sei que este é um espaço plural e que, por isso, algumas pessoas poderão estranhar o artigo que segue. Como muitas pessoas estão comentando a renúncia do papa, achei que poderia ser interessante expor minha reflexão sobre esse fato. Gostaria muito que fizessem seus comentários, concordando ou não com meus pontos de vista.
Trata-se, sem dúvida, de uma decisão
surpreendente. Quem imaginaria que o papa Ratzinger renunciaria à missão de
restaurar o catolicismo, em crise, segundo seus eleitores e admiradores, por
ter-se desgarrado da doutrina e caminho seguro a partir do Concílio Vaticano
II? Vale a pena, por isso, refletir sobre quais as prováveis razões reais de
sua decisão.
O motivo da renúncia estaria na
falta de saúde física, mental e espiritual, como consta no texto do anúncio? O
porta-voz do Vaticano afirmou que o papa não tem doença alguma que justifique a
renúncia. Portanto, outros fatores devem ter pesado. É claro que a idade traz
limitações, mas isso podia ter sido alegado já na data de sua eleição, uma vez
que tinha 78 anos.
Na verdade, esse gesto radical só
pode ser compreendido com a análise realista das pressões que se avolumaram
sobre o Vaticano e especialmente sobre o papa. Trata-se do desejo de diferentes
grupos de católicos que exigiam dele o enfrentamento de crises que têm origem
não apenas em seu período de governo da Igreja Católica, e sim causadas por
estruturas assentadas sobre um tipo de eclesiologia que produziu um
descolamento entre o sistema do Vaticano e as igrejas particulares em todo o
mundo, uma eclesiologia tão centralizadora na pessoa do papa e seus auxiliares
que se sustentou mais na citação de textos dos próprios papas e no direito
canônico do que no Evangelho de Jesus de Nazaré.
Em outras palavras, pode-se dizer
que Bento VI sucumbiu ao peso absurdo da responsabilidade jogada sobre os
ombros de uma única pessoa como fruto de uma eclesiologia que também ele
assumiu e defendeu. E a renúncia, vista a partir desse horizonte histórico e
teológico, expõe os riscos de uma interpretação fundamentalista da
infalibilidade papal, que tanto pode e leva a uma papolatria quanto expõe quem
assume esta missão à impossibilidade humana de corresponder a expectativas e
funções tão absurdamente absolutas. É urgente trazer para o debate sobre os
fundamentos das missões de serviço à igreja, que deve estar a serviço do Reino
– atualmente, de forma institucionalizada, o presbiterato, o episcopado e o
papado -, o sentido teológico e pastoral da prática de Deus ao decidir fazer-se
um de nós: como ele se fez humano, não nos cabe criar cargos e estruturas que pretendam
ser divinas!
Afinal, as pressões sobre o papa
versaram temas como o funcionamento do Banco do Vaticano, sua ligação ou não
com circulação especulativa e ilegal de recursos; sobre a administração do
estado do Vaticano, com documentos mais ou menos secretos, com representações
diplomáticas com governos de todos os tipos, poucos ou nenhum pautados em
valores evangélicos; sobre as preferências e comportamento sexual de
religiosos, presbíteros e até bispos, respondendo por suas práticas criminosas
de pedofilia; sobre a reivindicação mais do que justa das mulheres em relação à
sua vocação para o presbiterato, exigindo serem reconhecidas como iguais e
tratadas como o foram por Jesus de Nazaré: sem preconceitos; sobre a manutenção
ou não da lei eclesiástica que limita o acesso ao presbiterato e episcopado só a
homens que aceitem ser celibatários, limitando o direito à vivência da
Eucaristia das comunidades cristãs ao número de ministros ordenados, levando
bispos a ordenarem pessoas sem a necessária formação e vocação ao serviço
evangélico; sobre a manutenção ou não de estruturas de eleição papal limitada a
cardeais, acatando ou rejeitando propostas de maior prática de colegialidade, e
não apenas com bispos e conferências episcopais, mas com presença ativa de
mulheres e homens cristãos leigos de todo o planetas seja no processo de
eleição como na prática de governo da igreja no mundo; sobre manter em processo
de abertura e diálogo com as mediações culturais e religiosas dos povos as celebrações
litúrgicas, ou manter de forma autoritária rituais e linguagens marcadas pela
cultura ocidental européia, recuperando até mesmo a língua latina...
Como se percebe, a renúncia do papa
Bento VI tem a ver com a forma mais ou menos evangélica e, por isso, com a
forma mais ou menos humana, e humana em tudo que a humanidade conquistou nos
dois mil anos a partir da Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, das estruturas
da Igreja Católica. Será absurdo e terrível surdez se os cardeais, a quem cabe,
ainda, eleger o próximo papa, não colocarem sobre a mesa de diálogo a
desumanizadora carga de responsabilidades colocada sobre os ombros de uma única
pessoa, se mantida a função papal ainda hoje vigente. Se estiverem abertos aos
sinais dos tempos, a renúncia de Bento VI torna-se uma chave de leitura e uma
oportunidade para rever e transformar as formas e estruturas de poder em
espaços de serviço realmente evangélicos à igreja anunciadora de Jesus de
Nazaré para a humanidade.
Não me cabe julgar a pessoa de
Joseph Ratzinger, pois isso só ele próprio e Deus podem fazer. O que, sim, é
também de minha responsabilidade como cristão pertencente à igreja católica, é
refletir sociológica e teologicamente sobre a prática do papado. Os seis anos
de Bento VI deixaram muito a desejar, como se pode perceber nos sucessivos
depoimentos e reflexões de Carlo Martini, seu colega e também possível papa, e
nas propostas e quase desesperadas reflexões teológicas de seu colega Hanz
Küng, de tantos outros teólogos, de alguns bispos e muitos presbíteros, de
muitas religiosas e religiosos, de tantas e tantos cristãos leigos. Continuou o
afastamento dos conteúdos teológicos e caminhos pastorais inaugurados pelo
Vaticano II, dando preferência a sugestões ou gostos de grupos conservadores,
em nada representativos ou com a autoridade do Concílio. Não retomou a
colegialidade, nem mesmo com os irmãos bispos...
Tudo isso, fique claro, não afeta
apenas a igreja enquanto instituição. Afeta a possibilidade de ela anunciar
efetivamente Jesus de Nazaré à humanidade de hoje. Colocar em prática o adágio ecclesia semper reformanda não é cuidar
dos interesses internos da instituição eclesiástica e eclesial; é condição sine qua non de manter-se aberta ao
diálogo com a humanidade em diferentes tempos e lugares, um diálogo que, se for
fiel testemunho de seguimento de Jesus de Nazaré, é prática libertadora, a
partir e com os que os poderes desse
mundo reduzem à miséria, ao abandono, à marginalização, à desumanização,
sempre na missão de revelar que o reino
que já está no meio de nós e que o reino desejado por Deus ainda virá, e
seré um grande banquete com todas as pessoas que aceitarem o convite e estejam
com a veste do serviço segundo a prática de Jesus, e com as demais que, se
duvidarem do convite por causa de sua situação, deverão ser até forçadas a entrar, para que a casa fique
cheia...
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