“...Os
tomadores de decisão brasileiros devem vetar essa expansão, assim como
bancos devem rever o financiamento de empreendimentos que possam ter
impacto sobre a Amazônia, povos tradicionais e o clima global. Ao que
cabe a mim, continuarei produzindo ciência e divulgando os resultados
para a construção de uma sociedade mais justa e consciente sobre a
importância da conservação ambiental...”
The Intercept Brasil
‘Por que denunciei Bolsonaro por crime de lesa-pátria na Amazônia: se a cana-de-açúcar avançar, será o fim da chuva no Sudeste’
Lucas Ferrante, no The Intercept
HÁ
MAIS DE SETE anos, eu desenvolvo pesquisas sobre o impacto de cultivos
para a produção de biocombustíveis, que têm sido apresentados como uma
solução milagrosa para substituir os combustíveis fósseis e deter o
colapso climático. Em sua maioria, os biocombustíveis são produzidos a
partir de cana-de-açúcar, milho e óleo de palma. Eles são mesmo uma boa
alternativa para a redução das mudanças climáticas, sem dúvida, mas não
na Amazônia. Além disso, sua forma de cultivo deve obedecer regras
ambientais senão seu plantio pode contribuir com a destruição do meio
ambiente e o aquecimento global. Mas nosso presidente não pensa assim.
Em
5 de novembro, Jair Bolsonaro e seus ministros, Teresa Cristina, da
Agricultura, e Paulo Guedes, da Economia, assinaram decreto que expande
as áreas de cultivos de cana-de-açúcar para a produção de
biocombustíveis na Amazônia. A Amazônia não comporta mais a alteração do
seu bioma como diversos estudos científicos já demonstraram. O cultivo
de cana na Amazônia é, em si, um problema ambiental grave.
Em
março de 2018, já havia ocorrido uma tentativa do Senado brasileiro em
permitir a expansão do cultivo de cana-de-açúcar na Amazônia e Pantanal.
Esses biomas eram blindados da expansão desses cultivos devido a um
decreto do presidente Lula, que estabelecia o zoneamento agroecológico
para resguardá-los. Na época, eu e o prêmio Nobel e também pesquisador
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o INPA, Philip
Fearnside, publicamos uma carta na revista Science (versão em português
pode ser lida no Amazônia Real), expondo os riscos da liberação dos
cultivos de cana-de-açúcar na Amazônia.
A
preocupação sobre o impacto da cana-de-açúcar sobre a Amazônia era
tanta que a revista, internacionalmente reconhecida por ser a segunda
revista com maior impacto científico no mundo, adiantou a publicação
para que chegassem às mãos dos senadores a tempo de impedir a votação do
projeto que poderia rescindir o zoneamento agroecológico.
Dentre
as ameaças, nós listávamos: 1) o aumento de desmatamento, 2) o impacto
do cultivo sobre florestas adjacentes e 3) a perda de serviços
ecossistêmicos essenciais que são responsáveis pela manutenção das
chuvas das regiões sul e sudeste do Brasil.
Com
uma só canetada, Bolsonaro não tinha apenas condenado a Amazônia, as
chuvas da região Sul e Sudeste do Brasil e a agricultura do Brasil, mas
também a imagem ilibada dos biocombustíveis brasileiros.
De
fato, como aponta o estudo, a expansão da cana-de-açúcar na Amazônia
tem o potencial para diminuir significativamente as chuvas das regiões
sul e sudeste do Brasil, colapsando até mesmo a própria produção de
etanol do Brasil, além de toda a produção agrícola e abastecimento de
água nessas regiões. Devido ao estudo publicado na Science e à pressão
de diversas organizações ambientais, o Senado decidiu não votar a quebra
do zoneamento agroecológico, por causa da liberação de cana-de-açúcar
na Amazônia representar não apenas uma ameaça ao bioma, mas ao potencial
agrícola do país.
Mas
a nova administração do Brasil não valoriza a ciência que produz ou
parece não entender sua importância. Bolsonaro prefere governar apenas
com base em achismo e, sem nenhum respaldo técnico, assinou um decreto
em novembro suspendendo o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar na
Amazônia e Pantanal e colocando em risco a Amazônia e a soberania
agrícola brasileira.
No
dia seguinte ao decreto, em 6 de novembro do ano passado, quando a
notícia já circulava pelo globo terrestre – a terra é redonda –, o
mercado reagiu mal à expansão da cana-de-açúcar na Amazônia. A Argus,
empresa que faz a cotação dos biocombustíveis no Brasil, publicou uma
nota como uma resposta negativa à liberação. Os biocombustíveis
brasileiros deixariam de ser vistos como limpos e ficariam associados ao
desmatamento da Amazônia. Com uma só canetada, Bolsonaro não tinha
apenas condenado a Amazônia, as chuvas da região Sul e Sudeste do Brasil
e a agricultura do Brasil, mas também a imagem ilibada dos
biocombustíveis brasileiros.
Frente
à ausência de qualquer parecer técnico para suspender o zoneamento da
cana-de-açúcar, ficou claro para mim o que fazer. Denunciei no
Ministério Público Federal o presidente da República e seus ministros
por crime de lesa-pátria, por causa da ação do presidente e de seus
ministros ao colocar em risco a integridade territorial e a soberania
nacional. O MPF ajuizou uma medida cautelar para o decreto ser suspenso
imediatamente e aguarda que o juiz julgue a denúncia. O julgamento deve
ocorrer ainda em fevereiro.
Sim,
Bolsonaro está ameaçando não apenas a Amazônia, mas toda a soberania
nacional com base em uma política que não considera o parecer da ciência
para a tomadas de decisões. Com base em estudos publicados por mim em
revistas científicas, dentre elas a Science, e que mostram o impacto da
cana-de-açúcar na Amazônia e sua biodiversidade, embasei a denúncia no
MPF que a acatou, devido à quantidade de provas sobre os impactos
negativos do decreto sobre a Amazônia, o clima do Brasil e a própria
imagem do etanol brasileiro.
Mas
esse governo parece não gostar de ser contrariado. No dia seguinte à
minha denúncia, fui informado por alguém ligado ao INPA que o próprio
Ministério de Ciência e Tecnologia havia entrado em contato com a
instituição para pegar os dados do pesquisador “transgressor” que ousara
se opor aos planos do presidente da República.
E
aqui gostaria de deixar o meu incentivo aos pesquisadores brasileiros:
não podemos nos calar frente ao obscurantismo científico e ataques às
instituições de pesquisa. Governos veem e vão, mas a luz da ciência é
capaz de guiar a sociedade brasileira para tempos melhores. Por isso não
se calem, não se omitam diante do obscurantismo científico, fake news,
degradação ambiental ou injustiça social.
Outras ameaças
Embora
o MPF tenha acatado a denúncia e agido com precisão embasada nos
artigos científicos que havíamos produzido para rescindir o decreto de
Bolsonaro, as ameaças dos biocombustíveis na Amazônia têm se expandido
por meio de outros cultivos, como o milho e o dendê.
Em
um novo artigo, recém-publicado na revista Nature (versão em português
pode ser lida no Amazônia Real), periódico com maior impacto científico
no mundo, nós alertamos agora para um plano maior de destruição da
Amazônia, onde os biocombustíveis passam a ser grandes ameaças ao bioma,
assim como hidroelétricas, plantações de soja, pecuária e a mineração.
Essa ameaça à Amazônia tem se dado através de um consórcio de R$ 4,4
bilhões para a construção de usinas de produção de biocombustíveis na
Amazônia pela Millenium Bioenergia, que deve expandir os cultivos de
milho e dendê para os seis estados amazônicos: Amazonas, Acre, Amapá,
Mato Grosso, Rondônia e Roraima.
De
fato, os planos da empresa representam uma grave ameaça à Amazônia e
aos povos tradicionais que vivem na região, pois como já declarado pela
própria empresa, os cultivos devem avançar sobre comunidades
tradicionais e indígenas.
Iniciativas
como esta se revelaram catastróficas na Amazônia, como no estado do
Pará, onde comunidades tradicionais contraíram dívidas com os bancos de
longo prazo para produzir dendê e hoje estão na miséria por abrirem mão
da agricultura de subsistência. A taxa de retorno por família é de pouco
mais de R$ 300 por mês.
Munidos
de estudos que demonstram o impacto dos cultivos para a produção de
biocombustíveis na Amazônia, a sociedade brasileira deve cobrar não
apenas uma Amazônia livre da cana-de-açúcar, mas livre de cultivos para a
produção de biocombustíveis. Não nos deixemos enganar pelo doce sabor,
como o da cana-de-açúcar, que esse tipo de cultivo pode ser um
empreendimento viável para o desenvolvimento da região. Não é.
Os
tomadores de decisão brasileiros devem vetar essa expansão, assim como
bancos devem rever o financiamento de empreendimentos que possam ter
impacto sobre a Amazônia, povos tradicionais e o clima global. Ao que
cabe a mim, continuarei produzindo ciência e divulgando os resultados
para a construção de uma sociedade mais justa e consciente sobre a
importância da conservação ambiental.
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