terça-feira, 18 de outubro de 2011

O LIVRE-ARBÍTRIO E O SISTEMA SACRIFICIAL


O que acontece quando um sistema econômico revela, por suas contradições, pela forma de enfrentar as crises geradas por ele, que só se satisfaz com sangue humano, isto é, que é um sistema estruturalmente sacrificial?

Esse sistema perde legitimidade. Será cada dia mais difícil apresentar-se como exemplo de sucesso, de fonte de desenvolvimento – entendido como crescimento econômico contínuo -, de única forma de civilização. Será cada dia mais difícil manter a seu serviço as instituições e os recursos públicos, especialmente contar com as forças repressivas para manter a ordem que garante seus interesses.

Ao perder legitimidade, cresce a dificuldade de manter a justificativa legal de suas ações. Como pode ser legal, por exemplo, a propriedade privada quando é claro instrumento para sacrificar vidas humanas? Como pode ser defendida a livre iniciativa capitalista quando é instrumento de concentração de riqueza, de controle de preços, de definição de quem pode ou não ter acesso aos bens absolutamente indispensáveis à vida?
Esse caráter sacrificial do sistema capitalista foi percebido já no século IXX por Marx, mas foi preciso que chegasse à fase neoliberal e globalizada, à fase de hegemonia do capital financeiro, para que se tornasse evidente. Essa evidência se revela nas formas de reação e de ação dos que se autodenominam indignados. Já não reclamam por inclusão, porque sabem que não há lugar para eles nesse sistema. Já não pedem atenção das instituições estatais, porque sabem que elas estão comprometidas com o sistema que os exclui. O que vão exigindo é o fim do conjunto do sistema capitalista, para que se passe a viver de outra forma, em outro estágio de liberdade. O que vão exigindo é que todas as decisões que afetam a todos sejam tomadas diretamente por todas as pessoas; portanto, exigem participação democrática direta nas decisões referentes à economia, e isso exige novas constituições, nova legalidade.

O que estamos assistindo nos últimos tempos é a transformação da percepção de que o sistema capitalista é sacrificial em prática política. O acampar em espaços ainda públicos indica claramente que não se pode continuar aceitando viver subjugado por um sistema que decreta quem tem efetivo direito a ter um lar para viver. Um sistema que impõe este decreto por meio do controle seletivo de quem tem direito a receber um pouco de dinheiro em troca de sua dedicação às formas de produção de riqueza cada vez mais concentrada pelo capital financeiro. Um sistema que envolve pessoas com renda absolutamente insegura em financiamentos que servem para manter ganhos especulativos; que se declara ameaçado de falência quando esses financiados não conseguem manter em dia suas prestações; que exige transferência de recursos públicos para evitar a falência provocada por ele próprio, e conta com a subserviência das instituições estatais e dos políticos; que, finalmente, usa as crescentes dívidas dos Estados, geradas e agravadas por eles, para impor maiores taxas de juros como último recurso para concentrar riqueza através da especulação financeira...  

Não há como não referir duas experiências históricas. A primeira é a dos escravos no tempo da escravidão moderna, a serviço do capitalismo, praticada até quase o fim do século IXX. A perda de legitimidade e de legalidade se deu por causa das contradições internas, estruturais desse modo de exploração do trabalho e da vida das pessoas; mas se deu principalmente porque as pessoas submetidas violentamente à escravidão nunca aceitaram passivamente essa prática; pelo contrário, seu fim foi provocado e apressado por meio das fugas e da constituição dos quilombos como espaços autônomos de vida. Em outras palavras, a decisão livre, o uso do livre-arbítrio por parte dos escravos foi a fonte principal da revelação do caráter sacrificial da escravidão moderna e da sua abolição, gerando possibilidades de liberdade.

A outra experiência é a dos argentinos empobrecidos pela adesão carnal do governo Menen às imposições do FMI, isto é, ao processo de globalização do capitalismo neoliberal. Usando seu livre-arbítrio, decidiram comunicar-se com os que estavam na mesma situação de exclusão, autoconvocarem-se para ocupar ruas e praças para exigir mudanças. Sua palavra de ordem foi que se vayan todos – referindo especialmente aos políticos, talvez ainda não percebendo que estavam a serviço dos interesses dos grupos econômicos. Hoje, os indignados repetem que se vayan todos referindo-se a todos que servem e se aproveitam do sistema capitalista.

Como conclusão, o correto não é torcer para que se encontre nova solução da atual crise da dívida dentro do sistema, iludindo-se de que isso geraria a retomada de novo período de crescimento econômico. Pelo contrário, vale a torcida para que o sistema revele cada dia mais claramente seu caráter estrutural sacrificial, pois isso apressa a consciência e o uso do livre-arbítrio para exigir o seu fim. Por ser sacrificial de vidas humanas, e de tantas outras formas de vida e da vida da própria Terra, o sistema capitalista deve ser abolido.

Nessa perspectiva, cresce a importância das propostas alternativas de formas de vida, de produção e de consumo, de cultivo da terra e do uso de energia, de convivência entre as pessoas e povos e de convivência com a Terra. É urgente trabalhar para que formas de vida e propostas como a do Bem Viver dos povos indígenas da América Latina sejam valorizadas como fontes inspiradoras de formas de vida humana pós-capitalistas, já que, como adverte acertadamente Immanuel Wallerstein em sua entrevista ao IHU e publicada neste blog, não há garantias de que a forma pós-capitalista não seja ainda mais violenta e sacrificial. O tempo atual é tempo de dizer não, mas é principalmente tempo para semear o sim: criar e apostar em novas formas construtivas de civilização humana.

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