segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

MUDANÇAS CLIMÁTICAS E SOBERANIA ALIMENTAR

Estou disponibilizando o texto que contém notas para o debate numa oficina no Fórum Social Temático, realizado em Porto Alegre. A humanidade está precisando enfrentar com urgência os efeitos da dominação do mercado capitalista sobre a distribuição e sobre o uso dos alimentos: 1 bilhão de pessoas se encontra na miséria, sem ter o mínimo para alimentar-se; outro 1 bilhão alimenta-se de forma insuficiente, com carências, sem segurança nutricional; e outro 1 bilhão sobre por obesidade, isto é: ou come demais e/ou alimenta-se seguindo as receitas absurdas dos Fast Food.


Vale um tempo de reflexão crítica sobre este desafio. E de busca de caminhos para que possamos garantir alimentos saudáveis para todas as pessoas e povos em cooperação com a Terra. Isto exigirá a construção de uma nova civilização.



MUDANÇAS CLIMÁTICAS E SOBERANIA ALIMENTAR[1]
Ivo Poletto[2]
1.  Uma guerra de séculos
A humanidade vive o grau máximo de sua guerra contra a natureza, declarada e executada desde Francis Bacon no século XVI. Ela é vista como um ser resistente, que esconde e não quer entregar seus segredos. Como o ser humano, portador de razão, teria direito de colocar a natureza a seu serviço, cabe-lhe também buscar esses segredos usando todos os meios necessários. Evidentemente, este direito do ser humano vem junto com o direito de livre iniciativa da ideologia liberal, isto é, o direito de apropriar-se tanto dos conhecimentos científicos como da própria natureza explicada e passível de tornar-se meio de produção de bens para consumo humano. E este direito privado avança também sobre a possibilidade de colocar sob uso privado as capacidades humanas, pagando por elas o preço contratado, deixando ao trabalhador empregado a liberdade de reproduzir suas forças com uso livre do salário que lhe é pago.
Esta guerra de séculos apresenta seus frutos nos dias de hoje:
- o controle econômico e financeiro de um reduzido número de oligopólios multinacionais, ocidentais e orientais; estudo revela que são apenas 147 as grandes empresas que controlam o mercado e a especulação mundiais, a maioria delas bancos;[3]
- o uso de todos os meios para manter sob domínio privado as últimas reservas de fontes fósseis de energia, de minérios, de água, de florestas, de biodiversidade;
- o uso extremo da obsolescência programada (diminuição da durabilidade) para manter em expansão o mercado mundial de mercadorias, de modo especial no 1/4 da humanidade que já consome mais de 80% delas, explorando ao máximo o consumo individual, ocupando as cidades com automóveis, multiplicando o desperdício...
- o uso cada vez mais intensivo de produtos químicos para programar os solos em função das sementes, visando aumento quantitativo de commodities agrícolas, cada vez mais contaminadas e contaminadoras;
- entre as batalhas mais recentes, celebra-se a vitória sobre a dependência da agricultura à reprodução natural das sementes, agora programadas em laboratório, não mais genéticas, e sim transgênicas – e já se anuncia e se deseja impor a semente transgênica suicida, que só germina uma vez...
Poderíamos avançar nesta lista de resultados, de festejados ganhos dessa guerra para os proprietários capitalistas. Mas, como se deixou de reconhecer, por ignorância ou, provavelmente, por interesse, que a natureza tem limites, que os bens naturais ambicionados são limitados, e que as leis naturais, uma vez dominadas e domesticadas, poderiam tornar-se fontes de desequilíbrios no ambiente favorável à vida, gerado em milhões de anos pela Terra – e não pelos seres humanos -, precisamos igualmente ter presentes os seguintes efeitos desta guerra:
- o modo de vida baseado no sistema capitalista produtivista e consumista, que exige crescimento constante, já ultrapassou a capacidade da Terra de repor os bens dela retirados para mantê-lo...
- o uso de fontes fósseis de energia em todos os campos da existência, a concentração da população em cidades sem cuidado com os lixos e esgotos, a derrubada de florestas para uso de madeiras e para aumentar áreas de agricultura, pecuária e mineração, o avanço sobre os mares sem cuidado com sua biodiversidade: tudo isso aumentou a emissão de gases de efeito estufa na atmosfera numa velocidade espantosa, especialmente nas últimas cinco décadas;
- este aumento de emissões foi agravado pela derrubada e queima de florestas e pela fragilização e morte de seres vivos marinhos, seres vivos que poderiam absorver parte do dióxido de carbono que aquece o planeta...
- ao lado do desperdício praticado por 20% da humanidade, sofrem e lutam contra a miséria mais de um bilhão de pessoas...
- o aquecimento da temperatura da Terra provoca o agravamento de fenômenos naturais, na forma de eventos climáticos extremos, aumento de precipitações intensas de chuvas, enchentes destruidoras, desmoronamentos, vendavais, ciclones, derretimento de neves e gelos, nos pólos e nas cordilheiras, elevação do nível das águas dos mares, cobrindo ilhas e partes dos continentes...
- estudos recentes comprovam que o número de pessoas que migram e não podem retornar aos seus lugares de origem por causa de desastres socioambientais é cada vez maior e já supera o dos que migram por causa de conflitos políticos...[4]

2. A guerra contra a fome
É preciso deixar clara a diferença entre a guerra pela expansão do mercado capitalista e a guerra contra a fome. O que interessa ao capital, mesmo quando declara que deseja combater a fome, é que aumente o consumo, até mesmo de dinheiro, aprofundando a especulação e a dominação através da dívida, e isso pode ser realizado com a existência, até mesmo em quantidade crescente, de pessoas sem acesso aos bens básicos de alimentação. A forma em que se enfrentou a recente crise financeira de 2008, e insiste-se em enfrentá-la no seu segundo round, em 2011, levou mais 250 milhões de pessoas à miséria.
Por isso, a guerra capitalista contra a fome serviu, na realidade, de justificativa mundial para promover e justificar a denominada revolução verde, e mais recentemente, o uso de sementes transgênicas. O que se produziu com ela foi a apropriação privada de territórios extensos, o crescimento da produção laboratorial e industrial de produtos químicos e a dependência da agricultura ao seu consumo em quantidades cada vez maiores, o uso intensivo de água e de energia para irrigação, o crescimento do domínio dos grandes e oligopolizados laboratórios, a concentração do comércio de grãos em poucas empresas transnacionais, o uso de commodities agrícolas para especulação financeira...
Em outras palavras, a miséria atual pode e deve ser compreendida como resultado desse tipo de sistema capitalista mundializado de crescimento econômico, uma vez que se sabe que já se tem capacidade e se produz mais do que o suficiente para alimentar toda a humanidade. Perre Sané, da UNESCO, afirmou que a miséria só será derrotada quando for abolida, da mesma forma que o foi a escravidão moderna, funcional a uma das fases do capitalismo. Definida em lei como crime contra o direito à vida e contra a dignidade humana, quem a provoca poderá ser responsabilizado judicialmente por seu crime.[5]
Por isso tudo, a guerra dos povos contra a fome e a miséria, isto é, a luta atual pelo direito humano universal à alimentação e nutrição, é uma luta que se dá em diversos campos, mas todos têm em comum a denúncia, o combate e a superação do sistema capitalista. Destacam-se as opções entre:
a)      Agronegócio X produção agroecológica
b)      Monocultivos extensos X produção familiar camponesa e em territórios coletivos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
c)      Semente natural, valorizando o que há de alimentos nos diferentes biomas e ecossistemas X semente transgênica em todo o planeta
d)     Economia com as florestas e biodiversidade, conservando as que existem e recriando-as X apropriação privada de todos os solos e bens naturais
e)      Direito humano à soberania alimentar e nutricional X submissão ao mercado mundial de alimentos
f)       Agricultura que emite óxido nitroso e metano, gases de efeito estufa X agroecologia, que ajuda a Terra a recuperar o equilíbrio climático, com médias de temperatura favoráveis a todas as formas de vida...

3. Outra civilização, com soberania alimentar

Por mais importante que seja para os milhões que se encontravam ou que continuam em situação de miséria, programas de governo como o Bolsa Família – principal programa social do atual Brasil sem Miséria, que substitui o Fome Zero – não são suficientes. Por não serem Políticas de Estado, sua continuidade ou seu enfraquecimento ou abandono depende das opções do governo de plantão. Por isso, junto com constitucionalização do direito universal à alimentação e nutrição, conquistada pela sociedade civil brasileira, é necessária uma política de Estado que defina metas e recursos para que a miséria venha a ser realmente derrotada.
Seguindo no exemplo do Brasil, a manutenção do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC - como o motor do desenvolvimento do país indica que a superação da miséria, se ocorrer, se dará não pela vitória da soberania alimentar, mas como integração dependente e limitada de mais pessoas ao mercado capitalista. Por mais que haja limitada redistribuição de recursos da classe média para os mais empobrecidos, o que realmente cresce é o capital financeiro e algumas empresas que se tornam multinacionais com apoio de recursos públicos, via BNDS. Trata-se de um capitalismo que continua periférico, dependente da exportação de commodities agrícolas e minerais e da entrada de capitais especulativos, atraídos pela política de altas taxas de juro. Isso agrava a dívida pública, que serve como mecanismo de dominação privada capitalista sobre o Estado e de privatização capitalista dos recursos públicos.
A busca da soberania alimentar implica, hoje, enfrentar e superar a forma capitalista de domínio e abuso dos bens naturais, a dependência do uso de fontes fósseis de energia, o domínio do mercado globalizado... Em sentido inverso, significa reconquistar o reconhecimento de que cada povo tem direito de viver e alimentar-se em seu território, com o que a Terra criou e ofertou ao ser humano em cada bioma e ecossistema, com seus hábitos alimentares, com suas sementes, com sua cultura...
Caminhar nesta direção significa superar todo o sistema de dependência química e industrial do modelo de produção do agronegócio, pois ele serve apenas para agredir, envenenar e desertificar os solos, para produzir alimentos envenenados e para enriquecer um número cada vez menor de proprietários. Em sentido inverso, significa reconhecer as potencialidades e promover as várias formas de agroecologia, aprofundando o conhecimento e a prática de tecnologias que recuperem a vitalidade dos solos, a qualidade alimentar das sementes nativas, que restabeleçam a convivência entre diferentes plantas, insetos e animais, colaborando com a Terra em seu esforço de recuperar seu equilíbrio atmosférico...
Mesmo assim, serão indispensáveis mudanças profundas na civilização do produtivismo e consumismo, sem o que não haverá como produzir alimentos verdadeiros e saudáveis para todas as pessoas. É um absurdo tanto afirmar que se deve aceitar a atual proposta de Código Florestal para aumentar a produção de alimentos com a tecnologia do agronegócio, como afirmar que, até 2050, será preciso aumentar a produção em 70% por meio de ganhos de produtividade do atual modelo dominante de agropecuária: no primeiro exemplo, concedida anistia de crimes ambientais, quererão mais e mais, até não haver espaço para que a Terra se mantenha com córregos, rios, espaços de reprodução de seres vivos dos rios e dos mares, e tudo isso para produzir mercadorias envenenadas para as indústrias de alimentos; no segundo, ampliada a direção imposta pelos laboratórios e empresas de produtos químicos, o ganho de produtividade se dará com o aumento do uso de sementes artificiais e dos insumos químicos, propagando novas formas de doenças, envenenado e contaminando solo, subsolo e atmosfera...
Para concluir, e parafraseando Mahatma Gandhi: se todas as pessoas buscarem com simplicidade os alimentos necessários, evitando desperdícios, há condições de produzir o suficiente para todas as pessoas; mas para alimentar pessoas e povos gananciosos, nunca se produzirá o suficiente, haverá famintos e a Terra será mais agredida. Sem uma mudança civilizacional, em que se renovem as relações entre os seres humanos e deles com a Terra, mãe de todas as formas de vida que conhecemos, como proposto e praticado pelos povos milenares do Bem Viver, não se alcançará segurança e soberania alimentar e nutricional para e com todas as pessoas.






[1] Notas para debate na Oficina sobre Mudanças Climáticas e Soberania Alimentar, organizada por Secour Catholique, no Fórum Social Temático, dia 27 de janeiro de 2012.
[2] Assessor do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social e da Cáritas Brasileira e pastorais sociais da CNBB.
[3] Ver Matemáticos revelam rede capitalista que domina o mundo, na revista New Scientist, 22/10/2011, reproduzida pelo sítio Inovação Tecnológica.
[4] Ver Os novos refugiados, em IHU terça, 24/01/2012.
[5] Pierre Sané, “Pobreza, a próxima fronteira na luta pelos direitos humanos”, in Jorge Werthein e Marlova J. Noleto. Pobreza e Desigualdade no Brasil. Brasília: UNESCO, 2003, p.27.

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