois de contaminar solo, subsolo,
aquíferos, atmosfera. Tudo somado, incluindo o transporte e consumo de energia,
cabe a este sistema a maior responsabilidade pela contaminação da atmosfera,
pelo aquecimento que agrava as mudanças climáticas.
Por outro lado, mesmo com pouca terra, na forma comunitária
ou de pequenas propriedades, a agricultura indígena e camponesa produz
alimentos para mais de 70 por cento da população mundial. Por isso, não passa
de ideológica a afirmação de que o sistema agroindustrial seria necessário para
alimentar a humanidade; o pouco que contribui, introduz mais doenças e cânceres
do que saúde.
Diante desse quadro, afirma-se cada dia mais a proposta dos
indígenas e camponeses de que se faça uma redistribuição da terra para
agricultura, dedicando a não necessária à recriação de florestas; e que se
promova, como processo de educação para um tempo de vida nova, com nova cultura
de produção e de consumo, a agroecologia, pois ela se soma às práticas que
reequilibram as relações com a Mãe Terra.
TRABALHO
Sem trabalho, não existem pessoas humanas. Ele é
característica do ser humano, de sua criatividade, de sua relação com a
natureza, com sua capacidade de cultivar e produzir a reprodução de sua vida. E
mais, o ser humano cresce e se realiza através do trabalho em todas as suas
formas.
O trabalho, no tempo histórico em que dominam os sucessivos
ciclos do capitalismo, foi separado da pessoa e tornado uma mercadoria
essencial para gerar concentração de lucros por meio do roubo da mais valia, a
maior parte do resultado do trabalho individual ou coletivo. As relações
socioeconômicas baseadas nessa prática se tornam fonte de alienação: tanto o
trabalhador perde relação com o fruto de seu trabalho, como vai perdendo a
consciência de que ele e eles são a fonte real da produção, avançando a ilusão
de que ela seria obra dos compradores e exploradores de trabalho.
Por isso, um dos grandes desafios a serem enfrentados para
construir o novo mundo possível é a libertação do trabalho, a reapropriação por
parte da pessoa do sentido e do valor de sua capacidade criativa, de seu
trabalho. Sem isso, será impossível avançar na direção de sociedades
construídas com relações realmente livres, transparentes.
É por isso que no 1º e no 2º Encontro Internacional de
Movimentos Sociais esta é uma das denúncias, das reivindicações e das
afirmações concretas mais fortemente apresentadas. Denúncias dos maus frutos da
exploração do trabalho como mercadoria, que aparecem na forma de concentração
da riqueza e poucas mãos e da geração da pobreza, da miséria e da fome para a
maioria da população mundial. Reivindicação em favor das formas livres e
cooperativas de trabalho, e da revalorização do trabalho em iniciativas
maiores, com salários que efetivamente garantam vida de qualidade do
trabalhador/a e sua família. Afirmação concreta do que já está sendo
construído, no campo e nas cidades, de formas de trabalho realmente cooperativas,
no que se conhece como economia solidária.
Evidentemente, o avanço desta construção de um mundo
construído com trabalho libertado e com relações transparentes demanda aprender
com processos políticos que possibilitaram redefinições do caráter do Estado, através
especialmente das dinâmicas educativas dos processos constituintes. Isso se vai
comprovando como uma condição para redefinir as relações entres as pessoas e
com a natureza, reconhecida como Mãe Terra pela contribuição das culturas de
Bem Viver dos povos indígenas.
Para os países que ainda não realizaram um processo
constituinte conquistado pelos movimentos sociais, apresenta-se um desafio
essencial: unir os movimentos sociais, superando os particularismos, em torno
de um projeto prático de construção de uma sociedade assentada sobre o trabalho
libertado, com governos submetidos ao controle e poder soberano dos
cidadãos/ãs, com políticas que efetivamente priorizem processos de mudanças
estruturais, tendo por base formas de produção e consumo centradas na
reeducação promovida na conquista da libertação do trabalho.
Para os países que já realizaram processos constituintes e
redefiniram os fundamentos, valores e finalidades do Estado com representação
real de seus povos, continuam tendo novo desafio: a promoção de políticas
públicas efetivamente coerentes com a nova Constituição. É essencial que a
urgência de gerar recursos para dar conta dos custos públicos da dívida e das
políticas sociais não continue como justificativa, por exemplo, para a
manutenção e até multiplicação de inciativas de extração de fontes fósseis de
energia: petróleo, gás, carvão, bem como para a multiplicação de mineração.
Estarão sendo, dessa forma, respeitados e garantidos os direitos da natureza,
da Pachamama?
A busca desta coerência passa pela promoção de outras formas
de trabalho, que se multiplicarão através da promoção de outras fontes de
energia, de modo especial através do sistema descentralizado de produção e uso
de energia, relacionando com fontes mais limpas, abundantes em todos os
territórios, como o sol, os ventos, o movimento natural de águas, a biomassa
que pode gerar biogás...
Na realidade, estes processos demandam e dependem de que os
movimentos sociais construam seu projeto de sociedade e de mundo, com as
qualidades sociais e ecológicas desejadas.
MORADIA
Definir a moradia como direito social básico exige, como
condições prévias e permanentes, a democratização do acesso à terra e a
garantia de oportunidades e valorização do trabalho, para que as pessoas e
famílias possam viver com dignidade. Por outro lado, é fundamental ter
presente, no planejamento de uma política pública de habitação, que moradia é
mais do que a construção da casa; ela de ser entendida como habitat, como um
conjunto de iniciativas sociais no mesmo espaço em que está a casa e um
conjunto de casas: serviços de água, tratamento de esgotos, espaços de lazer,
ruas e praças, transporte, energia...
A existência de uma política de habitação que reconheça e
garanta a moradia como um direito básico para a vida exige, como condição
prévia, que seja relativizado o direito à propriedade. Na verdade, o direito à
moradia deve ser anterior à propriedade privada. Sem isso, a tendência é que os
proprietários alarguem o controle dos espaços no território, provocando
permanente especulação, o que impede a maioria de alcançar o terreno urbano
através da compra e torna muito cara a eventual política pública de habitação.
A melhor alternativa é definir a terra como espaço comum dos seres vivos, entre
eles os humanos, e só admitir a posse individual quando isso torna aquele
espaço uma fonte de resposta a necessidades sociais. Isso possibilita que todos
tenham espaço para construir sua casa, bom como que comunidades e povos possam
ter garantida a posse de seus territórios, prevalecendo o comunitário sobre o
individual.
Outro desafio debatido é o das práticas de políticas
habitacionais que transformam a construção de casas populares um bom negócio
para empresas de construção, com projetos que atendem ao seu objetivo de lucro,
e nos quais não há nenhuma participação dos que viverão nelas. Os movimentos
sociais de luta por moradia defendem que os projetos devem ser elaborados com a
participação das famílias; na verdade, o melhor caminho é que o projeto sela
elaborado pelas comunidades que terão seu direito de moradia garantido, pois
assim terão a marca da cultura local, as casas serão projetadas de forma
adequada às necessidades reais e serão garantidas as demais obras que
configurem um ambiente real de moradia, de lugar de vida entre as pessoas e de
relação harmoniosa com a natureza.
A RELAÇÃO COM O PAPA FRANCISCO
As referências são de alegria por ver a real parceria já
existente e que vai se aprofundando entre o Papa Francisco e os movimentos
sociais populares do mundo. Da mensagem do Papa, os destaques são suas falas no
I Encontro Internacional realizado no Vaticano e sua Encíclica Laudato Si´,
sobre o Cuidado da Casa Comum. Todos encontram neles estímulos para compreender
de forma crítica a realidade em que vivemos, alimento para a espiritualidade e
mística necessária para as lutas populares, bem como pistas de ação. Em muitos
aspectos, os movimentos sociais percebem que suas reflexões e formas de ação
são acolhidos, reconhecidos, reforçados, o que favorece a perspectiva de consolidação
da parceria.
As temáticas do atual II Encontro deverão ser sistematizadas
num documento que será entregue ao Papa, em mais um passo de intercâmbio, de
entreajuda, pois tanto o Papa deseja as contribuições dos movimentos sociais
para a sua missão, como os movimentos sociais esperam e desejam seu apoio.
O que resta desejar é que esse processo novo e, segundo
algumas das intervenções, revolucionário, realize suas potencialidades, na
certeza de que será um serviço positiva à vida da humanidade.
Ivo Poletto,
do Fórum MCJS, a partir de Santa Cruz de la Sierra
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