quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

REFLEXÕES SOBRE A RENÚNCIA DO PAPA BENTO VI

Amigas e amigos, 
sei que este é um espaço plural e que, por isso, algumas pessoas poderão estranhar o artigo que segue. Como muitas pessoas estão comentando a renúncia do papa, achei que poderia ser interessante expor minha reflexão sobre esse fato. Gostaria muito que fizessem seus comentários,  concordando ou não com meus pontos de vista.


Trata-se, sem dúvida, de uma decisão surpreendente. Quem imaginaria que o papa Ratzinger renunciaria à missão de restaurar o catolicismo, em crise, segundo seus eleitores e admiradores, por ter-se desgarrado da doutrina e caminho seguro a partir do Concílio Vaticano II? Vale a pena, por isso, refletir sobre quais as prováveis razões reais de sua decisão.

O motivo da renúncia estaria na falta de saúde física, mental e espiritual, como consta no texto do anúncio? O porta-voz do Vaticano afirmou que o papa não tem doença alguma que justifique a renúncia. Portanto, outros fatores devem ter pesado. É claro que a idade traz limitações, mas isso podia ter sido alegado já na data de sua eleição, uma vez que tinha 78 anos.

Na verdade, esse gesto radical só pode ser compreendido com a análise realista das pressões que se avolumaram sobre o Vaticano e especialmente sobre o papa. Trata-se do desejo de diferentes grupos de católicos que exigiam dele o enfrentamento de crises que têm origem não apenas em seu período de governo da Igreja Católica, e sim causadas por estruturas assentadas sobre um tipo de eclesiologia que produziu um descolamento entre o sistema do Vaticano e as igrejas particulares em todo o mundo, uma eclesiologia tão centralizadora na pessoa do papa e seus auxiliares que se sustentou mais na citação de textos dos próprios papas e no direito canônico do que no Evangelho de Jesus de Nazaré.

Em outras palavras, pode-se dizer que Bento VI sucumbiu ao peso absurdo da responsabilidade jogada sobre os ombros de uma única pessoa como fruto de uma eclesiologia que também ele assumiu e defendeu. E a renúncia, vista a partir desse horizonte histórico e teológico, expõe os riscos de uma interpretação fundamentalista da infalibilidade papal, que tanto pode e leva a uma papolatria quanto expõe quem assume esta missão à impossibilidade humana de corresponder a expectativas e funções tão absurdamente absolutas. É urgente trazer para o debate sobre os fundamentos das missões de serviço à igreja, que deve estar a serviço do Reino – atualmente, de forma institucionalizada, o presbiterato, o episcopado e o papado -, o sentido teológico e pastoral da prática de Deus ao decidir fazer-se um de nós: como ele se fez humano, não nos cabe criar cargos e estruturas que pretendam ser divinas!

Afinal, as pressões sobre o papa versaram temas como o funcionamento do Banco do Vaticano, sua ligação ou não com circulação especulativa e ilegal de recursos; sobre a administração do estado do Vaticano, com documentos mais ou menos secretos, com representações diplomáticas com governos de todos os tipos, poucos ou nenhum pautados em valores evangélicos; sobre as preferências e comportamento sexual de religiosos, presbíteros e até bispos, respondendo por suas práticas criminosas de pedofilia; sobre a reivindicação mais do que justa das mulheres em relação à sua vocação para o presbiterato, exigindo serem reconhecidas como iguais e tratadas como o foram por Jesus de Nazaré: sem preconceitos; sobre a manutenção ou não da lei eclesiástica que limita o acesso ao presbiterato e episcopado só a homens que aceitem ser celibatários, limitando o direito à vivência da Eucaristia das comunidades cristãs ao número de ministros ordenados, levando bispos a ordenarem pessoas sem a necessária formação e vocação ao serviço evangélico; sobre a manutenção ou não de estruturas de eleição papal limitada a cardeais, acatando ou rejeitando propostas de maior prática de colegialidade, e não apenas com bispos e conferências episcopais, mas com presença ativa de mulheres e homens cristãos leigos de todo o planetas seja no processo de eleição como na prática de governo da igreja no mundo; sobre manter em processo de abertura e diálogo com as mediações culturais e religiosas dos povos as celebrações litúrgicas, ou manter de forma autoritária rituais e linguagens marcadas pela cultura ocidental européia, recuperando até mesmo a língua latina...

Como se percebe, a renúncia do papa Bento VI tem a ver com a forma mais ou menos evangélica e, por isso, com a forma mais ou menos humana, e humana em tudo que a humanidade conquistou nos dois mil anos a partir da Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, das estruturas da Igreja Católica. Será absurdo e terrível surdez se os cardeais, a quem cabe, ainda, eleger o próximo papa, não colocarem sobre a mesa de diálogo a desumanizadora carga de responsabilidades colocada sobre os ombros de uma única pessoa, se mantida a função papal ainda hoje vigente. Se estiverem abertos aos sinais dos tempos, a renúncia de Bento VI torna-se uma chave de leitura e uma oportunidade para rever e transformar as formas e estruturas de poder em espaços de serviço realmente evangélicos à igreja anunciadora de Jesus de Nazaré para a humanidade.
Não me cabe julgar a pessoa de Joseph Ratzinger, pois isso só ele próprio e Deus podem fazer. O que, sim, é também de minha responsabilidade como cristão pertencente à igreja católica, é refletir sociológica e teologicamente sobre a prática do papado. Os seis anos de Bento VI deixaram muito a desejar, como se pode perceber nos sucessivos depoimentos e reflexões de Carlo Martini, seu colega e também possível papa, e nas propostas e quase desesperadas reflexões teológicas de seu colega Hanz Küng, de tantos outros teólogos, de alguns bispos e muitos presbíteros, de muitas religiosas e religiosos, de tantas e tantos cristãos leigos. Continuou o afastamento dos conteúdos teológicos e caminhos pastorais inaugurados pelo Vaticano II, dando preferência a sugestões ou gostos de grupos conservadores, em nada representativos ou com a autoridade do Concílio. Não retomou a colegialidade, nem mesmo com os irmãos bispos...

Tudo isso, fique claro, não afeta apenas a igreja enquanto instituição. Afeta a possibilidade de ela anunciar efetivamente Jesus de Nazaré à humanidade de hoje. Colocar em prática o adágio ecclesia semper reformanda não é cuidar dos interesses internos da instituição eclesiástica e eclesial; é condição sine qua non de manter-se aberta ao diálogo com a humanidade em diferentes tempos e lugares, um diálogo que, se for fiel testemunho de seguimento de Jesus de Nazaré, é prática libertadora, a partir e com os que os poderes desse mundo reduzem à miséria, ao abandono, à marginalização, à desumanização, sempre na missão de revelar que o reino que já está no meio de nós e que o reino desejado por Deus ainda virá, e seré um grande banquete com todas as pessoas que aceitarem o convite e estejam com a veste do serviço segundo a prática de Jesus, e com as demais que, se duvidarem do convite por causa de sua situação, deverão ser até forçadas a entrar, para que a casa fique cheia...





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