Roberto Malvezzi (Gogó)
Muitas pessoas - como eu - ficam surpresas com a constante recorrência à poesia nas obras do Papa Francisco. Laudato Si’ já é uma obra também poética, até porque São Francisco era um santo, um místico e também um poeta. Porém, nas últimas obras, como a Querida Amazônia e Fratelli Tutti, essa recorrência não só é explícita, como ainda passa pela justificativa que esses poetas são profetas e que necessitamos de novas linguagens para escapar da sociedade tecnocrática e consumista (no. 46)
A poesia não é usual na linguagem oficial do Vaticano. Porém, esse gênero literário está na Bíblia, como nos salmos, no Cântico dos Cânticos, mas também na linguagem teológica profundamente poética de São João, ou da Escola Joanina. O capítulo I do Evangelho de São João é, para meu gosto, a mais bela página da bíblia, porque é a síntese do maravilhoso projeto de Deus para toda sua Criação, o lugar de Jesus como ponte entre a criação e o Criador, mas também porque recorre à metáforas lindas de luz e trevas, alfa e ômega, princípio e fim, assim por diante.
Então, na Fratelli Tutti Francisco mais uma vez recorre à poesia para escrever seus textos. A citação da frase de Vinícius de Moraes – “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (215) -, não é uma citação a esmo, mas fundamenta toda a reflexão de vários tipos de encontro, com outras culturas, com a paz, com pessoas, com Deus, entre as religiões, outras civilizações, numa lista quase infinita.
Já na Querida Amazônia, Francisco se baseia na linguagem poética dos sonhos. Quando Francisco fala do “sonho ecológico”, ele cita longamente Vinícius de Moraes, Neruda, Thiago de Mello, Galeano (43-48) e – surpresas das surpresas para mim – Euclides da Cunha. Sim, o famoso jornalista não só escreveu sobre a guerra de Canudos, mas também sobre a Amazônia.
Nos discursos feitos aos Movimentos Populares, Francisco vai dizer que eles são “poetas sociais”, por arrancarem do nada vida digna para o povo. Talvez a forma mais precisa de elogiar a importância desses movimentos.
De resto, praticamente só os grandes místicos usaram da linguagem poética na história da Igreja, à exemplo de Teresa D’Ávida e João da Cruz. Veio deles a metáfora da “noite escura”, quando a alma humana não consegue enxergar um palmo diante do nariz, mesmo assim confia na escura luz da fé. Não podemos esquecer a poética popular, principalmente em regiões como o Nordeste do Brasil, onde o cordel sempre foi uma fantástica linguagem teológica também do povo.
Foi Pedro Casaldáliga – se alguém souber de outro, me desminta – quem trouxe a metáfora da noite escura para o âmbito socio-ambiental-político, com sua frase “a longa noite escura do neoliberalismo”. Já não me lembro onde foi que ele disse ou escreveu isso. Pedro também foi poeta, místico, profeta e citado na Querida Amazônia.
Então, os sonhos de Francisco aparecem em linguagem poética e aberta. Ela pressupõe interpretação e discernimento. Também indica o ponto onde sonhamos chegar, como que escapando dos pesadelos atuais para um futuro mais digno da criação e, no conjunto das criaturas, o ser humano.
Mais uma vez, longa vida ao Papa Francisco, com muita poesia.
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