ONU: o mundo está tratando os sintomas, não as causa da pandemia
Destruição contínua da natureza trará fluxo de doenças transmitidas de animais para o homem, aponta relatório
Carta Maior - 09/07/2020 17:02
Créditos da foto: A criação industrial de animais,
especificamente porcos e galinhas, é um dos principais riscos para a
propagação futura de doenças zoonóticas, afirmam especialistas (Nikolay
Doychinov/AFP/Getty Images)
Do Ebola ao Sars, passando pelo vírus do Nilo Ocidental e pela febre do Vale do Rift, vem aumentando o número de epidemias "zoonóticas" que têm como causa principal a destruição da natureza pelos seres humanos e a crescente demanda por carne, diz o relatório.
Mesmo antes da Covid-19, 2 milhões de pessoas morriam de doenças zoonóticas todos os anos, principalmente nos países mais pobres. O surto de coronavírus era altamente previsível, disseram os especialistas. "A [Covid-19] pode ser a pior, mas não foi a primeira", disse a diretora do programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma), Inger Andersen.
Os maiores custos econômicos recairão sobre os países ricos – no caso da Covid-19, o custo será de 9 trilhões de dólares em dois anos, de acordo com a economista-chefe do FMI. Isso é um ótimo argumento para que se invista nos países onde surgem doenças, dizem os autores do relatório.
O relatório aponta ser vital uma abordagem de “saúde única”, que englobe a saúde humana, animal e ambiental e inclua muito mais vigilância e pesquisa sobre as doenças e os sistemas alimentares que possibilitam as transmissões para o homem.
"Houve muitas respostas à Covid-19, mas grande parte delas tratou a pandemia como um desafio médico ou um choque econômico", disse a professora Delia Grace, principal autora do relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e do Instituto Internacional de Pesquisa Pecuária.
“Mas suas origens estão no meio ambiente, nos sistemas alimentares e na saúde animal. É como ver alguém doente e tratar apenas os sintomas e não a causa subjacente, e há muitas outras doenças zoonóticas com potencial pandêmico.”
"O aumento e a intensificação da atividade humana estão afetando o meio ambiente em todo o planeta, desde os crescentes assentamentos humanos à [produção de alimentos], passando pela expansão do setor de mineração", explica Doreen Robinson, chefe para a vida selvagem do Pnuma. “Essa atividade humana está rompendo o amortecedor natural que protegia os seres humanos de vários patógenos. É extremamente importante chegar às causas do fenômeno, caso contrário, ficaremos apenas reagindo aos seus efeitos”.
"A ciência é clara: se continuarmos explorando a vida selvagem e destruindo os ecossistemas, podemos esperar, nos próximos anos, um fluxo constante dessas doenças que “saltam” de animais para seres humanos", disse Andersen.
A vida selvagem e os rebanhos são a fonte da maioria dos vírus que infectam os seres humanos, e o relatório cita uma série de fatores que causam surtos de doenças, como a crescente demanda por proteína animal, uma agricultura mais intensiva e insustentável, maior exploração da vida selvagem, crescentes viagens globais e a crise climática. Também destaca que muitos agricultores, regiões e nações relutam em declarar surtos por medo de prejudicar o comércio.
"Os principais riscos para a disseminação futura de doenças zoonóticas são o desmatamento de regiões tropicais e a criação industrial de animais em larga escala, mais especificamente de porcos e galinhas criados em alta densidade", diz o ecologista Thomas Gillespie, da Universidade Emory, nos EUA, do grupo de revisores do relatório. “Estamos em um momento de crise. Se não mudarmos radicalmente nossas atitudes em relação ao mundo natural, as coisas vão piorar muito – muito mesmo. O que estamos vivendo hoje vai parecer leve.”
O relatório destaca alguns exemplos de onde os riscos zoonóticos estão sendo controlados. Em Uganda, as mortes por febre do Rift Valley foram reduzidas através do uso de dados de satélite para antecipar chuvas fortes, que podem produzir enxames de mosquitos e desencadear surtos.
O relatório é o mais recente aviso de que os governos devem enfrentar a destruição ambiental para evitar futuras pandemias. Em junho, um importante economista e a ONU afirmaram que a pandemia de coronavírus era um "SOS para a experiência humana" e, em abril, os principais especialistas em biodiversidade do mundo disseram que mais surtos de doenças mortais eram prováveis, a menos que a natureza fosse protegida.
"A simples ideia de que a saúde da humanidade depende da saúde do planeta e da saúde de outras espécies deve estar no cerne de nossa resposta às zoonoses e aos outros desafios que a humanidade enfrenta", diz Andersen. "Se a humanidade der à natureza a chance de respirar, ela será nossa maior aliada na construção de um mundo mais justo, mais verde e mais seguro para todos.”
*Publicado originalmente em 'The Guardian' | Tradução de Clarisse Meireles
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/ONU-o-mundo-esta-tratando-os-sintomas-nao-as-causa-da-pandemia/4/48084
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