Recife, 29 de dezembro de
2017
Querido Dom Helder Camara,
Nesse Natal, a
saudade bate como nunca. Dá-me uma vontade louca de conversar com você. Não
tenho saudade dos anos 60, nos quais, pelas suas mãos, fui ordenado presbítero
para o povo de Deus. Nem quereria voltar aos anos 70, quando tive a graça de
ser seu secretário para assuntos ecumênicos. Na linha da espiritualidade de
Natal, quero mesmo assumir a realidade do aqui e agora. Só tenho saudade é de ouvir
sua voz e saber suas posições a respeito de algumas coisas que estão
acontecendo.
Qualquer dia, lhe escrevo com notícias sobre a nossa querida
arquidiocese. Agora, quero falar mesmo do Brasil. Hoje pela manhã, passando no
aeroporto de São Paulo, por acaso, entro no email e leio uma mensagem do amigo
Roberto Malvezzi (Gogó), contando que o governo Temer decretou que você,
(acredite se quiser, você, Dom Helder Camara), é o patrono nacional dos
Direitos Humanos. Depois, João Pedro completou a informação de que se tratava
de uma proposta de um deputado chamado Arnaldo Jordy do PPS do Pará que tramita
na Câmara desde 2015 e que agora o Temer resolveu sancionar. Sem deixar claro
porque fazia isso e que sentido tinha essa homenagem repentina. Gostaria muito de
que você pudesse se manifestar a respeito dessa iniciativa de um governo como
esse que o torna patrono nacional dos
Direitos Humanos. Isso é uma honra ou é um insulto? Que Direitos são esses? E
de quais humanos? Os que estão no governo e dele se beneficiam? Quais direitos
humanos sobraram do congelamento de gastos do governo em educação e saúde? De
que direitos humanos o governo pensa que você é patrono - os que ainda podem
restar depois das regras e normas baixadas para aliviar a barra dos
latifundiários e donos de empresas que praticam trabalho escravo em suas
propriedades? Os direitos humanos do povo que sem votar perde todos os dias
direitos adquiridos a suor e sangue na Constituição de 1988? Que direitos
humanos terão os cadáveres dos pobres que morrem sem poder aposentar-se por
causa da reforma pensada pelo governo Temer?
Vai ver que nesse Natal
baixou o Espírito que anunciou a Maria a novidade da encarnação do Verbo e
Temer pensou nos direitos humanos dos que votaram no governo Dilma e se
arrependeu da traição que fez e do golpe que deu? Será que ele quer pedir ao
Moro e ao Gilmar Mendes que leve em conta os direitos humanos de Lula e dos
políticos do PT que eles tanto odeiam? O que será que está por trás dessa
iniciativa do Temer?
Parece que os poderes no
Brasil gostam de usar o seu nome quando precisam de limpar alguma barra suja.
Em 2010, o Senado Federal aprovou um aumento de 60% para os salários dos
senadores. A notícia repercutiu mal no Brasil. Poucos dias depois, o Senado
aprovou conceder a comenda Dom Helder Camara para os Direitos Humanos a um
bispo católico. No caso era Dom Edmilson Cruz, então bispo de Limoeiro do
Norte, no Ceará. No céu, você ter sabido do que aconteceu. O bispo foi ao
Senado e em discurso aberto rejeitou a comenda. Disse que seria incoerente se
aceitasse aquela comenda dada pelo mesmo Congresso que legislava contra o povo
e disse claro: "Quem age assim não é parlamentar. É para lamentar".
Ainda nos anos 60, o governo militar resolveu conceder uma
medalha da Paz a Dom Abade Basílio Penido e a dois bispos de Pernambuco (Dom
Augusto - de Caruaru e Dom Milton de Garanhuns). Dom Abade tinha ainda um bom
diálogo com generais do IV Exército. Mas, alguém o advertiu de que aquela homenagem
era para manifestar que na Igreja nem todos tinham a linha "radical"
de Dom Helder Camara, na época, já muito criticado. Dom Abade se sentiu muito
tentado a receber, mas em contato com os dois bispos (mais tradicionais e até
ingênuos), os três decidiram rejeitar e dizer por que. Não era normal eles
serem homenageados em um momento como aquele e sem nenhuma referência ao
arcebispo.
Lutero dizia que "Deus
prefere o insulto de quem é justo do que o louvor de quem pratica
injustiça". Você, Dom Helder, sempre agiu assim. Como iria aceitar tal
homenagem? Mas, quem pode atualmente lhe representar para dizer claramente ao
governo Temer e ao povo brasileiro porque você se sentiria constrangido em
aceitar tal homenagem e que só a aceitaria se o governo mudasse totalmente o
seu modo de conceber o p poder e a orientação que tem em sua gestão. Quem pode
lhe representar?
Roberto Malvezzi escreveu que alguns bispos (não sei quais) já
manifestaram o seu protesto contra essa medida. Talvez, haja um ou outro que
pense: "Se a medida é justa e correta, pouco importa quem a faz e com que
intenção. A medida é boa e deve ser apoiada". Parece que Jesus não pensou
assim quando contestou o doutor da lei que o chamou de bom. "Por que me
chamas de bom?". Em outras palavras: "Que direito você tem para me
chamar de bom? Só Deus é bom" (Mc 10, 17 ss).
Talvez, o mais pedagógico fosse que todos os cidadãos
brasileiros, incomodados ou mesmo agredidos por essa homenagem declarem que o
governo não tem o direito de usar o nome Helder Camara para seus propósitos
maquiavélicos e deletérios. Esperemos que o Instituto Dom Helder Camara (IDHEC)
se manifeste, que a Escola de Fé e Política Dom Helder Camara se posicione, que
a Agência de Notícias Dom Helder Camara da CNBB denuncie e que todos os
movimentos sociais gritem contra essa medida e anulem qualquer tramoia que esse
governo golpista e insensível aos pobres tenha planejado.
No Natal, celebramos os
santos inocentes, crianças que, segundo a tradição, foram mortas por Herodes.
Hoje, devemos ser santos lúcidos, críticos e atentos ao que ocorre no mundo.
José Saramago critica São José pelo fato de que, quando avisado em sonhos de
que Herodes iria matar as crianças de Belém, fugiu sem antes ter advertido aos vizinhos
e protegido as outras famílias. Apesar de saber que essa história é um midrash
narrativo e não um fato real, atualmente temos de ser mais cuidadosos e não
deixar primeiro que os inocentes morram para depois fazê-los santos. Dom
Helder, você sempre foi e é nosso patrono dos direitos humanos, mas não os do
governo Temer e sim os das organizações sociais que nesse 2018 vão refazer
várias de suas campanhas e vão mudar o Brasil. Inspire-nos nesse caminho e nos
abençoe. Seu irmão menor Marcelo (o monge
do qual vc fala que jovem lhe procurou em crise de vocação e que você
aconselhou. Você fala dele em uma de suas vigílias em 1965, mas evita dizer meu
nome para não me expor). Agora não há mais esse risco e podemos sim colocar
o nome de todos nós na sua vigília pelo Brasil.
Abençoe o seu filho Marcelo
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