O Ministério da Agricultura soltou essa semana a maior investida
do governo contra o elogiado Guia Alimentar para a População
Brasileira: uma nota técnica, direcionada ao Ministério da Saúde, que
classifica a recomendação de se evitar comida ultraprocessada como
"confusa", "incoerente" e até "cômica".
São os mesmos argumentos repetidos há anos pela indústria alimentícia,
que tenta engavetar o guia desde que ele surgiu.
Desde 2014, o Brasil adota as recomendações alimentares de
acordo com o nível de processamento dos alimentos. O guia, lançado no
fim daquele ano (você pode fazer o download aqui), lançou as diretrizes para a população
passar a priorizar "comida de verdade": alimentos frescos ou
minimamente processados, de preferência feitos em casa, sem
conservantes ou aditivos químicos. Ele serve de embasamento para
personalidades como Rita Lobo e Paola Carosella, que costumam defender
o uso de ingredientes frescos, de pequenos produtores, e consumo
preferencialmente caseiro.
Diferente de outros guias alimentares, voltados a profissionais
de saúde, que costumam listar trocentos nutrientes e vitaminas e são
complicados de entender, o manual brasileiro é muito mais simples: leu
o rótulo e não entendeu o que está escrito? Evite. Voltado à população
em geral, o guia também tem recomendações de se priorizar pequenos
produtores e aborda até preparações culinárias. É embasado em dezenas
de estudos que associam o consumo de comida ultraprocessada, cheia de
aditivos químicos (refrigerantes, salgadinhos, bolachas
industrializadas etc.) à obesidade, problemas cardíacos e câncer.
O guia foi elogiado internacionalmente por figurões
como Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova
York e referência na pesquisa em nutrição. Foi chamado de "revolucionário" por Michael
Pollan, autor do livro "O dilema do onívoro" e estrela da
série “Cooked”, da Netflix. Mas a indústria alimentícia, é claro, não
gostou.
O Intercept mostrou no ano passado como associações
bancadas por gigantes da alimentação como Nestlé, Danone e Coca-cola
tentam fazer a cabeça do Ministério da Saúde contra as recomendações,
que atingiram em cheio seus negócios. A Abia, a Associação Brasileira
da Indústria de Alimentos, já havia tentado impedir que o guia saísse
em 2014 – e voltou a tentar engavetá-lo no ano passado, aproveitando a
boiada do governo de Jair Bolsonaro.
Em agosto do ano passado, Luis Madi, diretor de Assuntos
Institucionais do Ital, o Instituto Tecnológico de Alimentos, também
afirmou que aquela era a hora de trabalhar pela revogação do guia, o
que classificou como “o grande desafio” para os próximos três anos – ou
seja, o mandato de Bolsonaro. “Esse guia criou uma confusão muito, mas
muito forte no consumidor”, criticou Madi.
O Ital é uma estatal paulista criada nos anos 1960 a pedido da
indústria. É mantida pelas contribuições das próprias corporações para
desenvolver produtos e embalagens.
Agora, foi justamente um estudo do Ital que serviu de
embasamento técnico para a nota técnica do Ministério da Agricultura
que pediu o fim do guia."A classificação definida pelo critério de
processamento não apresenta nenhuma contribuição para um guia alimentar
público", defende a nota, citando um estudo do engenheiro de
alimentos Raul Amaral Rego, do Ital, também diretor de uma empresa de
marketing e responsável por palestras com títulos
como "A importância dos alimentos processados para a sociedade
brasileira". O outro estudo mencionado, revelou o site Outra
Saúde, também foi feito por pesquisadores que declararam já ter recebido verbas de
organizações bancadas pela indústria.
O Outra Saúde também notou que, há dois meses, João Dornellas,
presidente da Abia se reuniu com a ministra Tereza
Cristina justamente para discutir a revisão do guia. A Abia também é
financiada por gigantes como Unilever, Bauducco e Danone (se você
quiser entender como essa associação opera, pode ler no Intercept como ela tenta
esconder o excesso de sal e açúcar do rótulo dos alimentos). O Joio e o
Trigo, site especialista em cobrir a indústria alimentícia, também
mostrou que o discurso contra o guia foi ensaiado
muitas vezes em eventos do setor.
Não surpreende que o Ministério da Agricultura tenha usado, no
documento, a mesmíssima narrativa que os executivos da indústria de
alimentos usam há anos para tentar desqualificar o guia. A gente
avisou. Agora, resta saber se o Ministério da Saúde vai engolir o
argumento.
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