Hoje é um dia para sermos provocados a despertar: se dormirmos, descuidados, em 40 anos acabará o minério de ferro da principal jazida do mundo, no sul do Pará. Vejam o texto do jornalista Lúcio, e se ficarem indignados, vejam como tomar conhecimento da proposta de novo Código da Mineração, que está no Congresso com proposta elaborada pelo Governo Federal e empresários da mineração, e apoiar e reforçar o trabalho do Comitê criado para reagir a esta proposta e tentar modificá-lo, depois de debate com os povos interessados e com toda a população do Brasil.
Estupro
na mineração
Por
Lúcio
Flávio Pinto | Cartas da
Amazônia – qua, 28 de ago de 2013
A
Vale anuncia que a principal jazida do melhor minério de ferro do mundo será
exaurida ao longo de 40 anos. Trinta anos antes, quando deu início à sua
atividade em Carajás, no Pará, a previsão era de que a mineração se prolongaria
por 400 anos, mas só considerando o volume de minério que podia ser lavrado a
céu aberto e com volume ainda não completamente avaliado. Se as frentes de
extração em Carajás seguirem o planejamento da empresa, essa história não irá
além de um século.
Trinta
anos antes a Vale não teria a tranquilidade que ostenta ao anunciar que o maior
investimento da sua história e o maior que está sendo realizado no momento em
todo mundo, no valor de quase 20 bilhões de dólares, terá duração de 40
anos.
Haveria
reação, mesmo ainda sob um governo militar, o último, em seus estertores, do
ciclo da ditadura. Sem dúvida, reação do pessoal técnico. Provavelmente, da
opinião pública também. Jamais um vaticínio dessa gravidade seria recebido sob o
silêncio sepulcral de hoje, o que explica a tranquilidade da
Vale.
O
açodamento da mineradora na consumação do destino de Serra Sul tem sua razão no
receio de que haja reflexão um pouco mais atenta por parte da sociedade sobre o
que significa submeter um patrimônio tão valioso a um processo de exploração tão
intenso, visando exportar maciçamente um bem praticamente in
natura.
Aos
preços de hoje, apenas Serra Sul proporcionará uma receita média anual de quase
10 bilhões de dólares. No período de quatro décadas, o faturamento atingirá US$
400 bilhões, 20 vezes o valor do investimento.
Parece
muito, mas não é. Cálculos feitos a partir do beneficiamento do minério bruto
chegarão a valores incomparavelmente superiores. A Vale não está se importando
com o que pode ocorrer na escala de transformação do seu produto. Ela é apenas
mineradora (ou, cada vez mais, uma empresa de logística que faz circular minério
por seus trens, portos e navios) e ponto final. Para a nação, isso é um
crime.
Como
empresa privada (que, efetivamente, não é: continua a ser, de direito, mesmo que
não de fato, empresa privada, por mero oportunismo e má fé do governo federal),
ela pode até justificar a estratégia de passar a tirar 250 milhões de toneladas
anuais de Carajás, a partir de 2017 (10 vezes mais do que o máximo de produção
previsto no projeto original), e remeter essa riqueza
além-oceanos.
Tal
volume de minério singrando entre os oceanos já reforçaria o peso mundial da
mineradora. Mas trata-se do minério que mais contém hematita de toda a crosta
terrestre. Não há nenhum outro semelhante ao de Carajás. Assim, se o preço do
minério no mercado internacional cair até pela metade (de 100 para 50 dólares a
tonelada, por exemplo), a Vale será das poucas que ainda terá margem de lucro
para sobreviver. Graças à excepcional qualidade do produto que comercializa e à
facilidade em extraí-lo do sobsolo, através de lavra a céu
aberto.
Esse
seguro contra qualquer crise de mercado e em favor da hegemonia da companhia é
estabelecido à revelia do interesse nacional. Se o Brasil ainda tivesse uma
política mineral, não permitiria o saque alucinado sobre Serra
Sul.
Guardaria
essa reserva para o futuro, desenvolvendo pesquisas e realizando experimentos
com minérios menos nobres. Ao mesmo tempo, fomentaria a atividade industrial,
para impedir essa prática colonial de exportar matéria
prima.
Há
no momento um caso exemplar a servir de patética advertência contra a atitude
assumida pela Vale. As obras da ferrovia Norte-Sul, que foram retomadas na
tentativa de concluir um trecho empacado há vários anos (entre Palmas, a capital
do Tocantins e Anápolis, em Goiás), pode parar de novo. É que faltam
trilhos.
Dois
anos atrás, a Valec, responsável pela obra, teve que cancelar um contrato com a
firma chinesa Dismaff, por causa da má qualidade do material (além de
irregularidades administrativas). Uma nova licitação foi realizada. Quem a
venceu foi outra empresa do dono da Dismaff.
O
contrato foi novamente questionado pelo Tribunal de Contas da União. Para tentar
encontrar outro interessado, a Valec fracionou a compra em lotes de 30 mil
toneladas cada. Se, diretamente ou por via oblíqua, a Dismaff for de novo a
vencedora, a construção da ferrovia terá que parar.
A
pergunta óbvia que se faz é: por que o Brasil, tão rico em minério de ferro, não
fabrica trilhos, estando em andamento um plano nacional de novas ferrovias? Nem
sequer trilhos o Brasil pode fabricar. Recorre a produtos chineses, que, nesse
caso, não parecem estar sendo fabricados com o minério de Carajás, do qual a
China é a maior compradora.
Certamente
a penetração chinesa nesse mercado deve-se ao baixo preço da mercadoria que
oferece. Mas já não há dúvida de que ela não tem a qualidade exigida, como não
tem o cimento que em escala crescente é importado de lá. O motivo dessa
preferência é o preço: o cimento chinês atravessa os mares e chega a Belém do
Pará, a terra do minério, por um preço que é praticamente a metade daquele
praticado pela Cibrasa (do grupo João Santos, do cartel nacional) nas suas duas
fábricas paraenses – aliás, implantadas com a colaboração do governo federal,
através de renúncia fiscal.
Os brasileiros continuarão a assistir, desinteressados, a esses absurdos, que resultam de uma prática ofensiva aos interesses estaduais, regionais e nacionais? O silêncio em relação a essa situação não é daqueles que o filósofo considera de ouro, em comparação com a palavra, apenas prateada. É um silêncio de quem, considerando inevitável o estupro, relaxa e aproveita.
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